sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Luanda - Os caloiros do Salvador Correia


RECORDAR É VIVER : SALVADOR CORREIA - O início do ano e as praxes

De: Apelido MSNManuel_Sardinha (Mensagem original) Enviado: 5/9/2006 21:31

1965- Setembro/Outubro - O fim das Férias e o início do Liceu

.Isto tocou a uma grande parte de nós. Este ano as férias grandes foram ligeiramente mais curtas. Tive que fazer três exames: o da 4ª classe e os de admissão, à Escola Técnica e ao Liceu.

.Como estudava no C. D.Maria II, foi na Escola 7, ali bem perto da Igreja do Carmo, em que havia um acesso pela Vasco da Gama, e outro pela Luís de Camões. Tudo correra optimamente, e, ao contrário do ano passado, em que fiquei empatado com a Fernanda Bizarro, foi a minha prova a melhor do exame dos jindengue lá do Colégio. Mas isso sempre me fora indiferente, e também, ao contrário do ano passado, tive que ir à oral – penso que era obrigatório.

.E… falando de orais, lembro-me que a Português me foi sorteado sempre o mesmo texto nos três exames “O Frade e o Salteador”- na Escola 7, na Emídio Navarro e no Salvador (acho que a pág. já estava viciada para abrir sempre ali, no mesmo texto) - de um livrinho que a minha mãe sempre guardou religiosamente, e que, embora um pouco gasto, eu ainda conservo aqui por casa.

.Outra coisa que me ficou presente na memória. O prof. que me fez exames no Liceu Salvadore era bem conhecido de montes de gente – o Dr. Loureiro que veio a abrir o S.M. Goretti – que, embora sempre muito simpático, desinibindo e dando um empurrãozinho a quem necessitava, durante a prova escrita de Português não se fartou de assobiar umas modinhas, desde o início até ao fim.

.E aí estava eu aprovado e com três opções a meu bel-prazer. Escolhi o liceu, e, naquele tempo as aulas começavam só a 1 de Outubro.

.Mas ali bem perto, no Bairro das Ingombotas, onde morava, os colegas mais velhos do que eu já me iam informando o que ia acontecer-me. “Sabes, lá no liceu ninguém se chama pelo nome! Todos têm um número atribuído, e uns se chamam aos outros pelo número!” Outro: “Eh pá, vais apanhar uma carecada do caraças! Faz mas é tudo o que dizem pra fazeres, senão… tás lixado, ainda te fazem umas picadas pela cabeça toda!”.

. Com estes avisos todos, no dia 1 de Outubro atravessei a D. Antónia Saldanha, primeiro na parte alcatroada, e depois pela parte de terra batida, a seguir à Fernão de Magalhães, lá desemboquei na Rampa do Liceu, bem ao meio. Logo dali vi o grande movimento à entrada do Liceu e pela Rampa jardinada, com uma maior concentração à entrada e no espaço interior, pelas escadas acima. Subi a íngreme Rampa e o filme que me fôra contado pelos mais velhos tornava-se agora mais real, podendo ouvir-se um movimento de “algazarra” no amontoamento de estudantes, quase todos rapazes, do lado exterior.

.Era a caça ao caloiro. “Ó miúdo és do 1º ano?!..” E lá me mandaram colocar a jeito, baixando a cabeça, enquanto um bramia a tesoura de contentamento, dando-lhe aqueles movimentos entusiasmados que produziam o som metálico de abrir e fechar repentina e constantemente a tesoura, outro ensaiava a técnica da circunferência perfeita, colocando um angolar na coroa da minha cabeça, desenhando uma circunferência com a esferográfica no couro cabeludo. E euuu...

.Depois era só cortar o cabelo que constituía o círculo até fazer uma careca, tão ou mais perfeita que a de um seminarista. Hagh! O executante, após a feitura da coroa, pegava na sua Bic e rubricava a obra de arte, apondo um carimbo à moda de um punho assente de cima pra baixo na mesma.

. “Caloiro… Baixa a Careca!! E lá baixava eu a tola! E eles, que andavam em grupo, lá malhavam com os dedos todos unidos neste maçarico.

.A obediência e a simpatia que cada caloiro demonstrasse era meio caminho andado para que tudo corresse normalmente, porque quem espigasse tava tramado. Apanhava forte e feio, com a palma da mão, com pequenos sacos com sal grosso, ou com as colheres de pau, algumas lindamente decoradas a cores, para que o caloiro medisse e reflectisse, antes que se armasse em corajoso protestante! Mas o melhor mesmo, por segurança, era arranjarmos um padrinho, um mais velho de preferência conhecido, daqueles considerados, ou com algum status, e não importava o tipo de status entre os mais velhos, tinha era que ter peso. “ Hê malta!!.. Este é meu conhecido, meu afilhado!” Aí rolava tudo bem melhor e o malhanço numa careca era não mais que um cumprimento.

.Gente do meu tempo… um doidão chamado Álvaro, um Albano, o Zé Peneda, o Valdemar Parreira, o Rui Monteiro, o Paquito e o Dente (vulgo Alex do chá das seis), e muitos outros que por aqui andarão, todos da turma G 65/66.

.Um abraço a todos.

Manel S.

in AntigosdoLiceuSalvadorCorreia@groups.msn.com

NOTA -
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* Victor Nogueira
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Lembro-me desta praxe, que era esperada com terror pelos recém-chegados. A mim puseram-me logo o alcunha de Pequenino ou de Mosquito Eléctrico, entre outras, mas livrei-me dos «carolos» porque algum calmeirão (veterano) me tomou sob a sua protecção. Outra praxe era a Festa dos Finalistas, em que alguns muito poucos vestiam capa e batina, e as «arruadas» em frente ao Liceu no final do ano, que muitas vezes terminavam com a intervenção da Polícia e a ida à esquadra dos mais recalcitrantes.
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Duma dessas vezes foi na leva o Sá Viana Rebelo, filho do Governador Geral de Angola, o qual ia dizendo ao polícia que o levava para a «ramona» (carro para transportar os presos) de quem era filho, recebendo como resposta «Pois, pois, e eu sou o Presidente da República». Resumindo e concluindo, pouco depois, na esquadra, era dada ordem de soltura a toda a malta.
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Estas praxes vigoravam no Liceu Salvador Correia e não sei se em mais qualquer Escola Secundária. Quem andava no Liceu era a «elite», mas fora aquelas, nenhuma das praxes de Coimbra se implantou e teriam sido adoptadas porque, não havendo qualquer universidade em qualquer das colónias, o Liceu dava um estatuto «elevado». Até havia uma frase que a malta do Liceu usava quando via uma jovem bonita acompanhada dum rapaz: «Ó ... , larga o osso que não é teu, é da malta do Liceu».
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Mas havia outras normas, de que já falei noutro post, como aquela que proibia os alunos de andarem com a camisa fora das calças ou calções (o que era normal cá fora) ou com os botões da camisa desabotoados. Uma vez o contínuo não me deixava entrar com a balalaica fora dos calções e eu dizia-lhe que aquilo era uma camisa casaco, para andar fora das calças, ele insistia, armou-se um escarcéu tal que lá me deixou entrar.
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Nos intervalos (borlas) faziamos grandes batalhas campais nas barrocas perto do Liceu, com punhados de areia, vestindo as camisas ao contrário para no regressso às aulas não verificarem que estavam sujas de barro. Por vezes aparecia um contínuo, salvo erro o senhor Manuel, alcunhado do «Ramona», para anotar o nome, ano e número dos «malfeitores» e era uma debandada geral. Quem não escapasse à lista já sabia que constaria da Ordem de Serviço emanada da Comissão Disciplinar, lida em todas as turmas, com o nome e a pena aplicada a cada recalcitrante, a máxima sendo a expulsão do Liceu. Claro que não havia processo disciplinar, nota de culpa, possibilidade de defesa... Havia lá disso em Angola, onde no entanto no terceiro ciclo se podia discutir abertamente a independência de Angola, mesmo nas aulas do Reitor, pois muitos só conheciam Portugal quando resolviam vir continuar estudos no «Puto», o que só era privilégio para uma minoria.
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Outra nota - Grande discussão houve lá em casa antes do 1º dia de aulas: eu queria ir ajoujado com todos os livros e cadernos, pois era isso que sucedia na escola primária. Mas a minha mãe lá me conseguiu convencer a só levar em cada dia os livros das disciplinas daquele dia, e que em cada disciplina teria um professor diferente.
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Naquele tempo quem seguisse pelo Liceu não precisava de fazer exame da 4ª classe, só o de admissão ao Liceu, que substituia aquele e lhe era equivalente. Eu não queria fazer o da 4ª classe, por inútil, mas o professor Pereira, da Escola Primária nº 15 de Paulo Dias de Novais, atendendo a que era dos seus melhores senão o melhor aluno da 4ª classe, lá convenceu os meus pais, para «prestígio» dele, e assim fui aos dois e nos dois fiquei aprovado.
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1 comentário:

De Amor e de Terra disse...

É tão bom reviver um passado como este!
Deixa-nos uma sensação de regresso ao tempo inconsequente em que tudo era de alegria, quando as pequenas tragédias passavam, como fumo!...



Maria Mamede