quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Miguel Cardina - Os estrategas do cinismo

* Miguel Cardina

 «As televisões estão cheias de estrategas do cinismo. Compreendem quem se indigna com o que se passa em Gaza, mas acham que é preciso “prudência” (adoram esta palavra). Referem o direito internacional, mas concluem que quem manda, pode mesmo. Acham que tudo é “complexo” (também adoram esta), mas têm muito pouca consideração pelos sinuosos trajetos da história.   


Num passado muito recente, os estrategas do cinismo contestavam a utilização do termo "genocídio", porque uma coisa é dizimar um povo e outra é *querer* dizimar um povo. Ontem ouvimo-los de novo: "a flotilha não é humanitária porque não vai resolver o problema da fome em Gaza", disse o cínico moderado. "Tudo aquilo é simbólico", determinou o cínico literal. "Pior: é um frete ao Hamas!", vociferou o cínico radical. "Ou uma estratégia para arranjar um emprego futuro", escreveu o cínico empreendedor. "É preciso não ver o mundo a preto e branco e contemplar toda a sua intrigante palete de cinzentos", afirmou o cínico ponderado.

Ontem de manhã, Luís Montenegro vestiu a pele de cínico retórico. Temendo que a palavra “missão” lhe queimasse o sorriso sibilino, falou de uma – breve pausa dramática – “intervenção”, de uma – outra micro-pausa dramática – “iniciativa”. À noite, o ministro Rangel assumiu a pose do cínico dissimulado: foi às televisões dizer que os serviços consultares estão a seguir o assunto com proximidade, polemizou com Mariana Mortágua, falou da democracia em Israel e afirmou que a flotilha “optou” por chegar na véspera do feriado religioso do Yom Kippur. Só lhe faltou mesmo dizer que os atrasos a que a flotilha foi sujeita, com ataques de drones e avarias várias, foram autoinfligidos e que toda a operação não passa, no fundo, de uma disfarçada ação antissemita.

Na Grécia Antiga, os velhos cínicos desprezavam a opinião pública, as convenções e o poder. O mundo dá voltas e as palavras mudam de significado. Hoje, os estrategas do cinismo são os apóstolos do poder realmente existente e a voz gourmetizada de muito do que se escreve nas redes sociais. Se agora o vemos melhor, devemo-lo também à ação corajosa de quem integra a flotilha humanitária. Gente que combate a resignação e a hipocrisia e que merece, por isso, toda a nossa mobilização para exigirmos a sua libertação imediata e todo o nosso empenho - mesmo em pequeníssima escala - para que se pare o genocídio e se ajude a concretizar o velho sonho de uma Palestina livre.»   

Miguel Cardina no Facebook
https://entreasbrumasdamemoria.blogspot.com/2025/10/os-estrategas-do-cinismo.htm 

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