terça-feira, 23 de abril de 2024

Edgar Silva - A religião e os valores humanistas na obra de José Saramago



Nota introdutória

É de grande atualidade o “Evangelho Segundo Jesus Cristo” quando, mais uma vez, tantos cristãos estão a trucidar-se uns aos outros em nome do mesmo Deus, nestes dias em que o absurdo da guerra, entre outros profundos nexos causais, na Europa, também é justificada por alguns hierarcas por motivos da religião.

O “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, publicado em 1991, tem 24 capítulos, não numerados que totalizam 445 páginas. É o romance mais longo de José Saramago. Naquele texto, mais do que versar sobre a história de Jesus desde a sua conceção até à sua crucificação, na companhia de Jesus, Maria, José, Maria Madalena, dos discípulos de Cristo e do diabo, Saramago é o “evangelista” que faz uma releitura de tragédias da humanidade, da tragédia de todo o humano, designadamente, da vida dos «crucificados menores». O autor português constrói a história dos «crucificados menores» em confronto com o divino e o demoníaco, no fundo, a história da humanidade em prolongada busca de si mesma.

Uma arquitetura do sagrado

Ao longo da sua obra, José Saramago constrói cenários socias, políticos e religiosos imersos numa iconografia judaico cristã, projetados segundo um profundo imaginário religioso.

Revelando exaustivo estudo de textos bíblicos, como é raro na história da literatura portuguesa, na liberdade da palavra, explorando um discurso conotativo, com um fluxo semântico torrencial, por vezes vertiginoso, Saramago desenha uma arquitetura do sagrado. Materializa a crítica do sagrado enquanto religião institucionalizada, como parte da ideologia de domínio social, enquanto componente dos mecanismos repressivos das sociedades. Na sua conceção do sagrado a religião institucionalizada mantém tanta gente num estado de adormecimento, de aceitação de sacrifícios, em resignação, impedindo que os humanos vivam plenamente a sua humanidade. Essa religião como que suga a vontade humana.

Quer seja através de monólogos intimistas ou reflexões sentenciais, quer seja por ditos proféticos, apartes e antevisões ou personagens e histórias trágico-maravilhosas, o autor do “Evangelho Segundo Jesus Cristo” constrói narrativas de rituais religiosos, de quadros bíblicos, de tradições e relatos do judaísmo e do cristianismo. E naquela arquitetura do sagrado, Saramago inaugura uma nova linguagem sobre o fator religioso, relê a linguagem antiga, desnudando a ideologia ou desvelando as camadas de ideologia transportadas por determinadas interpretações dadas aos textos bíblicos, às instrumentalizações retóricas, políticas, sociais das figurações de Deus.

Na sua arquitetura do sagrado, no “Evangelho”, Saramago dessacraliza a palavra tida por sagrada pelos crentes. O narrador é o agente dessa dessacralização. Reproduz histórias da Bíblia para apresentar Deus tal como é mencionado em diferentes contextos no Antigo Testamento. Saramago utiliza as citações bíblicas, reapresenta-as, multiplica as citações ipsis verbis do Antigo e do Novo Testamento, para expor o que considera iniquidades de Deus.

Da história de Deus, conclui Saramago no seu “Evangelho”: é «uma história interminável de ferro e de sangue, de fogo e de cinzas, um mar infinito de sofrimento e de lágrimas».1 Do relato acerca de Deus sentencia Saramago: «É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue».2

O que há entre Saramago e Deus?

Sendo ateu, Saramago revela-se apegado à ideia de Deus. A sua literatura manifesta uma vasta incidência de temas bíblicos. Não é só no “Evangelho Segundo Jesus Cristo” que Deus, enquanto tema, está presente na obra de Saramago: Deus lá está na “Terra do Pecado”, na “História do Cerco de Lisboa”; em “Levantados do Chão”; no “Memorial do Convento”; em “Todos os Nomes”; nas peças de teatro “In Nomine Dei” e na “Vida de São Francisco de Assis”; nos romances “Ensaio Sobre a Cegueira” e em “Caim”.

Selam Ferraz, no seu estudo sobre «um certo perfil de Deus» em Saramago, refere que «ao longo de sua obra, ele vai apontando perfis de Deus que o incomodam. Em Terra do Pecado, seu primeiro romance, critica um Deus que não gosta de prazer e de sexo; em Memorial do convento, critica aqueles que edificam grandes catedrais para Deus; na peça de teatro In Nomine Dei, critica as guerras que se fazem em nome de Deus. Finalmente em o Evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago questiona o Deus de Amor que deixa que seu único filho seja crucificado e que não concede o perdão a Lúcifer».3

Mais do que questionar Deus, Saramago rejeita-o, rejeita o Deus cruel, sanguinário, vingativo. Saramago recusa Deus em defesa da humanidade e, por isso, coloca-se do lado de Jesus. A recusa de Deus é, ao mesmo tempo, acompanhada da valorização da figura de Jesus.

Em contraposição à crueldade de Deus e à arrogância de Deus, Saramago identifica-se com o personagem Jesus. Tanto assim que o narrador do romance nem precisaria declarar - mas declara – que, enquanto no “Evangelho” Deus é o anti-herói, Jesus é o evidente herói daquele evangelho.4 Deus é o grande antagonista no “Evangelho de Saramago”, porque, enquanto Jesus e, diga-se, o Demónio procuram compreender os humanos, Deus procura submete-lo à sua vontade, alargar o número de fiéis e o poder que tem sobre eles.

Saramago destaca a figura humana, demasiado humana de Jesus. Se Saramago rejeita Deus é para exaltar, na figura de Jesus, a figura humana, o homem e a sua dor, o homem e a sua revolta.

Em Saramago há a identificação de Jesus com a humanidade, num processo narrativo que vai ficando mais claro nos diversos episódios que o romance recolhe da sua vida, havendo mesmo uma passagem do “Evangelho” de Saramago na qual Jesus, de certo modo, recusa Deus em favor dos homens: «Não podes ir contra a vontade de Deus - diz-lhe Pedro. Não - responde Jesus - mas o meu dever é tentar».5 Ou seja, em Saramago o Filho de Deus, em vez de se entregar aos desígnios do Pai celestial, ousa questioná-lo em nome da própria humanidade e em favor da humanidade.

Em contraposição aos homens sem vontade ou de vontade adormecida, que deixam de ser verdadeiramente humanos, contrários ao próprio movimento da História, existe um novo mundo por erguer, uma outra força que radica na vontade humana, que liberta os povos da religião institucionalizada, que comporta uma imensa capacidade criadora e transformadora, que possui potencialidades para superar todas as marcas da nossa humana fragilidade. No “Evangelho de Saramago”, o Cristo Homem traz consigo todas as marcas da nossa humana fragilidade e, correlativamente, da nossa força divina. E é neste sentido que na humanidade há uma infinita vontade de transformação do mundo.

Nesta leitura do Nobel português da literatura poderá dizer-se que no “Evangelho de Saramago” o Cristo Homem revela à humanidade a grandeza do humano, o personagem Jesus manifesta o quanto nos falta para chegarmos a ser verdadeiramente humanos.

Teologia de Saramago

Tal como os demais romances de Saramago e, antes de mais, no seu “Evangelho” sobressai aquele que é um dos maiores legados do nosso Nobel da Literatura: o alçar a humanidade ao papel de principal ator da existência.

No contador da História e de histórias que nos fascinam e apaixonam é o humano que interessa. Em José Saramago importa a humanidade detentora do seu próprio destino e única responsável pelos seus próprios atos.

No texto de Saramago “ao homem nada é impossível”. Ele é capaz de cuidar do seu próximo, é capaz de inventar, de criar, de fazer a história prosseguir. Tal como a vontade humana é capaz de amar de forma incondicional, o génio humano (tal como Blimunda, Baltasar e Bartolomeu Lourenço) é capaz de erguer a passarola; é capaz de superar obstáculos (como na saga dos Mau-Tempo) e é capaz, até mesmo, de mudar o rumo da história. Precisa, no seu Evangelho, de matar a inflexível imagem do Deus todo poderoso, como condição para que se liberte a humanidade.

Quando é exposta a humana fragilidade, a nossa cegueira, o medo da morte, as capacidades de destruição, logo Saramago exibe o homem ao próprio homem, a capacidade de sublimar, de compaixão, do altruísmo, da liberdade, da justiça, do amor. Demasiado humano, o humano é mortal, no entanto, aspira à imortalidade; está sujeito ao tempo, porém, aspira à divindade; é criatura, mas deseja ser criador.

Tal como todos nós, no “Evangelho de Saramago”, o Cristo Homem traz consigo todas as marcas de nossa humana fragilidade e de nossa força divina. E é em nome da humanidade que Saramago, através dos tensos diálogos, das suas alegorias, da elaboração de grandes metáforas e parábolas, nas diversas formas de confronto do humano com o absurdo, com o desconhecido, através da ficção narrativa, nos seus retratos literários, em tudo persegue um objetivo: a tentativa de entender o que significa o ser humano.

No Centenário do nascimento de Saramago será destacada a atualidade da sua obra, relida aquela literatura que continua a habitar e a inquirir os nossos dias. Para além de tudo isso, entre muitos outros aspetos, importará valorizar, de sobremaneira, a acutilância da sua palavra sobre o muito que nos falta para chegarmos a ser verdadeiramente humanos, com a insistência de uma indomável confiança na luta dos Povos, uma esperança que não aceita qualquer forma de resignação, nem a exploração, nem a desigualdade que desfigura a comum humanidade dos humanos.

Muito devemos a Saramago, mas, em particular, “como evangelista”, com ele aprendemos a dizer como ainda nos falta tanto caminho para chegarmos a ser autenticamente humanos. E é, por isso, que podemos dizer quanto o “Evangelho de Saramago” nos remete para uma profunda reflexão teológica, reporta-nos para universos da teologia antropológica dos grandes mestres, como o foi Karl Ranher, ou como nos sugere a mais pura teologia da esperança.

Tal como afirmou Max Horkheimer. «a teologia, para mim, é a esperança de que a injustiça que caracteriza o mundo não seja a última palavra».6

1 SARAMAGO, José – Evangelho…, 1998, 381.

2 SARAMAGO, José – Evangelho …, 1998, 391.

3 FERRAZ, Selma – Quais são as faces de Deus? IHU 299 (6 de julho 2009) s.p.

4 Cf. SARAMAGO, José – Evangelho…, 1998, 239.

5 SARAMAGO, José – Evangelho…, 1998, 436.

6 HORKHEIMER, Max – Elipse da Razão. Zahar: Rio de Janeiro, 1976, 18.

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CONFERÊNCIA
Uma visão universal e progressista da História - A actualidade da Obra de José Saramago
22 Outubro 2022

https://www.pcp.pt/religiao-valores-humanistas-na-obra-de-jose-saramago


Edgar Silva foi padre e é investigador no Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa e dirigente do PCP.

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Manuel Loff - Uma festa muito prática

Por mais que tentem descafeinar a Revolução, as direitas deste país não têm motivos para querer comemorá-la.

* Manuel Loff

17 de Abril de 2024

Nos 50 anos do 25 de Abril e da democracia em Portugal, é de novo a direita que está no Governo. Parece a maldição dos anos terminados em 4: salvo nos 25 anos (1999), os aniversários redondos da democracia foram comemorados em contracorrente com governos de direita que se sentiram sempre incomodados com quase tudo quanto o 25 de Abril significou nas nossas vidas. Foi assim em 1994 (Cavaco) e em 2004 (Durão); duas das comemorações (1984, Bloco Central PS/PSD, e 2014, Governo Passos PSD/CDS) coincidiram com os dois piores períodos de devastação social provocada por políticas de austeridade que obrigaram a reavaliar o que restava da democracia que o 25 de Abril criara.

Por mais que tentem descafeinar a Revolução, as direitas deste país não têm motivos para querer comemorá-la. A memória da Revolução continua a irritá-las de sobremaneira (veja-se 25 de Abril. Revolução e mudança em 50 anos de memória, livro que está prestes a sair e que coordenei com Miguel Cardina). A libertação de Portugal e das colónias não foi simplesmente uma mudança de regime com o desmantelamento da polícia política (ao contrário da transição espanhola, por exemplo) e o reconhecimento da independência dos novos países africanos – o que já não seria pouco! O 25 de Abril foi a conquista de direitos dos trabalhadores das cidades e dos campos, “A terra a quem a trabalha!”, o direito à habitação, o início do longo processo de emancipação das mulheres (ainda que muito ficasse por conquistar nos direitos sexuais reprodutivos) – justamente o que enfurece a falange de ressentidos que Passos juntou há dias em torno de um livro rançoso. O 25 de Abril foi a derrota do autoritarismo e da violência de Estado nas suas formas herdadas do fascismo dos anos 30; e foi o fim da guerra, produto da denúncia do colonialismo, que mudou, ainda antes da Revolução, a forma como a imensa maioria dos jovens imaginavam Portugal e se definiam como portugueses. Na admirável síntese que o Presidente Costa Gomes fez em 1974 perante as Nações Unidas, tomara-se a decisão coletiva de “não mais admitir trocar a liberdade de consciência coletiva por sonhos grandiosos de imperialismo estéril”.

O 25 de Abril não foi de forma alguma um “golpe de Estado” clássico. Resultou da iniciativa de uma geração de jovens capitães, 30 e poucos anos, formados todos nas escolas militares impregnadas de colonialismo, nacionalismo autoritário e lições mal aprendidas da Argélia e do Vietname, valores que, em África, na guerra, começaram a repudiar. Derrubada a ditadura, sustentada, afinal, apenas sobre o medo da repressão e a opção irreversível pela guerra, mas sem que ninguém se quisesse bater por ela, a Revolução irrompe pela força irreprimível de todo aquele povo que, contra a vontade (ou a expectativa) do MFA, invadiu não apenas as ruas, entre cravos e aplausos, mas cercou a sede da PIDE/DGS e as prisões políticas para exigir a libertação dos presos. Da mesma forma, se se chegou, ao fim de poucos dias, a um cessar-fogo nas colónias, foi por vontade dos oficiais e soldados que, na mata, desesperavam por uma solução política para a guerra, e dos guerrilheiros africanos que não ficaram à espera do que se decidisse em Lisboa. O MFA vinha prometer o fim da guerra (era essa a mensagem essencial do seu programa); mas o calendário que alguma vez terá imaginado foi antecipado pela vontade das centenas de milhares de jovens empurrados, ano após ano, para África. O 25 de Abril foi a vontade simultânea dos capitães de fazer a paz e a perceção do povo português de se ter aberto uma oportunidade única de democracia genuína, sem medo e sem guerra.

Desde Sá Carneiro, que comparou aqueles anos a uma “opressão siberiana”, até Cavaco, que achava que quem fez a Revolução era “gente [que] não [estava] boa da cabeça” e que Portugal se “[parecia] um país de loucos” (Autobiografia Política, 2002), as direitas continuam a detestar o 25 de Abril. Nada de mais natural: a nossa democracia nasceu num “dia inicial inteiro e limpo” que abriu as portas de uma Revolução. E é por isso que comemorá-la não é, nem por um minuto, um ritual oco e sem utilidade. Nos tempos que correm, poucas festas podem ter mais valor prático!

 

O autor é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico


sexta-feira, 12 de abril de 2024

Tiago Franco - Este é melhor não, que é coisa para queimares o arroz que está ao lume



* Tiago Franco

 

ESTE É MELHOR NÃO, QUE É COISA PARA QUEIMARES O ARROZ QUE ESTÁ AO LUME |

Quem me conhece razoavelmente bem sabe que o meu sonho, desde há muito, muito tempo, é dar a volta ao mundo. Desde que me lembro que é assim. Há duas razões mais ou menos simples para isso. A primeira é por gostas de estar em sítios onde aconteceu algo que apenas vi num livro de história. Era a minha disciplina favorita na escola e julgo que se tivesse crescido num país de primeiro mundo, com empregos e salários decentes, provavelmente teria ido por aí. A outra é que eu gosto genuinamente de ver as diferencas culturais entre os povos, até para perceber melhor o meu próprio contexto cultural. No fundo, um acumular de padrões para não ficar fechado e bloqueado num continente que cada vez mais levanta muros em vez de os destruir.

Raramente volto como fui e procuro, sempre que posso, o mais diferente possível daquela que é a minha história. Nesta fase da vida já não tenho paciência para Venezas, Paris e Londres. Quero Kigalis, Vientianes e Managuas. Poucas vezes viajei sozinho porque detesto a solidão e quando o fiz, nunca foi algo que quisesse guardar como memória. A vida, na forma como a imagino, é para ser vivida com afecto, sorrisos e companhia.

Quando não estou a viajar estou a pensar no próximo destino. Não o consigo evitar. Podemos estar entre guerras, pandemias ou crises financeiras. Pode até o meu emprego estar na linha como está, permanentemente, desde que decidi trabalhar por contratos temporários (ou seja, quase toda a minha vida profissional). Mas todo o santo dia eu abro o Google Maps (até porque faz parte do meu trabalho) para procurar caminhos novos.

Ora, tenho a sorte de ter por perto quem me vá aturando nestes sonhos e repita, com alguma frequência, "ok Tiago, qual foi a ideia desta vez?". Eu sonho acordado.

Sou um péssimo companheiro de deslocacão (porque odeio voar) mas acho que compenso quando metemos os pés no chão e as mochilas nas costas. Ir de A para B de carro, comboio ou barco é, de longe, o mundo ideal.

Esperei 11 anos para regressar ao Sudoeste Asiático. Tempo a mais para uma vida que é sempre curta. Parti de um sítio frio, de céu cinzento, onde estava a pressão laboral e a corrida contra o tempo para agradar a mercados capitalistas. Onde todos trabalhamos a troco de salários altos que são absolutamente devorados pelos juros dos créditos à habitacão ou a elevadíssima carga fiscal. Deixei para trás, por uns dias, a sociedade que produz e que se esfola diariamente para conseguir pagar as contas, ditadas por um banco em Frankfurt ou uma guerra que alguém escolheu alimentar em meu nome.

Do outro lado estava um mundo relativamente diferente, com mais sorrisos, com outros problemas certamente mas também com outras solucões. De alguma maneira a vida parece mais fácil debaixo de sol, com sumos de fruta fresca a toda a hora, mar quente, budistas e uma gastronomia que não aborrece nem envergonha. Dizia-me um dos companheiros que por lá já se sentia em casa: "já reparaste que eles estão sempre a sorrir?"

Mesmo com história dramáticas e traumas recentes (por exemplo o genocídio no Cambodia que arrasou com 25% da populacão), aquele pessoal consegue, aparentemente, ter a alegria e a forca de focar nas coisas básicas e importantes da vida. E não pensemos que estamos a falar dos pobrezinhos e coitados. O sudoeste asiático já não é apenas o sítio onde as multinacionais vão coser roupa. Não vi mais gente a dormir nas ruas de Banguecoque do que, por exemplo, no centro de Lisboa, Paris ou Roma.

É dificil explicar a sensacão de viver no aparente caos destas cidades super povoadas. Eu não me importo com a confusão, a enxurrada de gente ou o barulho. Sinto-me acompanhado em ambientes desses. Mas há algo de especial em estar o dia todo na agitacão para, de seguida, dar de caras com uma praia deserta, daquelas que vemos nos postais. Ou entrar numa rua escura ao calhas e uma senhora abrir a cozinha para nos fazer o último pad thai da noite. O que estou a tentar dizer é que, parece-me, por aqui cada dia conta e é vivido de forma intensa. Ainda assim, sem grande pressão ou horários definidos. Tudo se arranja, tudo se desenrasca, há sempre alguém que conhece alguém.

Regresso de um mundo onde tudo vibrava, tinha cor e cheiros para o meu espaco. O tal ocidente civilizado, velho continente que ensina os demais a viver. E o que vejo? Em Portugal voltam-se a discutir temas de 1950, desenterrados por um livro apresentado por Passos Coelho e escrito, entre outros, por fachos como o Jaime Nogueira Pinto. Um idiota daquele partido que teve 100 000 votos sem querer, afirma que as neves do Kilimanjaro ainda lá estão, portanto, isto do aquecimento do planeta é uma tanga.

Parece que ficamos mais estúpidos quanto mais informacão nos disponibilizam. Eu estive no cume do Kilimanjaro em 2008. Os glaciares já eram muito menores nessa altura do que em décadas anteriores. É só ver as imagens aéreas para perceber. Os lagos reduziram o seu tamanho, os glaciares também mas...o facto de existirem, ainda que menores, não quer dizer nada. É tudo uma conspiracão.

Na televisão vejo velhos que, na sua juventude fugiram à guerra colonial, dizerem que o apoio à Ucrânia não pode parar e que é tempo de enviar soldados. Isto porque, claro, já não são as costas deles que lá vão bater. Já para não falar do genocídio em Gaza que nem nos rodapés aparece. Será também estudado daqui a 20 anos.

No meu bairro, em Gotemburgo, há casas a serem vendidas em hasta pública por execucão bancária. Algo que eu nunca tinha visto em 20 anos. Famílias que, por causa das taxas do BCE e a eterna desculpa da Ucrânia, passaram a pagar 3, 4 ou 5000 euros pelas prestacões ao banco e simplesmente...estouraram. Eu já nem consigo perceber como é que se sobrevive em Portugal quando nos países ricos comecam a ficar depenados.

E depois...tudo em nome de quê? Chegamos a meio da nossa vida, eu pelo menos espero ter chegado, a trabalhar dia e noite para pagar contas, sustentar guerras, patrocinar a corrupcão e sermos governados por entidades como o BCE.

Eu, que sou um ferrenho apoiante do estado social e da solidariedade, trabalhei 20 anos para entregar mais de 50% do meu rendimento em impostos e, mesmo assim, ser extorquido mensalmente pela banca, sem que os governos eleitos facam absolutamnete nada. A Europa transformou-se numa zona muito pouco recomendável onde, sem darmos por isso, ficámos acorrentados a um jogo cujas regras mudaram no espaco de 4 anos (desde 2020) e que foram decididas, a meias, entre a banca e a comissão europeia. Nada ou ninguém que eu me lembre de ter eleito para falar ou decidir em meu nome.

A desilusão é tal que, aos poucos, vou desligando as notícias, perco a vontade de escrever, simplesmente não quero saber. Não importa, não interessa. Isto já não é a vida que vinha no guião do "vai estudar e esforca-te para seres o melhor possível no teu local de trabalho". Isto é apenas uma merda.

A vida devia ter menos Ursulas, Putins, Zelenskis e Venturas e mais momentos em família, fotos para a posteridade, recordacões que nos fazem pensar que valeu a pena passar pelo planeta.

Digo isto várias vezes aos meus filhos e é algo em que acredito profundamente. Depois da educacão que será a ferramenta deles para enfrentarem o futuro, tudo o que lhes quero dar são momentos. Experiências, paisagens, um pouco de mundo. Algo que lhes fique na memória e que lhes permita ter um conceito de "bairro" mais alargado quando comecarem, sozinhos, a definir o seu. É esse, para mim, o verdadeiro sentido da vida. É conhecer em vez de acumular. É ir em vez de esperar. É, no fundo, perceber onde estamos e o que fazemos aqui, como dizia o poeta em tempos de má memória.

Em resumo, eu quero que a Ucrânia se foda, que a Rússia se foda, que a Ursula se foda, que a Lagarde se foda, que o Trump se foda, que os fachos se fodam, que os idiotas que apoiam o genocídio em Gaza se fodam ou que os burros que acham que uma Europa com muros é a solucão, se fodam.

No fundo era só isto, mas o poder de síntese nunca fo o meu forte.

 

2024  04 12

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sexta-feira, 5 de abril de 2024

Miguel Tiago - Mil vezes Abril




  • Miguel Tiago
  • 26 MARÇO, 2024

  • Em 2022, o CDS desapareceu do parlamento português e só foi ressuscitado pela necessária bondade de um PSD perdido, querendo estender a mão à direita mais reaccionária e retrógrada, mas sabendo que isso lhe custaria votos. Não se ouviram nem leram, por essa altura, tantos cântigos fúnebres como os que ouvem os comunistas desde a sua fundação.

  • A extinção eleitoral do CDS, não apenas não mereceu dos donos disto tudo e seus papagaios a exaltada e estafada celebração da decadência eleitoral e o anúncio de morte, como lhes assegurou a continuidade da sua presença em diversos órgãos de comunicação social, com honras de comentadores em horário nobre, sem direito a contraditório, sem questionamento, levando para casa os seus milhares de euros para regurgitarem o volutabro que nos pretendem enfiar pelas cabeças abaixo. Nunca houve hora da morte nem certidão de óbito para o cadáver mais evidente da democracia portuguesa, pelo contrário, houve dois anos de custosa e penosa reanimação. Já o PCP, ainda o muro de Berlim não havia caído e tinha a sua morte traçada e decidida.


  • A inexorável morte do PCP, que traduziria o triunfo dos capitalistas que usam o nosso país como mais um dos seus quintais, é decidida nos conselhos de administração das cotadas em bolsa, da banca, nas mais altas instâncias da União Europeria, nas redacções dos jornais, rádios e tvs, mas isso ainda não a tornou realidade. Sabemos que eles estão habituados a decidir tudo: que decidem para que lado sopram os ventos da chamada “esquerda” e da chamada “direita”, que decidem o que diz cada partido, que decidem quando um se extingue e outro se acende. Nós sabemos que a comunicação social dominante, às ordens dos que lhes pagam os anúncios publicitários e dos que lhe capturaram a função por lhe deterem o capital social, tem a capacidade de destruir personalidades, de criar novas e inquestionáveis personalidades de reputada capacidade de mastigar opiniões para no-las dar já macias, semi-digeridas. Também sabemos que a comunicação social tem a capacidade de determinar quanto tempo, com que tom, com que cor e qualidade de imagem, tem cada agente económico, cada marca, cada partido, cada evento político ou social e que, com isso, influencia o conhecimento e opinião que cada um de nós tem sobre a nossa envolvente social, cultural, política e económica.

  • As administrações dos grupos económicos, os grandes accionistas, os monopólios e seus partidos decidem a duração dos contratos dos seus trabalhadores, ou mesmo a ausência de contratação; decidem o horário e decidem se o trabalhador tem direito ou não a ver os seus filhos; decidem quanto o trabalhador leva para casa e decidem quanto querem pagar de impostos; os grupos económicos decidem quanto dinheiro dão a cada partido; quantas horas de televisão vai ter cada líder partidário; decidem em quem bate a polícia; a taxa de juro; o custo da habitação; quem vive na periferia e quem vive na metrópole; quem cá trabalha legalmente e quem cá trabalha ilegalmente; decide quem condenam os tribunais; decide se a guerra é boa ou má; o valor de uma vida negra, de uma criança árabe ou de milionários enlatados no fundo do mar; e por isso se compreende que estejam habituados a que os seus desejos sejam profecias autorrealizáveis. O capitalismo faz navegação à vista no imediato, mas planifica bem a gestão do longo-prazo e tem a elite académica, os intelectuais orgânicos de um extremo ao outro do espectro dominante, do wokismo ao neo-fascismo, dispõe de uma capacidade criativa capaz de torcer temporariamente até algumas regras do seu próprio funcionamento e dispõe de um aparelho global de destruição militar que influencia determinantemente a divisão internacional do trabalho.

  • Podendo contorcer-se nas suas próprias regras, o que o capitalismo não pode contornar, contudo, são as leis da história. As leis que regem o movimento histórico, com fluxos e refluxos, com acelerações e desacelerações, são um substrato universal em que até o mais poderoso império é forçado a viver.

  • Declarada que está há décadas a morte do comunismo e, em Portugal, do Partido Comunista Português, essa profecia nunca será cumprida na medida em que, existindo um sistema de exploração, nada pode impedir o alargamento em número da classe de explorados e o aumento do seu poder real. Mesmo uma eventual extinção de um partido operário não significará em momento algum a extinção da força da classe que o criou, porque essa força material é crescente, independentemente de ser consciente. Estando cada vez mais consolidadas as condições objectivas para uma revolução, o capital aposta na desmobilização das condições subjectivas, numa dialética de forças que é uma batalha constante, em cada lugar de trabalho, em cada rua, em cada cidade.

  • O êxtase com que todos os quadrantes de comentadores e quase todos os partidos, mais ou menos assumidamente, festejam o resultado negativo da CDU e do PCP nas eleições portuguesas de 2024 é a celebração indisfarçável dos que anunciam o colapso das ideias revolucionárias e do PCP, dos mesmos que focam nas forças mais reaccionárias a sua atenção, seja ela por simpatia ou por simulacro de apaixonado combate.

  • Não é nosso papel, nem isso nos aproveitaria, bater no peito afirmando ter orgulho nos nossos erros. Mas também não é nosso papel interiorizar todas as responsabilidades em torno de resultados eleitorais ou organizacionais que não vão ao encontro das nossas legítimas e justas expectativas. Do que o povo e os trabalhadores precisam, agora mais do que nunca ao longo das últimas décadas, é de uma linha política de afirmação de um caminho novo, claro e inequívoco, que centre na capacidade criativa das massas populares, na sua capacidade de gestão e resolução dos seus próprios problemas, o rumo para a ruptura com o lodaçal em que a grande burguesia tem afundado o país, sacrificando os trabalhadores, os jovens, as mulheres e os reformados.

  • Terá, porventura, existido uma compreensão de que o PCP e a CDU disputavam um lugar de influência sobre o PS, quando esse não é o campeonato em que jogam estas forças: estão no parlamento e nas ruas para levar a voz dos trabalhadores a todos os cantos da democracia e para construir uma alternativa política que não se constrói de remendos, mas de rupturas. Não se candidataram para ser voz da consciência de um PS decrépito e degradado, comprometido com novembro e os grupos económicos até à medula, mas para criar as condições necessárias para o fim da alternância entre os partidos que estão ao serviço da grande burguesia. Claro que não desperdiçarão, e nem podiam, neenhuma oportunidade para melhorar as vidas dos que aqui vivem e trabalham, mas o seu projecto é de grande fôlego e não se contém em “programas mínimos”. 

  • Do que precisamos é de clarificar o que nos divide, o que nos distingue, evitando a tibieza e a flagelação, de cara erguida com a certeza de que cada um de nós dará tudo o que tem pela liberdade, pela democracia e pelo progresso. Dissipar as dúvidas criadas pelas novas nuvens de confusão lançadas sobre o que significa ser “de esquerda” ou “de direita”, clarificar que a verdadeira distinção se coloca entre os que se posicionam do lado do trabalho e os que se põem do lado do capital, entre os revolucionários e os conservadores, os que pretendem ultrapassar o actual modo de produção e os que pretendem mantê-lo às custas da exploração do trabalho, do sangue das guerras, da submissão do neocolonialismo e da destruição do planeta e exaustão dos seus recursos.

  • Mais do que nunca é preciso distinguir o que define o projecto revolucionário e concretizar as linhas de objectivos imediatos, concretizáveis e alcançáveis à escala da vida dos trabalhadores de hoje: romper com a submissão à classe dominante organizada em União Europeia, abandonar a subordinação à grande burguesia nacional e internacional que esmaga os trabalhadores e parte significativa da pequena-burguesia, assumir a nacionalização dos sectores estratégicos da economia como primeiro passo para qualquer ruptura real, e acertar o passo com 1974, sem ignorar que a revolução ficou inacabada, o que significa que deve ser terminada.

  • Abril vive nos corações dos portugueses, da juventude, dos trabalhadores, dos homens e mulheres que aqui vivem, incluindo dos 70% dos portugueses que tinham menos de 5 anos ou ainda não eram nascidos porque muitas das conquistas ainda vivem na nossa realidade. Mas isso não significa que necessariamente viva com esse nome (muitos sentem Abril e não lhe sabem o nome): ir ao concreto, avaliando e estudando o passado, olhos postos no futuro, ultrapassar a incompreensão e, nos cinquenta anos da revolução, mais do que dizer mil vezes Abril, afirmar como objectivos a recuperação da força dos trabalhadores na política, a participação directa dos trabalhadores na gestão das empresas e do estado e a colocação do estado e dos seus instrumentos ao serviço do povo e do país. As formas para atingir mais organização e mais luta – que são as mesmas, interdependentes e interpenetrantes – são bem conhecidas dos que lutam num colectivo supra-centenário: organizar para lutar e organizar na luta em torno da questão salarial, dos problemas da juventude, pelos serviços públicos e pela cultura, pelo ambiente e pela produção nacional, pela habitação e pela paz.

  • Por mais voltas que demos, a pandemia e a guerra intercapitalista na Ucrânia, demonstram como os adversários dos trabalhadores aproveitam e aproveitarão cada oportunidade para corroer o mais forte instrumento político da sua classe, pelo que nada, como sempre soubemos, substitui o contacto directo, a organização no local de trabalho, a penetração nos bairros e nas comunidades, a chamada das margens para o trabalho unitário, alargando o caudal de descontentamento organizado. Além de ser o único caminho para o fortalecimento da resposta de massas e o único para vencer os obstáculos comunicativos, é a mais poderosa força contra os projectos mais reaccionários e saudosistas que acolhem a simpatia da comunicação social e do capital. Independentemente dos resultados eleitorais, que pretendemos os melhores e mais correspondentes ao esforço real que se faz, é impossível destruir um projecto cujo trabalho é uma extensão das aspirações e anseios das massas trabalhadoras. É preciso garantir que o é. ~
https://manifesto74.pt/mil-vezes-abril/#more-8995

terça-feira, 2 de abril de 2024

Ivo Rafael Silva - E no entanto ela estupidifica-se


POR IVO RAFAEL SILVA
15 MARÇO, 2024

Fica desde já a nota e em jeito de aviso prévio: se alguém, por acaso, estiver aqui à espera de um artigo que tente normalizar, inocentar ou desculpabilizar, directa ou indirectamente, o 1 milhão de votantes – e nem que fossem 50 milhões… – num partido de extrema-direita em pleno século XXI, pode, desde já, tirar o cavalinho da chuva. Se alguém estiver à espera da narrativa ou teoria de que «isto é só gente indignada» ou «revoltada», pura na sua sacrossanta ingenuidade, que saiu de casa, naquele dia, para ir «inocentemente» colocar um voto num partido de gente que acha que o lugar dos pretos é em África, que o dos gays é numa ala psiquiátrica, que o das mulheres é na cozinha, que as vacinas são chips e/ou transformam pessoas em jacarés, que os ciganos devem ser deportados, ou de que no tempo do fascismo, da fome, da censura, da polícia política «é que isto era bom», pode já parar por aqui. Porque aquilo que aqui se dirá, ou escreverá, a respeito de o que se passa não apenas em Portugal, mas em muitas outras latitudes do mundo actual é que não há outra forma objectiva, concreta e factual do que chamar «estupidificação colectiva» àquilo que é, de facto, «estupidificação colectiva», ou «fascização crescente e progressiva das sociedades» àquilo que é, indiscutivelmente, a «fascização crescente e progressiva das sociedades».


O mundo de hoje não está voltado para o conhecimento. O mundo de hoje está voltado, precisamente, contra ele. As sociedades capitalistas afrontam os pressupostos científicos, negam-nos, conduzem tudo e todos para o universo da mentira, para a ignorância, para a deturpação, para a descontextualização, para a confusão propositada e voluntária das discussões, para o dichote fácil, para o embrutecimento geral, reforce-se, do indivíduo. Nos tempos correntes, não se procura sustentar uma convicção sólida baseada em quaisquer princípios de natureza filosófica ou ideológica. Não se valoriza – antes se combate – o pensar, o reflectir, o estudar com critério todos os assuntos. Por outro lado, as convicções do mundo de hoje formam-se a partir de um vídeo de 30 segundos numa qualquer rede social. Não se lê um livro, não se lêem, sequer, textos com mais do que um parágrafo. Consomem-se memes, imagens com soundbytes, clips com ditas «verdades» que são até, na maioria dos casos, autênticas e completas «mentiras». Em qualquer ponto do mapa cibernético, há-de estar, porém, uma qualquer referência que sustente aquilo que se «quer» que seja verdade. Quando a mentira encaixa naquilo que, por várias razões, traumáticas ou não, se quer voluntariamente acreditar, a mentira passa a ser assim o guia da acção. Incluindo, naturalmente, a acção política, a militância e o voto.

Estaríamos todos bem mais descansados, com a vida mais facilitada ou, pelo menos, mais esperançosa, acaso houvesse, porém, uma só causa, uma só razão, para justificar todo este tenebroso contexto. Mas não há só uma causa. Há várias e são complexas. E uma delas terá que ver com aquilo que se quereria, ou desejaria, fosse a verdadeira casa da formação e estruturação do indivíduo: o ensino, a escola. Os sistemas e serviços educativos não têm conseguido acompanhar a velocidade da tecnologia. O ensino não tem pernas para combater, desmentir, explicar, superar, a doutrinação que é incutida pelas máquinas. O capital ainda não consegue, ou tem pelo menos muito mais dificuldade, em doutrinar através do ensino tradicional. Mas consegue, por outro lado, com toda a facilidade e com meios muito mais cativantes, impor determinado pensamento, determinados conceitos ou preconceitos, uma suposta «informação» que, tudo somado, vai significar a construção de um indivíduo não-pensante, acrítico, acientífico, um indivíduo-produto, serventuário e iludido.

A forma como a educação é suplantada pela tecnologia é, pois, uma parte deste problema. Alia-se, também, à falibilidade dos conteúdos que os tempos exigem, à falta de consciência histórica que daí emana – porque, naturalmente, eles não sabem, não viveram, o que foi o fascismo –, tudo fazendo com que a expressão «valores de Abril» diga zero a uma franja enorme dos jovens e dos menos jovens. Sem memória, sem consciência, sem instrução, mas com bombardeamento cibernético diário controlado pelo sistema capitalista, fica criado o caldo mental que leva à já citada estupidificação da sociedade, muito conveniente aos interesses que ganham com partidos e/ou governos de extrema-direita.

De uma sociedade estupidificada, não se podem esperar actos inteligentes, decisões acertadas e governantes competentes. Não se pode esperar uma governação justa, vinda de um sistema que só funciona se houver, precisamente, injustiça social, económica e financeira. O capital promove a iliteracia, o baixo grau de conhecimento, a desilustração, a falsidade, porque quanto mais maleável, manipulável, enganada e iludida estiver a massa que constitui a base da sua riqueza exploratória, mais e melhor proveito terão com isso os seus mandantes e beneficiários.

Não se pode, pois, neste estágio e no rumo que se segue, esperar resultados de progresso, mas antes e obviamente as consequências de políticas de retrocesso. Não haverá fórmulas mágicas capazes de inverter a situação, mas uma coisa nos parece certa: ter medo das palavras, negar a estupidificação massiva em curso, negar por algum decoro a fascização das sociedades, insistir na brandura das «compreensões» como modo de enfrentar quem tem, cada vez mais, os braços estendidos e os punhos cerrados, é capaz de ser tão eficaz como pregar no deserto.

https://manifesto74.pt/e-no-entanto-ela-estupidifica-se/