quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Domingos Lobo - Toda a Longa Noite, de Erskine Caldwell

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* Domingos Lobo

Ers­kine Caldwell foi, entre nós, nos anos 1960-70 do sé­culo tran­sacto, um dos mais po­pu­lares es­cri­tores


A russofobia, que as direitas de todos os quadrantes exibem com alarde, sem vergonha nem memória, nesta Europa a soldo do império e navegando à bolina num barco onde os ratos já dominam a gávea e roem lentamente os porões, já vem de longe, tem mais de um século, com brevíssimos intervalos de cínico apaziguamento, depois da Pátria dos Sovietes ter vencido, a custo de 25 milhões dos seus filhos, a barbárie nazi de Hitler.

A pre­texto do con­flito na Ucrânia, a se­nhora Ur­sula von der Leyen en­cetou uma cam­panha ide­o­ló­gica e per­se­cu­tória contra Mos­covo, cri­ando aná­temas ini­bi­dores e proi­bindo, de­mo­cra­ti­ca­mente, o acesso dos eu­ro­peus da UE às es­ta­ções de te­le­visão russas, ou seja, in­vi­a­bi­li­zando o con­tra­di­tório e a nossa di­a­léc­tica ca­pa­ci­dade de aná­lise, e a tudo o que res­su­masse cul­tura vinda do grande país do leste eu­ropeu. Tolstoi, Gorky, Gogol, Chó­lokhov, clás­sicos da li­te­ra­tura uni­versal, foram os­tra­ci­zados, a eles jun­tando mú­sicos da di­mensão de Tchai­kovski, Ra­ch­ma­ni­noff, Shos­ta­ko­vitch, Pro­ko­fiev ou Rimsky-Kor­sakov, ví­timas de uma saga mi­se­rável de ten­ta­tiva de banir do nosso con­vívio a cul­tura de um povo, e da hu­ma­ni­dade em geral, modo per­verso de ex­clusão que nem o fas­cismo de Sa­lazar/​Ca­e­tano ousou em­pre­ender.

Aquando da pu­bli­cação entre nós do livro Alma Russa1, de Jo­seph Conrad, pela Li­vraria Ci­vi­li­zação, em 1945, e proi­bido pela PIDE em 1947, ainda no res­caldo do ine­lu­tável con­tri­buto da URSS para a ren­dição do exér­cito nazi e do fim da guerra, um atento censor, num pri­meiro im­pulso de re­jeição, ela­borou o se­guinte re­la­tório: «É um livro de pro­pa­ganda re­vo­lu­ci­o­nária pas­sado ainda no tempo dos Czares. Julgo que deve ser proi­bido porque este e muitos ou­tros li­vros que pejam o nosso mer­cado têm o fim in­con­ve­ni­en­tís­simo de ali­men­tarem a mís­tica russa.» Ora, este mag­ní­fico ro­mance de Conrad nada tem a ver com a Rússia te­mida pelos fas­cismos, saída da Re­vo­lução de Ou­tubro, passa-se entre um grupo de Cos­sacos em luta contra a opressão Cza­rista e de­sen­volve-se em torno de Ra­zunov, no fundo um rapaz vulgar, mas do­tado de uma enorme ca­pa­ci­dade de tra­balho e de sen­si­bi­li­dade, que o leva a dizer que é russo apenas, e mais nada, a in­dó­mita von­tade, a moral de Ra­zunov e a sua luta contra as in­jus­tiças farão dele, e dos seus ca­ma­radas de jor­nada, a en­car­nação da Alma Russa.

Do es­critor ame­ri­cano Ers­kine Caldwell acaba de ser pu­bli­cado, numa pe­quena edição já pra­ti­ca­mente es­go­tada, pela mão do editor Le­o­nardo de Freitas, um dos seus tí­tulos mais em­ble­má­ticos, o qual foi pu­bli­cado em Por­tugal, antes do 25 de Abril, sob o tí­tulo «Guer­ri­lheiros Russos», edição que, no en­tanto, foi cen­su­rada pelo fas­cismo. Trata-se de Toda a Longa Noite (All Night Long). Ers­kine Claldwell foi, entre nós, nos anos 1960-70 do sé­culo tran­sacto, um dos mais po­pu­lares es­cri­tores, com tí­tulos como A Es­trada do Pe­tróleoA Jeira de DeusO Pre­gador Certas Mu­lheres, sendo uma das grandes e in­ques­ti­o­ná­veis vozes do neo-re­a­lismo norte ame­ri­cano.

O seu ro­mance Toda a Longa Noite traça o re­trato po­de­roso e re­a­lista da saga dos par­ti­sans russos, em de­fesa da sua Pá­tria contra o terror nazi. A 22 de Junho de 1941, três mi­lhões de tropas nazis in­va­diram a União So­vié­tica. Jun­ta­mente com o Exér­cito Ver­melho, mi­lhares de pa­tri­otas, gente sim­ples do povo, tra­ba­lha­dores dos campos e das ofi­cinas, en­ce­taram uma luta comum contra o po­de­roso exér­cito de Hi­tler, im­pe­dindo cha­cinas, vi­o­lação de mu­lheres, fu­zi­la­mentos bár­baros (p. ex., pas­sando com os tan­ques sobre os corpos da po­pu­lação in­de­fesa), roubos e des­truição de al­deias in­teiras, fu­zi­lando os pre­si­dentes do So­viete, exi­bindo nas praças as mu­lheres nuas de­pois de as vi­o­larem. Havia dú­zias e dú­zias de bri­gadas de par­ti­sans a oeste do rio Dni­epre, e cen­tenas entre o Bál­tico e o Mar Negro. Al­gumas das bri­gadas si­tu­adas entre Smo­lensk e Minsk ti­nham pro­por­ções de re­gi­mentos. No longo In­verno Russo, a acção con­ju­gada dos par­ti­sans foi fun­da­mental para im­pedir ou mi­norar a pro­gressão das tropas hi­tle­ri­anas, boi­co­tando equi­pa­mento, des­truindo ca­miões de abas­te­ci­mento, li­ber­tando mu­lheres, cri­anças e ve­lhos se­ques­trados pelos nazis.

Ers­kine Caldwell afirma-se neste livro como um exímio nar­rador e um co­ra­joso e in­tenso his­to­ri­ador so­cial, ren­dido à força e à de­ter­mi­nação de um grupo de guer­ri­lheiros, os quais, quase sem meios, en­fren­taram a besta fas­cista: Sérgio, tal como Ra­zunov, é um tí­pico homem do povo russo, um cam­pónio cân­dido, forte, obs­ti­nado, mo­vido pelos im­pulsos pe­renes da alma russa a que os va­lores so­vié­ticos deram um novo vigor. Tal como os seus com­pa­nheiros de luta, Na­tacha, Fedor, Pa­vlenko ou Maria Ma­ka­rova, pa­recem, na prosa po­de­rosa e sagaz de Caldwell, per­so­na­gens his­tó­ricas ar­ran­cadas das pá­ginas de Tolstoi, Gogol ou Gorki.

Le­o­nardo de Freitas, com es­cassos meios, não quis deixar de trazer para os nossos dias este grande épico, sa­bendo-o im­pres­cin­dível para os com­plexos tempos em que o ódio ao outro cam­peia, ine­xo­rável e sem cau­telas, junto com a ig­no­rância, mesmo que numa tra­dução bra­si­leira pouco cui­dada, de 1942.

 

1E­dição fac-si­mi­lada, a partir da 1ª. edição. Co­lecção Bi­bli­o­teca da Cen­sura, Jornal “Pú­blico” /A Bela e o Monstro

https://www.avante.pt/pt/2705/argumentos/181200/Toda-a-Longa-Noite-de-Erskine-Caldwell.htm


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