Reflexão “Erradicar a Cova
da Moura”: entre o léxico do genocídio e a militarização das subjectividades
No passado dia 25 de agosto de
2025, a candidata à Câmara Municipal da Amadora Suzana Garcia afirmou
já ter um programa elaborado com o Ministério das Infraestruturas para a
“erradicação da Cova da Moura”. Para além de “vou mesmo
erradicar aquilo tudo”, a higiene urbana que considerou na sua linguagem –
“um dos piores cancros da cidade” – também faz parte das prioridades da
candidata, apoiada pelo PSD, CDS, PPM, RIR e MPT.
No dia seguinte, o Ministério das
Infraestruturas e Habitação desmentiu a
candidata do PSD, negando a existência de qualquer acordo relativamente à
“erradicação” da Cova da Moura.
No entanto, Miguel Pinto Luz, o
ministro que desmentiu Susana Garcia, marcou presença na campanha eleitoral
desta candidata no dia 1 de Setembro. Uma visita que era para ser na
Cova da Moura, mas não saiu do parque de estacionamento, localizado fora do
bairro, junto ao Polidesportivo.
Seguindo, antes mesmo da candidata
Susana Garcia, o partido fascista Chega espalhou diversos outdoors em
toda a Amadora, apresentando a imagem do seu candidato à Câmara Municipal, Rui
Paulo Sousa, ao lado de André Ventura.
A maioria desses outdoors está
localizada nas entradas dos bairros habitados maioritariamente por pessoas
racializadas, empobrecidas e economicamente mais vulneráveis, ostentando a
seguinte inscrição: “vamos limpar a Amadora“.
Em sequência, Rui Paulo Sousa
expressou a mesma opinião, com a seguinte declaração na sua página do
Facebook: “Vamos limpar a Amadora da bandidagem, da violência gratuita e
devolver o município aos Amadorenses de bem!”.
Perante tudo isto, propomo-nos
aqui fazer algumas considerações.
Em primeiro lugar, é preciso
dizer que não existem “barracas” no bairro Alto da Cova da Moura. Isto
revela, já em si, que o teor da linguagem utilizada procura ludibriar a mente
milhares de pessoas que vivem atarefadas, na batalha pela sobrevivência e
a dos seus filhos que desconhecem a Cova da Moura.
É preciso também dizer, pelo que
sabemos à data [1 de Setembro], que não houve nunca nenhuma conversa entre a
Suzana Garcia e os moradores da Cova da Moura, o que revela o hábito do
paternalismo racista de quem se sente no direito de decidir o futuro de milhares
de pessoas, sem que estas tenham uma única palavra a dizer sobre as suas vidas.
Tanto Suzana Garcia, como
Rui Paulo Sousa deram grandes dentadas aos discursos coloniais dos séculos
passados, conjugando romantismo nacionalista com visões teleológicas da
história, prognosticadoras da realização dos destinos da nação e da raça,
sob a incumbência de um suposto trabalho sacrificial de salvar e expiar os
males do “indígena”.
Expressões como “limpar a Amadora”
ou “erradicação da Cova da Moura” revelam com notável clareza como a linguagem
zoológica está presente, geralmente, no discurso da direita e da
extrema-direita, relativamente aos imigrantes, pessoas racializadas e pobres,
inserindo-se naquilo que Frantz Fanon chamou de “vocabulário colonial”.
São discursos higienistas que
associam a Cova da Moura, os bairros empobrecidos e racializados aos corpos
patogénicos. Só faltava recomendar abertamente a pulverização de
antiparasitários e outros químicos para extirpar os vetores das doenças.
Em segundo lugar, embora possa
parecer estranho (e em verdade não deveria ser), mas insinuar “limpar Amadora”
e/ou “vou mesmo erradicar aquilo tudo” indiciam que os efeitos do genocídio em
curso na Palestina já se fazem sentir em Portugal, quando olhamos para a carga
semântica das expressões e dos léxicos supracitados.
Quanto a nós, essas expressões
ecoam com “limpar Gaza”, pronunciado pelo fascista e narcisista Donald
Trump, ou “Gaza deve ser terraplenado”, dito pelo fascista ministro
israelita Bezalel
Smotrich e outros nazi-sionistas de Israel que neste preciso momento
prosseguem com o genocídio, em livestream, sobre o povo
palestiniano.
Importa enfatizar que Susana
Garcia fez um vídeo intitulado “Vamos erradicar a Cova da
Moura” onde aparece a conduzir um buldózer, numa sequência de
imagens das casas da Cova da Moura, afirmando: “estou aqui para arrasar
com o clandestino […]
Esse vídeo remeteu-nos para o
genocídio que está em curso na Palestina, conduzido pelo macabro estado de
Israel, com a cumplicidade do Governo português.
Em Gaza, para quem não sabe ou
finge não saber, os buldózeres foram transformados pelas Forças de Defesa de
Israel (IDF) num instrumento de destruição em massa. Em particular, os D9s,
fornecidos pela empresa norte-americana Caterpilar, foram blindados e equipados
com metralhadoras e espingardas. E inclusive houve ofertas de emprego aos
condutores de buldózeres para a demolição de Gaza e cujo valor oscilava entre
800 e 1000 euros, por dia.
O nazi-sionista Rabbi Avrahma
Zarbiv, da Brigada Givati das Forças de Defesa de Israel, por exemplo,
tornou-se numa celebridade quando admitiu numa entrevista para uma
televisão israelita que, como condutor de um D9, demoliu 50 edifícios
por semana em Gaza, entre os quais hospitais, escolas, casas particulares,
centros de ajuda humanitária e outras infraestruturas da Palestina.
Foram essas razões que levaram a
organização The Hind Rajab Foundation (HRF) a
pedir a sua prisão imediata por violações graves da Convenção de
Genebra de 1949 e do Estatuto de Roma de 1998.
Ademais, o atual genocídio na
Palestiniana configura-se (para a história do presente e a memória da geração
futura) como o primeiro genocídio em livestream. Isto é, vê-se em
direto e em qualquer parte do globo na televisão, nos jornais, nos telemóveis,
o que demonstra que o mundo está submetido a um experimento: a industrialização
da chacina, a espetacularização da violência sanguinária, o genocídio difundido ao
vivo e cuja indignação, salvo raras exceções, deixa muito a
desejar.
Numa entrevista no Sumud Podcast, a
psiquiatra e psicanalista palestiniana Samah Jabr disse o seguinte: “o
que está a acontecer na Palestina e o facto de ser televisionado, o facto de a
lei internacional e os direitos humanos não conseguirem parar esta carnificina,
está a abalar a crença de muitas pessoas à volta do mundo na humanidade. Isto é
traumatizante para além das fronteiras da Palestina ocupada. Não apenas na
violência, no silêncio, no choque, na cumplicidade internacional – não
diria da comunidade internacional, mas na cumplicidade essencialmente do
Ocidente, na cumplicidade dos Estados Unidos, dos Britânicos e no silêncio
de muitos países europeus e africanos. O facto de os instrumentos que foram
criados para prevenir as atrocidades humanas e o genocídio não se aplicarem aos
palestinianos e tornaram-se disfuncionais, isto está a abalar o sistema de
crença de muitos grupos vulnerabilizados em todo o mundo”.
Samah Jabr alerta-nos que a
naturalização da violência absoluta, despersonalização do povo palestiniano,
cujo níveis de ilegalidades e indiferençaseriam inaceitáveis em outra situação,
terá a longo prazo os seus efeitos nefastos.
E podemos dizer que já o sentimos
por essas bandas em coisas que apenas os fascistas segredavam baixinho nos seus
grupelhos, nas caixas de comentários de internet, mas que hoje são ditas como
se fossem normais, inclusive com direito a entrevista no horário nobre da
televisão.
Em terceiro lugar, essas
duas campanhas fazem parte do projecto neoliberal segundo o qual é preciso
fazer uma cruzada de um nós, que invoca o espectro da raça
(com todos os seus delírios e fantasias que vêm no pacote), contra eles,
instalando o medo, a desconfiança e, consequentemente, “a
militarização das subjectividades”.
A militarização da subjetividade
tem como objetivo principal “naturalizar a paranoia como modo geral de
socialização. Ou seja, construir subjetividades a partir de narrativas de
complô dos mais improváveis, das lutas contínuas contra inimigos sempre
inesperados, de preservação de fronteiras, dos riscos de contágio e de contato.
O que por sua vez pede um modelo de personalidade rígida, fixa, como uma
‘tipologia’”.
Trata-se de uma tática que reforça
o individualismo inculcado na sociedade, estimulando o princípio salva-se
quem puder, cada um faz por si, cada um sabe de si, do qual as indústrias
culturais nos acostumaram.
Militarizar as subjetividades
significa também implodir todos os vínculos possíveis de solidariedade, pois
estamos numa guerra de todos contra todos, que pode inclusive receber
nomes como “empreendedorismo”.
Isto acontece porque estamos
perante uma crise do capital que exigiria que houvesse uma transformação
profunda das condições que geram essas múltiplas crises sistémicas – políticas,
ecológicas, económicas, sociais e até de ideias.
Com efeito, como escreveu Vladimir
Safatle a propósito do fascismo, a gestão dos problemas “consiste em
dizer, nas entrelinhas: não há́ como gerir mais as crises do sistema
capitalista a partir do próprio sistema capitalista. No entanto, como não há́
outra alternativa possível, o que resta é salvar uma parte da sociedade e
deixar o resto perecer, expulsar o resto de nossas fronteiras, deixá-los na
mais absoluta miséria, submete-los a máxima espoliação através do aumento
exponencial da violência policial, da precariedade de suas vidas”.
Essa política identitária procura
inculcar ou/e mobilizar o imaginário racista e classista, que remonta à época
colonial, oleada pela atual maquinaria neoliberal.
E, com efeito inventar ou/e
reatualizar a figura de um inimigo interno, neste caso a Cova a Moura,
historicamente criminalizado, para ser usado como bode expiatório, ao qual é
atribuído a paternidade dos problemas sociais.
Isto é, camufla-se, portanto, os
verdadeiros motivos das frustrações das pessoas da Amadora que trabalham, arduamente,
mas que estão cada vez mais empobrecidas, sufocadas pelo aumento estrondoso das
rendas e dos bens essenciais de alimentação, culpabilizando outros pobres.
Em quarto lugar, “erradicar a
Cova da Moura”, tal como Suzana Garcia propala, é uma operação que
esconde os verdadeiros propósitos e interesses: realizar o antigo desejo das
imobiliárias que há décadas cobiçam os terrenos da Cova da Moura.
Pois, os terrenos da Cova a Moura
são valiosos devido à localização – perto do centro da cidade – com vias de
rápido acesso às autoestradas para sul e norte do país, existência de
transportes próximos (autocarros, comboios e metro com a estação da Reboleira),
aeroporto, praias, sem esquecer a sua bela vista.
Uma vez que a turistificação, a
colonização do espaço pelo capital, transformou Lisboa numa cidade-hotel,
expulsando quem não tem dinheiro para as periferias das periferias, a Cova da
Moura tornou-se ainda mais apetecível às classes médias e às empresas imobiliárias.
E aos olhos da Susana Garcia e dos
seus avatares políticos, os moradores da Cova da Moura serão meros objetos e
espetadores da “erradicação”. Ela está redondamente enganada.
Para fechar, aproveitamos para
lembrar que a Suzana Garcia terá de mostrar onde há barracas na Cova da Moura.
Essa distorção do real só comprova que ela não conhece sequer o lugar sobre o
qual fala e quer governar.
https://lisboaparapessoas.pt/2025/10/08/erradicar-cova-da-moura/
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