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Erskine Caldwell foi, entre nós, nos anos 1960-70 do século transacto, um dos mais populares escritores
A pretexto do conflito na Ucrânia, a senhora Ursula von der Leyen encetou uma campanha ideológica e persecutória contra Moscovo, criando anátemas inibidores e proibindo, democraticamente, o acesso dos europeus da UE às estações de televisão russas, ou seja, inviabilizando o contraditório e a nossa dialéctica capacidade de análise, e a tudo o que ressumasse cultura vinda do grande país do leste europeu. Tolstoi, Gorky, Gogol, Chólokhov, clássicos da literatura universal, foram ostracizados, a eles juntando músicos da dimensão de Tchaikovski, Rachmaninoff, Shostakovitch, Prokofiev ou Rimsky-Korsakov, vítimas de uma saga miserável de tentativa de banir do nosso convívio a cultura de um povo, e da humanidade em geral, modo perverso de exclusão que nem o fascismo de Salazar/Caetano ousou empreender.
Aquando da publicação entre nós do livro Alma Russa1, de Joseph Conrad, pela Livraria Civilização, em 1945, e proibido pela PIDE em 1947, ainda no rescaldo do inelutável contributo da URSS para a rendição do exército nazi e do fim da guerra, um atento censor, num primeiro impulso de rejeição, elaborou o seguinte relatório: «É um livro de propaganda revolucionária passado ainda no tempo dos Czares. Julgo que deve ser proibido porque este e muitos outros livros que pejam o nosso mercado têm o fim inconvenientíssimo de alimentarem a mística russa.» Ora, este magnífico romance de Conrad nada tem a ver com a Rússia temida pelos fascismos, saída da Revolução de Outubro, passa-se entre um grupo de Cossacos em luta contra a opressão Czarista e desenvolve-se em torno de Razunov, no fundo um rapaz vulgar, mas dotado de uma enorme capacidade de trabalho e de sensibilidade, que o leva a dizer que é russo apenas, e mais nada, a indómita vontade, a moral de Razunov e a sua luta contra as injustiças farão dele, e dos seus camaradas de jornada, a encarnação da Alma Russa.
Do escritor americano Erskine Caldwell acaba de ser publicado, numa pequena edição já praticamente esgotada, pela mão do editor Leonardo de Freitas, um dos seus títulos mais emblemáticos, o qual foi publicado em Portugal, antes do 25 de Abril, sob o título «Guerrilheiros Russos», edição que, no entanto, foi censurada pelo fascismo. Trata-se de Toda a Longa Noite (All Night Long). Erskine Claldwell foi, entre nós, nos anos 1960-70 do século transacto, um dos mais populares escritores, com títulos como A Estrada do Petróleo, A Jeira de Deus, O Pregador e Certas Mulheres, sendo uma das grandes e inquestionáveis vozes do neo-realismo norte americano.
O seu romance Toda a Longa Noite traça o retrato poderoso e realista da saga dos partisans russos, em defesa da sua Pátria contra o terror nazi. A 22 de Junho de 1941, três milhões de tropas nazis invadiram a União Soviética. Juntamente com o Exército Vermelho, milhares de patriotas, gente simples do povo, trabalhadores dos campos e das oficinas, encetaram uma luta comum contra o poderoso exército de Hitler, impedindo chacinas, violação de mulheres, fuzilamentos bárbaros (p. ex., passando com os tanques sobre os corpos da população indefesa), roubos e destruição de aldeias inteiras, fuzilando os presidentes do Soviete, exibindo nas praças as mulheres nuas depois de as violarem. Havia dúzias e dúzias de brigadas de partisans a oeste do rio Dniepre, e centenas entre o Báltico e o Mar Negro. Algumas das brigadas situadas entre Smolensk e Minsk tinham proporções de regimentos. No longo Inverno Russo, a acção conjugada dos partisans foi fundamental para impedir ou minorar a progressão das tropas hitlerianas, boicotando equipamento, destruindo camiões de abastecimento, libertando mulheres, crianças e velhos sequestrados pelos nazis.
Erskine Caldwell afirma-se neste livro como um exímio narrador e um corajoso e intenso historiador social, rendido à força e à determinação de um grupo de guerrilheiros, os quais, quase sem meios, enfrentaram a besta fascista: Sérgio, tal como Razunov, é um típico homem do povo russo, um campónio cândido, forte, obstinado, movido pelos impulsos perenes da alma russa a que os valores soviéticos deram um novo vigor. Tal como os seus companheiros de luta, Natacha, Fedor, Pavlenko ou Maria Makarova, parecem, na prosa poderosa e sagaz de Caldwell, personagens históricas arrancadas das páginas de Tolstoi, Gogol ou Gorki.
Leonardo de Freitas, com escassos meios, não quis deixar de trazer para os nossos dias este grande épico, sabendo-o imprescindível para os complexos tempos em que o ódio ao outro campeia, inexorável e sem cautelas, junto com a ignorância, mesmo que numa tradução brasileira pouco cuidada, de 1942.
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