quinta-feira, 2 de outubro de 2025

João Manso Pinheiro - «E agora, José?» Centenário de Cardoso Pires


* João Manso Pinheiro  

Car­doso Pires não era um es­critor que ser­visse às ló­gicas an­si­osas e vo­razes do mer­cado


José Cardoso Pires foi um dos maiores romancistas da língua portuguesa do século XX (uma generalização a que se recorre de modo a não comprar qualquer guerra literária). Apesar disso, como outros tantos (José Rodrigues Miguéis é um bom exemplo), por largos anos, era mais fácil encontrá-lo nas estantes de bibliotecas municipais e alfarrabistas (foi definitivamente republicado apenas em 2015), espaços de silêncio que, bem vistas as coisas, até eram os mais apropriados para um homem que procurava a “solidão”.

Car­doso Pires não era um es­critor que ser­visse às ló­gicas an­si­osas e vo­razes do mer­cado (algo que, ainda em vida, muito o pre­ju­di­cava1). Em­bora es­cre­vesse com grande vo­ra­ci­dade, em­pe­nhando-se dias a fio neste seu tra­balho, os acessos cri­a­tivos só o aco­me­tiam de tempos a tempos, abrindo longos in­ter­valos na sua obra pu­bli­cada, es­pe­ci­al­mente no que toca aos ro­mances: entre O Delfim (1968) e a Ba­lada da Praia dos Cães (1982) de­correm 14 anos (e uma Re­vo­lução). Era, afinal de contas, um “es­critor bis­sexto”.

A in­sa­tis­fação quase per­ma­nente com o pro­jecto em mãos leva-o a pro­duzir vá­rias ver­sões de uma mesma obra, ra­su­rando, apa­gando, des­truindo, des­vi­ando, per­se­guindo, acres­cen­tando, de cor­recção em cor­recção até à im­pressão final. Este pro­cesso mi­nu­cioso re­sul­tava numa «prosa muito limpa, talvez a mais limpa ou mon­dada que hoje temos»2 (afir­mação pro­fe­rida pelo pro­fessor Óscar Lopes em 1963, por oca­sião da en­trega do Prémio Ca­milo Cas­telo Branco a Car­doso Pires, e que não perdeu ne­nhuma da sua ac­tu­a­li­dade), apenas pos­sível nas mãos de um autor que con­si­de­rava um dia pro­du­tivo aquele em que apa­gava mais de 3 mil pa­la­vras.

Para além do ro­mance (Ale­xandra Alpha, de 1987, me­rece também des­taque), José Car­doso Pires foi ainda cro­nista, en­saísta e con­tista. A sua pri­meira co­lecção de contos, Os Ca­mi­nheiros e Ou­tros Contos, de 1949 (fi­nan­ciada por Alves Redol, Mário Di­o­nísio, entre ou­tros), de­nota ainda as suas pri­mor­diais in­fluên­cias neo-re­a­listas, um gé­nero que nunca chega re­al­mente a aban­donar, in­te­grando este re­gisto no seu es­tilo par­ti­cular. Ainda que con­si­de­rasse o tra­balho li­te­rário da maior parte dos li­vros neo-re­a­listas «mau», por mais de uma vez afirmou que foi este mo­vi­mento que, em Por­tugal, «pro­moveu a li­ber­tação da língua», lim­pando a prosa e os ca­mi­nhos para vá­rias ge­ra­ções de novos es­cri­tores.

Após a pu­bli­cação da co­lecção de contos Cartas de Amor, em 1952, acaba por ser de­tido pela PIDE, que apre­ende as edi­ções dos seus dois li­vros pu­bli­cados. A po­lícia po­lí­tica do fas­cismo co­nhece-o como «fonte de in­for­mação da po­lí­tica e so­ci­o­logia ac­tu­ante no sector in­te­lec­tual do PCP; trans­missor de li­vros proi­bidos, ma­ni­festos de in­te­lec­tuais e de pu­bli­ca­ções pú­blicas e par­ti­cu­lares de ór­gãos de par­tidos co­mu­nistas es­tran­geiros ou de in­te­lec­tuais por­tu­gueses».

O seu com­pro­misso com a luta e re­sis­tência an­ti­fas­cista afirma-se antes, e de­pois, do 25 de Abril de 1974, no qual par­ti­cipa ac­ti­va­mente. No dia se­guinte à Re­vo­lução, di­rige-se à prisão de Ca­xias como parte in­te­grante da Co­missão de Apoio aos Presos Po­lí­ticos.

Nas­cido a 2 de Ou­tubro de 1925, em Vila de Rei, Beira Baixa, há exac­ta­mente 100 anos, cedo Car­doso Pires torna a Lisboa, ci­dade que faz sua, a única que «ver­da­dei­ra­mente co­nhece» em todo o País. O «grande fas­cínio» que sente pela ca­pital (com ex­cepção da Av. Al­mi­rante Reis) está es­pe­lhado na sua úl­tima obra – Lisboa, Livro de Bordo (1997).

José Car­doso Pires morreu aos 73 anos, em 1998, na sequência de um se­gundo AVC. O pri­meiro ins­pi­rara De Pro­fundis, Valsa Lenta (1997), em que o autor con­fronta as suas novas li­mi­ta­ções im­postas pelo aci­dente vas­cular. Por­tugal ficou, de­fi­ni­ti­va­mente, um país mais “mal fre­quen­tado”.     

 

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