Repressão digital suave - Como
a inteligência artificial garante a continuidade da hegemonia capitalista
Se a repressão digital suave
procura sufocar a resistência, a alternativa é redefinir a tecnologia como
ferramenta de libertação.
* Rezgar Akrawi
27 de setembro 2025
Durante a última ofensiva contra
Gaza, milhares de ativistas ficaram surpresos ao ver suas publicações apagadas
ou suas contas restritas simplesmente por documentarem os crimes da ocupação
israelita. Muitos sentiram impotência e revolta, como se suas vozes estivessem
sendo silenciadas de propósito. Não foi uma coincidência ou falha técnica, mas
sim um exemplo vivo do que hoje podemos chamar de “repressão digital
suave”. Trata-se de uma repressão que não aparece necessariamente sob a
forma de bloqueios diretos ou prisões visíveis, mas que se infiltra por meio de
algoritmos invisíveis, remodelando o espaço digital para servir à continuidade
da hegemonia capitalista. Surge então a pergunta: como funciona esse sistema e
como enfrentá-lo?
A repressão digital suave é um
conjunto de políticas e ferramentas tecnológicas usadas para restringir a
liberdade de expressão e controlar o espaço digital por parte das grandes
empresas e dos Estados dominantes, mas de formas que parecem neutras e não conflituosas.
Em vez da censura explícita, da proibição direta ou de medidas abertamente
repressivas, baseia-se em técnicas de ocultação gradual e na criação de um
ambiente em que as pessoas se submetem a uma vigilância invisível — e às vezes
até se autocensuram.
Como funciona a vigilância
invisível? Controlo digital e autocensura voluntária
Imagine que tudo o que você faz em
sua vida digital está a ser monitorizado: as suas deslocações pelo telemóvel,
suas reuniões privadas, até mesmo as suas mensagens pessoais. Não é ficção. As
grandes empresas digitais, em colaboração com Estados hegemónicos, recolhem
sistematicamente esses dados e os analisam para classificar utilizadoras e
utilizadores de acordo com os seus comportamentos e orientações políticas.
Assim, as plataformas tornam-se instrumentos centrais para detetar e conter
tendências críticas, seja através de campanhas de desinformação ou de
mecanismos que reduzem o alcance e a influência de determinados conteúdos.
E não pára por aí. Graças a
algoritmos cuidadosamente projetados, o conteúdo político de esquerda e
progressista é restringido sem precisar ser apagado. Parece que a baixa
interação é resultado do desinteresse do público, mas na realidade trata-se de
uma redução deliberada da visibilidade. Diversos estudos falaram da “bolha de
filtros” que isola pessoas de qualquer conteúdo divergente. Vazamentos internos
do Facebook, por exemplo, mostraram como a empresa reduzia intencionalmente o
alcance de movimentos políticos ou de direitos humanos, enquanto afirmava
publicamente ser neutra.
Com o tempo, muitas pessoas
começam a praticar a chamada “autocensura voluntária”: moderam ou
mudam seu discurso por medo de serem banidas, perderem alcance ou terem suas
contas fechadas. Esse medo altera a natureza do próprio discurso e transforma a
internet em um espaço pré-formatado para servir aos interesses das forças
capitalistas.
A frustração digital
A repressão não se limita a
restringir conteúdo. Existe também uma arma menos visível e ainda mais eficaz:
a frustração digital. Através de um fluxo contínuo de conteúdos
calculados, os algoritmos criam uma sensação generalizada de impotência e
resignação, especialmente entre pessoas com posições de esquerda e
progressistas. De repente, você se vê rodeado por mensagens que insistem que as
experiências socialistas fracassaram e que resistir é inútil. Em contrapartida,
o capitalismo é apresentado como uma força eterna e invencível.
Ao mesmo tempo, promove-se o
individualismo e as soluções centradas no sucesso pessoal — como o consumo ou o
desenvolvimento individual — como alternativas “realistas” à ação política
coletiva. Assim, as pessoas são isoladas umas das outras e convertidas em
consumidoras em vez de militantes. Não se trata de uma escolha espontânea, mas
de uma estratégia de classe cuidadosamente elaborada para abortar qualquer
possibilidade de transformação socialista radical.
Prisão e assassinato digital
Quando nem a censura nem a
frustração bastam, o sistema recorre a um nível ainda mais grave: a prisão
digital. De repente, pessoas comuns encontram as suas contas suspensas por
longos períodos, bloqueadas totalmente ou encerradas sem aviso prévio.
Normalmente, isso é justificado com argumentos como “violação das normas
comunitárias” ou “promoção da violência”, embora o conteúdo censurado
frequentemente seja documentação de crimes capitalistas ou de violações de
direitos humanos.
Em muitos casos, a repressão chega
ao que podemos chamar de “assassinato digital”: a eliminação
completa da presença online de indivíduos ou organizações. Movimentos
operários, organizações de esquerda, meios de comunicação independentes e até
entidades de direitos humanos tiveram seus sites encerrados, arquivos apagados
ou contas desativadas. O exemplo mais evidente é o do conteúdo palestino, que
sofreu exclusões massivas de contas e publicações que denunciavam os crimes da
ocupação, enquanto continuava a ser permitido o discurso de ódio ou a
propaganda da direita israelita. Essas práticas transformam o espaço digital de
um campo de expressão livre em um território rigidamente monitorado, onde o
capital decide o que pode aparecer e o que deve ser enterrado.
Quais alternativas para as
forças de esquerda e progressistas?
Se a repressão digital suave
procura sufocar a resistência, a alternativa é redefinir a tecnologia como
ferramenta de libertação. Isso exige iniciativas de esquerda progressistas que
promovam transparência e controle democrático, além de legislações rigorosas
que criminalizem a vigilância política e proíbam o uso da inteligência
artificial para restringir liberdades.
Não se trata apenas de leis. É
necessário também construir redes de solidariedade transnacionais que
denunciem violações e pressionem as grandes empresas. Utilizadoras e
utilizadores comuns podem participar de boicotes contra empresas que vendem
tecnologias de vigilância a regimes autoritários, colocando-as em listas
negras. Em contrapartida, é essencial apoiar softwares e sistemas de código
aberto geridos por órgãos independentes, com representantes da sociedade civil
e sob controle coletivo, para que se tornem ferramentas de denúncia de abusos,
de monitoramento de governos e de análise de dados para expor práticas
repressivas.
Além disso, as organizações de
esquerda precisam desenvolver as suas próprias ferramentas: desde técnicas de
criptografia e proteção da privacidade até campanhas de consciencialização que
revelem os bastidores dos algoritmos. Afinal, esta luta não é apenas técnica,
mas eminentemente política. Enfrentar a inteligência artificial capitalista é
parte da luta de classes, uma extensão do conflito sobre fábricas e campos no
passado, mas agora no espaço digital.
O exemplo da repressão digital
contra o conteúdo palestino, e contra vozes de esquerda e emancipação em geral,
deixa clara a gravidade do problema. Mas também mostra a lição mais
importante: alternativas são possíveis. Transformar a inteligência
artificial em ferramenta de libertação e vinculá-la a um projeto político de
esquerda progressista pode abrir novos horizontes para a resistência. A
internet não nasceu para ser apenas um mercado de consumo, mas pode ser um campo
de luta comum e internacionalista. Isso, porém, só será possível se ligarmos a
batalha digital a uma luta mais ampla contra o capitalismo e sua hegemonia de
classe, recolocando o ser humano no centro da decisão digital.
Rezgar Akrawi é
um militante de esquerda independente, interessado na esquerda e na revolução
tecnológica, e atua como especialista em desenvolvimento de sistemas e
governança eletrónica.
Fontes consultadas:
O Capitalismo de Inteligência
Artificial: desafios para a esquerda e alternativas possíveis
https://leanpub.com/ai-socialism-pr
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