domingo, 28 de setembro de 2025

Jaime Nogueira Pinto - Claudia Cardinale (1938-2025)



* Jaime Nogueira Pinto

O desaparecimento de Claudia Cardinale lembra-nos o muito que nos trouxe e ao cinema e damos graças pelo dom da vida e pelo que de bom e de belo constantemente se cruza connosco e nos toca neste mundo

27 set. 2025

Quando comecei a ver cinema (a “ir ao cinema”, como se dizia), o cinema italiano era um grande cinema, para não dizer o grande cinema. A começar pelos realizadores, os Visconti, os Fellini, os Pasolini, os Antonioni, os Monicelli, os Risi, os Rossellini, os De Sica, criadores admiráveis em todos os géneros, da comédia mais divertida à tragédia mais shakespeariana.

Mas para nós, miúdos, muito mais do que os realizadores, que até à adolescência nos passavam relativamente despercebidos, impressionavam-nos os actores – um cómico admirável, como Antonio de Curtis, Totó, um actor genial para papéis mais sérios, como Marcelo Mastroianni, ou alguém preparado para todos os géneros, como Vittorio Gassman. E mais ainda que os actores, fascinavam-nos as actrizes.

Estávamos no Portugal dos anos 1960, a sair da Igreja pré-conciliar de Pio XII, e as nossas “referências artísticas” eram americanas (como a Marilyn Monroe, a Rita Hayworth ou a Ava Gardner, que víamos nos filmes e nas páginas do Século Ilustrado),  francesas (como a Brigitte Bardot de Et Dieu créa la femme ou a Catherine Deneuve de Belle de Jour)  e italianas  (como a Silvana Mangano, a Sofia Loren, a Gina Lollobrigida, a  Monica Vitti… e a Claudia Cardinale).

Claudia Cardinale era uma italiana nascida na Tunísia, então um domínio francês, onde, com 19 anos, ganhara um concurso de beleza. O primeiro prémio dava direito a uma semana em Veneza com acompanhante. Claudia levou a mãe e voltou para a Tunísia.  Estávamos em 1957. Não passou um ano até que saísse da Tunísia para o grande écran, com I Soliti Ignoti, de Mario Monicelli.

Era o começo. Em 1960, estava em Rocco e i Suoi Fratelli, de Visconti, com Alain Delon, em 61 era La Ragazza con la Valigia no filme de Valerio Zurlini, e em 63 dava corpo à Ragazza di Bube, de Luigi Comencini. No mesmo ano, Visconti voltava a escolhê-la, desta vez para desempenhar o papel de Angelica em Il Gattopardo.  Angelica era a bela filha do burguês Dom Calogero Sedara, parte do exercício de transição política e social que “o Leopardo”, o príncipe de Salina (Burt Lancaster), vai protagonizar para que a estrutura social não sofra muitos abalos com a passagem da monarquia tradicionalista dos Bourbon-Duas Sicílias para a monarquia liberal e revolucionária dos Saboia.

São raros os grandes filmes de grandes livros, ou da adaptação de grandes livros, vá-se lá a saber porquê… Talvez porque os livros falem outra linguagem, mais intimista, centrada na palavra e deixando a imaginação visual à solta, e o cinema encontre o seu encanto sobretudo na imagem, no movimento, na acção, num apelo mais directo aos sentidos.  Por alguma razão nem as adaptações francesas de Le Rouge et le Noir ou de La Chartreuse de Parme, de Stendahl, resultaram em grandes filmes, nem os livros que serviram de guião aos geniais tratados do poder e da condição humana que são Os Padrinhos de Coppola eram obras-primas.

Il Gattopardo, de Lampedusa, é uma excepção. É um romance admirável que, pela mão de Visconti, inspira um filme admirável. Livro e filme são obras diferentes e assumem essa diferença. Visconti, ao sabor do seu tempo, da sua arte e da sua condição de aristocrata-comunista, faz uma leitura marxista do romance de Lampedusa, a narrativa nostálgica da viagem à Sicília do aristocrata Giuseppe Tomasi de Lampedusa à procura de um tempo perdido.

Claudia Cardinale veste bem a pele de Angelica, a filha de Dom Calogero (Paolo Stoppa), o burguês em ascensão social que, nas terras feudais dos Salina, ajuda a evitar a revolução que a sucessão dos “homens novos” aos aristocratas e o fim do Ancien Régime podia provocar. Visconti encerra o filme com Claudia Cardinale a rodopiar no salão dos Salina nos braços do patriarca,  um Burt Lancaster que nos tínhamos habituado a ver nas fitas americanas como trapezista, pirata, cowboy  ou até índio (no Último Apache), mas que o realizador italiano se atreve a transformar no aristocrata nostalgicamente maquiavélico que muda o que for preciso (o acessório) para que o essencial (a propriedade dos meios de produção – segundo Visconti, conde de Lonate Pozzolo, com casa em Milão, cheia de criadagem e dois chefs de cozinha, segundo o amigo e rival Fellini) continue na mesma. E sim, o filme é diferente do livro também no essencial.

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A versatilidade de Claudia Cardinale não será menor do que a do trapezista, pirata, cowboy, índio e príncipe, Burt Lancaster. Em 1968, em Hollywood, vai protagonizar entre vaqueiros, caminhos-de-ferro, maus muito maus (Henry Fonda) e um bom com cara de mau (Charles Bronson) Aconteceu no Oeste, um filme de Sergio Leone, que trabalhara com mestres como Vittorio de Sica e Luigi Comencini e se lançara nos chamados Western Spaghetti com fitas como Por um Punhado de Dólares O Bom, o Mau e o Vilão.

Contrastando em quase tudo com a Angélica de O Leopardo, Claudia é, em Once Upon a Time in the West, Jill McBain, uma mulher de vida fácil (ou difícil) de Nova Orleães que vem para a terra onde se passa a acção porque casa com o homem que é assassinado, com a família, logo no princípio da história. E desce, linda e feliz, do comboio, para enfrentar o que der e vier.

Vi este Aconteceu no Oeste num dia que é sempre inesquecível: o dia seguinte ao do último exame da época; o dia ou a noite em que, pela primeira vez depois de um tempo de grande azáfama e sofrimento, em pleno Verão, estamos livres, soltos e podemos jantar bem e ir ao cinema.

Pude, por isso, apreciar mais ainda a beleza da Cardinale, ajudado pela música de Ennio Morricone e por aqueles desfechos típicos dos Westerns, com os maus a serem punidos e tudo a acabar bem.

E vi-a em muitas outras fitas – como Claudia, no 8 ½ de Fellini, como dona de uma casa de passe, no Fitzcarraldo de Werner Herzog, como chefe de quadrilha em Les Petroleuses, de Christian-Jacques (que  juntava na mesma quadrilha Bardot e Cardinale, BB e CC). Vi-a sempre bela, como princesa Dala na Pantera Cor de Rosa sempre bem, ainda na tela ou já a sair de cena e a envelhecer.

Dizem que em 1967, na Basílica de S. Pedro  (Paulo VI quisera receber um grupo de actrizes italianas), o Papa conversou alguns minutos a sós com ela e Claudia saiu a chorar. Especula-se que teriam falado do que lhe acontecera aos 17 anos: a violação, a hesitação em abortar e a decisão de ter o filho, o seu Patrick, que o futuro marido, Franco Cristaldi, iria perfilhar.

O desaparecimento de Claudia Cardinale lembra-nos o muito que nos trouxe e ao cinema, a sua forma única de passar pelo tempo. E lembra-nos também aquilo de que muitas vezes nos esquecemos: de dar graças pelo dom da vida e pelo que de bom e de belo constantemente se cruza connosco e nos toca neste mundo. Que descanse em paz.

https://observador.pt/opiniao/claudia-cardinale-1938-2025/?

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