domingo, 28 de setembro de 2025

Rezgar Akrawi - Repressão digital suave

Repressão digital suave - Como a inteligência artificial garante a continuidade da hegemonia capitalista

Se a repressão digital suave procura sufocar a resistência, a alternativa é redefinir a tecnologia como ferramenta de libertação.

*  Rezgar Akrawi 

27 de setembro 2025

Durante a última ofensiva contra Gaza, milhares de ativistas ficaram surpresos ao ver suas publicações apagadas ou suas contas restritas simplesmente por documentarem os crimes da ocupação israelita. Muitos sentiram impotência e revolta, como se suas vozes estivessem sendo silenciadas de propósito. Não foi uma coincidência ou falha técnica, mas sim um exemplo vivo do que hoje podemos chamar de “repressão digital suave”. Trata-se de uma repressão que não aparece necessariamente sob a forma de bloqueios diretos ou prisões visíveis, mas que se infiltra por meio de algoritmos invisíveis, remodelando o espaço digital para servir à continuidade da hegemonia capitalista. Surge então a pergunta: como funciona esse sistema e como enfrentá-lo?

A repressão digital suave é um conjunto de políticas e ferramentas tecnológicas usadas para restringir a liberdade de expressão e controlar o espaço digital por parte das grandes empresas e dos Estados dominantes, mas de formas que parecem neutras e não conflituosas. Em vez da censura explícita, da proibição direta ou de medidas abertamente repressivas, baseia-se em técnicas de ocultação gradual e na criação de um ambiente em que as pessoas se submetem a uma vigilância invisível — e às vezes até se autocensuram.

Como funciona a vigilância invisível? Controlo digital e autocensura voluntária

Imagine que tudo o que você faz em sua vida digital está a ser monitorizado: as suas deslocações pelo telemóvel, suas reuniões privadas, até mesmo as suas mensagens pessoais. Não é ficção. As grandes empresas digitais, em colaboração com Estados hegemónicos, recolhem sistematicamente esses dados e os analisam para classificar utilizadoras e utilizadores de acordo com os seus comportamentos e orientações políticas. Assim, as plataformas tornam-se instrumentos centrais para detetar e conter tendências críticas, seja através de campanhas de desinformação ou de mecanismos que reduzem o alcance e a influência de determinados conteúdos.

E não pára por aí. Graças a algoritmos cuidadosamente projetados, o conteúdo político de esquerda e progressista é restringido sem precisar ser apagado. Parece que a baixa interação é resultado do desinteresse do público, mas na realidade trata-se de uma redução deliberada da visibilidade. Diversos estudos falaram da “bolha de filtros” que isola pessoas de qualquer conteúdo divergente. Vazamentos internos do Facebook, por exemplo, mostraram como a empresa reduzia intencionalmente o alcance de movimentos políticos ou de direitos humanos, enquanto afirmava publicamente ser neutra.

Com o tempo, muitas pessoas começam a praticar a chamada “autocensura voluntária”: moderam ou mudam seu discurso por medo de serem banidas, perderem alcance ou terem suas contas fechadas. Esse medo altera a natureza do próprio discurso e transforma a internet em um espaço pré-formatado para servir aos interesses das forças capitalistas.

A frustração digital

A repressão não se limita a restringir conteúdo. Existe também uma arma menos visível e ainda mais eficaz: a frustração digital. Através de um fluxo contínuo de conteúdos calculados, os algoritmos criam uma sensação generalizada de impotência e resignação, especialmente entre pessoas com posições de esquerda e progressistas. De repente, você se vê rodeado por mensagens que insistem que as experiências socialistas fracassaram e que resistir é inútil. Em contrapartida, o capitalismo é apresentado como uma força eterna e invencível.

Ao mesmo tempo, promove-se o individualismo e as soluções centradas no sucesso pessoal — como o consumo ou o desenvolvimento individual — como alternativas “realistas” à ação política coletiva. Assim, as pessoas são isoladas umas das outras e convertidas em consumidoras em vez de militantes. Não se trata de uma escolha espontânea, mas de uma estratégia de classe cuidadosamente elaborada para abortar qualquer possibilidade de transformação socialista radical.

Prisão e assassinato digital

Quando nem a censura nem a frustração bastam, o sistema recorre a um nível ainda mais grave: a prisão digital. De repente, pessoas comuns encontram as suas contas suspensas por longos períodos, bloqueadas totalmente ou encerradas sem aviso prévio. Normalmente, isso é justificado com argumentos como “violação das normas comunitárias” ou “promoção da violência”, embora o conteúdo censurado frequentemente seja documentação de crimes capitalistas ou de violações de direitos humanos.

Em muitos casos, a repressão chega ao que podemos chamar de “assassinato digital”: a eliminação completa da presença online de indivíduos ou organizações. Movimentos operários, organizações de esquerda, meios de comunicação independentes e até entidades de direitos humanos tiveram seus sites encerrados, arquivos apagados ou contas desativadas. O exemplo mais evidente é o do conteúdo palestino, que sofreu exclusões massivas de contas e publicações que denunciavam os crimes da ocupação, enquanto continuava a ser permitido o discurso de ódio ou a propaganda da direita israelita. Essas práticas transformam o espaço digital de um campo de expressão livre em um território rigidamente monitorado, onde o capital decide o que pode aparecer e o que deve ser enterrado.

Quais alternativas para as forças de esquerda e progressistas?

Se a repressão digital suave procura sufocar a resistência, a alternativa é redefinir a tecnologia como ferramenta de libertação. Isso exige iniciativas de esquerda progressistas que promovam transparência e controle democrático, além de legislações rigorosas que criminalizem a vigilância política e proíbam o uso da inteligência artificial para restringir liberdades.

Não se trata apenas de leis. É necessário também construir redes de solidariedade transnacionais que denunciem violações e pressionem as grandes empresas. Utilizadoras e utilizadores comuns podem participar de boicotes contra empresas que vendem tecnologias de vigilância a regimes autoritários, colocando-as em listas negras. Em contrapartida, é essencial apoiar softwares e sistemas de código aberto geridos por órgãos independentes, com representantes da sociedade civil e sob controle coletivo, para que se tornem ferramentas de denúncia de abusos, de monitoramento de governos e de análise de dados para expor práticas repressivas.

Além disso, as organizações de esquerda precisam desenvolver as suas próprias ferramentas: desde técnicas de criptografia e proteção da privacidade até campanhas de consciencialização que revelem os bastidores dos algoritmos. Afinal, esta luta não é apenas técnica, mas eminentemente política. Enfrentar a inteligência artificial capitalista é parte da luta de classes, uma extensão do conflito sobre fábricas e campos no passado, mas agora no espaço digital.

O exemplo da repressão digital contra o conteúdo palestino, e contra vozes de esquerda e emancipação em geral, deixa clara a gravidade do problema. Mas também mostra a lição mais importante: alternativas são possíveis. Transformar a inteligência artificial em ferramenta de libertação e vinculá-la a um projeto político de esquerda progressista pode abrir novos horizontes para a resistência. A internet não nasceu para ser apenas um mercado de consumo, mas pode ser um campo de luta comum e internacionalista. Isso, porém, só será possível se ligarmos a batalha digital a uma luta mais ampla contra o capitalismo e sua hegemonia de classe, recolocando o ser humano no centro da decisão digital.


Rezgar Akrawi é um militante de esquerda independente, interessado na esquerda e na revolução tecnológica, e atua como especialista em desenvolvimento de sistemas e governança eletrónica.

Fontes consultadas:

Filter bubble – Wikipedia

How tech platforms fuel U.S. political polarization and what government can do about it

PNAS – Algorithmic amplification of politics on Twitter

Arxiv – The Political Amplification Bias of the Twitter For You Algorithm

2021 Facebook leak – Wikipedia

O Capitalismo de Inteligência Artificial: desafios para a esquerda e alternativas possíveis

https://leanpub.com/ai-socialism-pr

https://www.esquerda.net/artigo/como-inteligencia-artificial-garante-continuidade-da-hegemonia-capitalista/95969

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