sábado, 11 de outubro de 2025

Flávio Almada - Reflexão “Erradicar a Cova da Moura”


Militarizar as subjetividades significa implodir todos os vínculos possíveis de solidariedade, pois estamos numa guerra de todos contra todos. A candidata da coligação PSD/CDS à Câmara da Amadora, Suzana Garcia, acompanhada pelo dirigente do PSD e ministro das Infraestruturas e Habitação, Miguel Pinto Luz, durante uma visita à Cova da Moura, na Amadora, 1 de Setembro de 2025 (fotografia de José Sena Goulão/Lusa)

Reflexão “Erradicar a Cova da Moura”: entre o léxico do genocídio e a militarização das subjectividades

No passado dia 25 de agosto de 2025, a candidata à Câmara Municipal da Amadora Suzana Garcia afirmou já ter um programa elaborado com o Ministério das Infraestruturas para a “erradicação da Cova da Moura”. Para além de “vou mesmo erradicar aquilo tudo”, a higiene urbana que considerou na sua linguagem – “um dos piores cancros da cidade” – também faz parte das prioridades da candidata, apoiada pelo PSD, CDS, PPM, RIR e MPT.

No dia seguinte, o Ministério das Infraestruturas e Habitação desmentiu a candidata do PSD, negando a existência de qualquer acordo relativamente à  “erradicação” da Cova da Moura.

No entanto, Miguel Pinto Luz, o ministro que desmentiu Susana Garcia, marcou presença na campanha eleitoral desta candidata no dia 1 de Setembro. Uma visita que era para ser na Cova da Moura, mas não saiu do parque de estacionamento, localizado fora do bairro, junto ao Polidesportivo.

Seguindo, antes mesmo da candidata Susana Garcia, o partido fascista Chega espalhou diversos outdoors em toda a Amadora, apresentando a imagem do seu candidato à Câmara Municipal, Rui Paulo Sousa, ao lado de André Ventura.

A maioria desses outdoors está localizada nas entradas dos bairros habitados maioritariamente por pessoas racializadas, empobrecidas e economicamente mais vulneráveis, ostentando a seguinte inscrição: “vamos limpar a Amadora“. 

Em sequência, Rui Paulo Sousa expressou a mesma opinião, com a seguinte declaração na sua página do Facebook: “Vamos limpar a Amadora da bandidagem, da violência gratuita e devolver o município aos Amadorenses de bem!”.

Perante tudo isto, propomo-nos aqui fazer algumas considerações.

Em primeiro lugar, é preciso dizer que não existem “barracas” no bairro Alto da Cova da Moura. Isto revela, já em si, que o teor da linguagem utilizada procura ludibriar a mente milhares de pessoas que vivem atarefadas, na batalha pela sobrevivência e a dos seus filhos que desconhecem a Cova da Moura.

É preciso também dizer, pelo que sabemos à data [1 de Setembro], que não houve nunca nenhuma conversa entre a Suzana Garcia e os moradores da Cova da Moura, o que revela o hábito do paternalismo racista de quem se sente no direito de decidir o futuro de milhares de pessoas, sem que estas tenham uma única palavra a dizer sobre as suas vidas.

Tanto Suzana Garcia, como Rui Paulo Sousa deram grandes dentadas aos discursos coloniais dos séculos passados, conjugando romantismo nacionalista com visões teleológicas da história,  prognosticadoras da realização dos destinos da nação e da raça, sob a incumbência de um suposto trabalho sacrificial de salvar e expiar os males do “indígena”.

Expressões como “limpar a Amadora” ou “erradicação da Cova da Moura” revelam com notável clareza como a linguagem zoológica está presente, geralmente, no discurso da direita e da extrema-direita, relativamente aos imigrantes, pessoas racializadas e pobres, inserindo-se naquilo que Frantz Fanon chamou de “vocabulário colonial”.

São discursos higienistas que associam a Cova da Moura, os bairros empobrecidos e racializados aos corpos patogénicos. Só faltava recomendar abertamente a pulverização de antiparasitários e outros químicos para extirpar os vetores das doenças.

Em segundo lugar, embora possa parecer estranho (e em verdade não deveria ser), mas insinuar “limpar Amadora” e/ou “vou mesmo erradicar aquilo tudo” indiciam que os efeitos do genocídio em curso na Palestina já se fazem sentir em Portugal, quando olhamos para a carga semântica das expressões e dos léxicos supracitados.

Quanto a nós, essas expressões ecoam com “limpar Gaza”, pronunciado pelo fascista e narcisista Donald Trump, ou “Gaza deve ser terraplenado”, dito pelo fascista ministro israelita Bezalel Smotrich e outros nazi-sionistas de Israel que neste preciso momento prosseguem com o genocídio, em livestream, sobre o povo palestiniano.

Importa enfatizar que Susana Garcia fez um vídeo intitulado “Vamos erradicar a Cova da Moura” onde aparece a conduzir um buldózer, numa sequência de imagens das casas da Cova da Moura, afirmando: “estou aqui para arrasar com o clandestino […]

Esse vídeo remeteu-nos para o genocídio que está em curso na Palestina, conduzido pelo macabro estado de Israel, com a cumplicidade do Governo português.

Em Gaza, para quem não sabe ou finge não saber, os buldózeres foram transformados pelas Forças de Defesa de Israel (IDF) num instrumento de destruição em massa. Em particular, os D9s, fornecidos pela empresa norte-americana Caterpilar, foram blindados e equipados com metralhadoras e espingardas. E inclusive houve ofertas de emprego aos condutores de buldózeres para a demolição de Gaza e cujo valor oscilava entre 800 e 1000 euros, por dia.  

O nazi-sionista Rabbi Avrahma Zarbiv, da Brigada Givati das Forças de Defesa de Israel, por exemplo, tornou-se numa celebridade quando admitiu numa entrevista para uma televisão israelita que, como condutor de um D9, demoliu 50 edifícios por semana em Gaza, entre os quais hospitais, escolas, casas particulares, centros de ajuda humanitária e outras infraestruturas da Palestina.

Foram essas razões que levaram a organização The Hind Rajab Foundation (HRF) a pedir a sua prisão imediata por violações graves da Convenção de Genebra de 1949 e do Estatuto de Roma de 1998.

Ademais, o atual genocídio na Palestiniana configura-se (para a história do presente e a memória da geração futura) como o primeiro genocídio em livestream. Isto é, vê-se em direto e em qualquer parte do globo na televisão, nos jornais, nos telemóveis, o que demonstra que o mundo está submetido a um experimento: a industrialização da chacina, a espetacularização da violência sanguinária, o genocídio difundido ao vivo e cuja indignação, salvo raras exceções, deixa muito a desejar.

Numa entrevista no Sumud Podcast, a psiquiatra e psicanalista palestiniana Samah Jabr disse o seguinte: “o que está a acontecer na Palestina e o facto de ser televisionado, o facto de a lei internacional e os direitos humanos não conseguirem parar esta carnificina, está a abalar a crença de muitas pessoas à volta do mundo na humanidade. Isto é traumatizante para além das fronteiras da Palestina ocupada. Não apenas na violência, no silêncio, no choque, na cumplicidade internacional – não diria da comunidade internacional, mas na cumplicidade essencialmente do Ocidente, na cumplicidade dos Estados Unidos, dos Britânicos e no silêncio de muitos países europeus e africanos. O facto de os instrumentos que foram criados para prevenir as atrocidades humanas e o genocídio não se aplicarem aos palestinianos e tornaram-se disfuncionais, isto está a abalar o sistema de crença de muitos grupos vulnerabilizados em todo o mundo”.

Samah Jabr alerta-nos que a naturalização da violência absoluta, despersonalização do povo palestiniano, cujo níveis de ilegalidades e indiferençaseriam inaceitáveis em outra situação, terá a  longo prazo os seus efeitos nefastos.

E podemos dizer que já o sentimos por essas bandas em coisas que apenas os fascistas segredavam baixinho nos seus grupelhos, nas caixas de comentários de internet, mas que hoje são ditas como se fossem normais, inclusive com direito a entrevista no horário nobre da televisão.

Em terceiro lugar, essas duas campanhas fazem parte do projecto neoliberal segundo o qual é preciso fazer uma cruzada de um nós, que invoca o espectro da raça (com todos os seus delírios e fantasias que vêm no pacote), contra eles, instalando o medo, a desconfiança e, consequentemente, “a militarização das subjectividades”.

A militarização da subjetividade tem como objetivo principal “naturalizar a paranoia como modo geral de socialização. Ou seja, construir subjetividades a partir de narrativas de complô dos mais improváveis, das lutas contínuas contra inimigos sempre inesperados, de preservação de fronteiras, dos riscos de contágio e de contato. O que por sua vez pede um modelo de personalidade rígida, fixa, como uma ‘tipologia’.

Trata-se de uma tática que reforça o individualismo inculcado na sociedade, estimulando o princípio salva-se quem puder, cada um faz por si, cada um sabe de si, do qual as indústrias culturais nos acostumaram.

Militarizar as subjetividades significa também implodir todos os vínculos possíveis de solidariedade, pois estamos numa guerra de todos contra todos, que pode inclusive receber nomes como “empreendedorismo”.

Isto acontece porque estamos perante uma crise do capital que exigiria que houvesse uma transformação profunda das condições que geram essas múltiplas crises sistémicas – políticas, ecológicas, económicas, sociais e até de ideias.

Com efeito, como escreveu Vladimir Safatle a propósito do fascismo, a gestão dos problemas “consiste em dizer, nas entrelinhas: não há́ como gerir mais as crises do sistema capitalista a partir do próprio sistema capitalista. No entanto, como não há́ outra alternativa possível, o que resta é salvar uma parte da sociedade e deixar o resto perecer, expulsar o resto de nossas fronteiras, deixá-los na mais absoluta miséria, submete-los a máxima espoliação através do aumento exponencial da violência policial, da precariedade de suas vidas.

Essa política identitária procura inculcar ou/e mobilizar o imaginário racista e classista, que remonta à época colonial, oleada pela atual maquinaria neoliberal.

 

E, com efeito inventar ou/e reatualizar a figura de um inimigo interno, neste caso a Cova a Moura, historicamente criminalizado, para ser usado como bode expiatório, ao qual é atribuído a paternidade dos problemas sociais.

Isto é, camufla-se, portanto, os verdadeiros motivos das frustrações das pessoas da Amadora que trabalham, arduamente, mas que estão cada vez mais empobrecidas, sufocadas pelo aumento estrondoso das rendas e dos bens essenciais de alimentação, culpabilizando outros pobres.

Em quarto lugar, “erradicar a Cova da Moura”,  tal como Suzana Garcia propala, é uma operação que esconde os verdadeiros propósitos e interesses: realizar o antigo desejo das imobiliárias que há décadas cobiçam os terrenos da Cova da Moura.

Pois, os terrenos da Cova a Moura são valiosos devido à localização – perto do centro da cidade – com vias de rápido acesso às autoestradas para sul e norte do país, existência de transportes próximos (autocarros, comboios e metro com a estação da Reboleira), aeroporto, praias, sem esquecer a sua bela vista.

Uma vez que a turistificação, a colonização do espaço pelo capital, transformou Lisboa numa cidade-hotel, expulsando quem não tem dinheiro para as periferias das periferias, a Cova da Moura tornou-se ainda mais apetecível às classes médias e às empresas imobiliárias.

E aos olhos da Susana Garcia e dos seus avatares políticos, os moradores da Cova da Moura serão meros objetos e espetadores da “erradicação”. Ela está redondamente enganada.

Para fechar, aproveitamos para lembrar que a Suzana Garcia terá de mostrar onde há barracas na Cova da Moura. Essa distorção do real só comprova que ela não conhece sequer o lugar sobre o qual fala e quer governar.

https://lisboaparapessoas.pt/2025/10/08/erradicar-cova-da-moura/

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