Carlos Paredes durante um recital de Mário Viegas, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, no dia 19 de Março de 1988 (Foto de António Cotrim)
Centenário de Carlos Paredes
A única entrevista de Carlos Paredes ao PÚBLICO: “Sentimento perpétuo”
“Toco guitarra. As pessoas gostam de ouvir. Juntamo-nos. E assim vamos vivendo.” Em quatro frases simples, este é o retrato que Carlos Paredes faz de si mesmo — devolveu-nos a arte de ser português.
Fernando Magalhães
15 de Fevereiro de 2025, 8:29
Esta é a única entrevista a Carlos Paredes ao PÚBLICO. Foi feita pelo jornalista e crítico de música Fernando Magalhães (1955-2005) e saiu no dia 18 de Março de 1992, antes de três concertos do guitarrista em Lisboa e no Porto.
Tímido, amador, solidário sempre, Carlos Paredes confunde-se com o corpo de uma guitarra que "comove sem fazer chorar", onde vibra a tristeza de alguém que vive uma determinada forma de vida, também a alegria e a vontade de tocar para e entre amigos, nem que seja à mesa de um café. Hoje e amanhã, no Teatro São Luiz, em Lisboa, dia 25 no Rivoli do Porto, esperam-no o aplauso unânime e as grandes encenações. Luísa Amaro, Fernando Alvim, Natália Casanova, dos Diva, Mário Laginha, Paulo Curado, Rui Veloso são alguns dos convidados presentes, num espectáculo que inclui bailado e um grande final improvisado.
Quando posou para a fotografia, pegou na guitarra e começou a tocar. Tratava-se apenas de uma imagem...
Sabe, pegar na guitarra e tocar é já um gesto tão habitual que mesmo quase sem pensar, instintivamente, começamos a querer tocar. Isso sucede-me com a guitarra portuguesa, com a qual contacto todos os dias, há anos.
Como se a guitarra fosse uma extensão física de si próprio?
Digamos que é a intuição que todos nós temos que nos leva a fazer música. Não posso estar com uma guitarra nos braços sem ter vontade de a tocar.
Disse que toca guitarra todos os dias. Continua a tirar o mesmo prazer desse acto, após todos estes anos?
Exactamente. Começo a tocar e vou-me adaptando à música, vou improvisando...
Reside aí a diferença entre ser músico e fazer música?
Ah, pois, pois. No momento de tocar, a música fica a fazer parte de nós próprios.
Quando toca guitarra, perde-se de si próprio ou consegue manter uma distância em relação ao instrumento?
Nunca perco essa distância. Posso até ficar aborrecido ao ponto de não conseguir fazer nada. Mas há também um à-vontade, uma capacidade de ir inventando coisas.
Referiu uma vez a necessidade de se criar em Portugal uma escola de guitarra...
Sabe, é necessário fazer um método do instrumento, estudá-lo profundamente, ter lições e tirar delas máximo proveito.
Não se dará o caso de a guitarra portuguesa valer o que vale o seu intérprete, sendo necessário o seu completo domínio de maneira a conseguir uma linguagem personalizada?
O que é preciso é um estudo profundo da técnica do instrumento, de maneira a melhorar a qualidade de som...
Uma mera questão técnica?
É evidente que da minha parte tem de haver uma certa predisposição para sentir que posso inventar música.
Tem-se de si a imagem de uma pessoa demasiado modesta, como se não tivesse, ou não quisesse ter, consciência do seu real valor...
Sabe, é perigoso. A guitarra é um instrumento tão pouco evoluído e desenvolvido que muitos problemas musicais passam pela guitarra sem que ela dê sequer por eles. Ignora-os, pura e simplesmente. Quer dizer, estar a participar nos anúncios e elogios que muita gente por bondade me faz...
Acha que é só por bondade? Não acredita que as pessoas se interessem e apreciem verdadeiramente a sua música?
Bondade, porque elas se interessam pelo instrumento.
Quer dizer que não se interessam pelo músico, pelo Carlos Paredes em si?
Eu pouco posso dar, sabe. Tenho consciência do pouco que posso dar nesse aspecto.
É difícil acreditar, quando ainda há pouco pegou na guitarra, durante escassos segundos, e logo se juntou espontaneamente um grupo de pessoas para o ouvir tocar.
Pessoas que possivelmente viveram um período que eu também vivi...
Não, a maior parte eram jovens.
Eram jovens? É engraçado... Isso lembra-me os Verdes Anos, do Paulo Rocha, aquilo a que as pessoas na altura chamavam o "novo cinema português". Os argumentos já não eram apenas histórias de namoricos, eram histórias do dia-a-dia, da vida real. O argumento dos Verdes Anos foi extraído de uma notícia do jornal que contava o caso de um jovem que se apaixonou por uma rapariga e, a certa altura, teve um acesso e acabou por matá-la. É claro que isto parece una daquelas histórias tremendas, mas não, tratada de determinada maneira era apenas uma história das muitas que a vida tem.
Quando se fala dos Verdes Anos, as pessoas lembram-se logo do tema que compôs para a banda sonora. Como se tivessem sido tocadas no mais fundo de si próprias. Como se houvesse algo de muito profundo e português nesses sons...
No caso de um filme, há muitas maneiras de acompanhar musicalmente uma história. Muitas maneiras de focar a dor e o sofrimento, a angústia. Pode não ser aquilo que existe em certo tipo de cantigas ou de fados, em que essa angústia é um bocado forçada. De lágrima ao canto do olho.
A sua música reflecte essa angústia?
Eu desejaria que não reflectisse. Se há nela una angústia, é uma angústia muito especial.
Que tipo de angústia?
Nunca poderá ser uma angústia torturada, uma angústia que obriga permanentemente a chorar. Há certo tipo de canções antigas e urbanas, acompanhadas à guitarra, em que o seu gemido característico era aproveitado para pôr as cordas a chorar. Um choro mecânico, físico. O gemido da guitarra podia considerar-se o gemido da voz. Eu não gosto muito disso. Acho que o sofrimento há-de ter uns tons poéticos.
Mas existe, de facto, na sua música um sentimento de tristeza.
Uma tristeza equilibrada. Una tristeza de alguém que vive uma determinada forma de vida e que
Será o fado, essa "estranha forma de vida"?
Posso dar um exemplo. Suponhamos que o meu amigo tem conhecimento de um caso em que a pessoa é torturada e tem tendência para chorar, para desesperar. Em vez de se focar o aspecto do desespero, é possível comover sem fazer chorar. Nos Verdes Anos, aquilo tudo não era acompanhado de lágrimas forçadas, e nem por isso deixava de haver comoção.
Que relação a sua música mantém com o tema da "saudade"?
A saudade pode ser uma outra maneira de forçar a angústia. Mas um certo tipo de saudade pode não ser necessariamente uma dor torturada.
Que relação a sua música mantém com o tema da "saudade"?
A saudade pode ser uma outra maneira de forçar a angústia. Mas um certo tipo de saudade pode não A única entrevista de Carlos Paredes ao PÚBLICO: “Sentimento perpétuo”
Essa "fuga" constante ao sofrimento, à angústia, terá alguma relação com a sua recusa de associar a guitarra apenas ao fado?
Aquilo que no fado popular, sobretudo em Lisboa, era caracterizado pelo chamado "fado da desgraçadinha". Dir-se-ia que os fadistas andavam à procura de histórias tristes para fazer as canções, o chamado "fado sentido". Essas histórias eram muitas vezes seleccionadas de acordo com aquilo que eram capazes de provocar nas pessoas: mais tristeza, mais angústia. Acho que nunca me servi disso. Prefiro abordar o sofrimento e os aspectos tristes da vida que nos dominam na intimidade e que não têm necessidade de ser exibidos.
Tem muito que ver com a sua maneira de ser, de introspecção constante...
Sim, uma introspecção que é possível encontrar em muita literatura portuguesa.
Já que se fala de fado, vem à baila a velha questão: por que razão sempre se recusou a tocar com Amália Rodrigues?
Eu não sei acompanhar a Amália.
Como pode afirmar isso se nunca tentou?
Não é preciso tentar. Tocar com a Amália exige uma certa escola, um certo conhecimento na forma de a acompanhar. Eu seria um mau acompanhante dela.
Como pode afirmar isso se nunca tentou?
Não é preciso tentar. Tocar com a Amália exige uma certa escola, um certo conhecimento na forma de a acompanhar. Eu seria um mau acompanhante dela.
Claro que são outros géneros de música. A questão que lhe estou a pôr é sobre a recusa em assumir um risco particular, de acompanhar a Amália...
O Charlie Haden é um homem do jazz, do contrabaixo, e fez-me umas propostas interessantes. Eu limitava-me a introduzir também a guitarra, improvisando. Se eu hoje quisesse acompanhar a Amália não conseguia. Os guitarristas que a acompanham são especialistas que, à sua maneira, criam coisas novas. Eu já não seria uma pessoa para isso. O mais certo era ter de desistir logo. É como se tocássemos
Entrámos num outro tema, da improvisação, sempre presente na sua música. Até que ponto esa improvisação se estendeu à sua carreira, senão mesmo à sua vida
A improvisação vive connosco. Há certos acontecimentos da nossa vida que nos obrigam a encontrar uma solução rápida. Muitas vezes isso acontece com o improviso. Há quem diga que o português é mestre da improvisação. O que muitas vezes procuro é uma solução ocasional, rápida, servindo-me dos elementos que tenho à mão. Se não houvesse um certo grau de improvisação, teríamos dificuldade em nos adaptarmos aos acontecimentos, ao inesperado.
Voltemos à Amália Rodrigues, que fez carreira, em Portugal e no estrangeiro. O Carlos Paredes não lhe fica atrás em qualidade artística, mas nunca alcançou o mesmo tipo de projecção. No seu caso, o que é que faltou, se é que sentiu ter faltado alguma coisa?
Pois, a Amália impõe-se pelo género que canta, muito ligado ao fado tradicional, ao sofrimento que se exprime fisicamente. Não queria dizer "fácil"... Como se costuma dizer: viver os acontecimentos ao canto do olho... É preciso falar da vida sem cair no exagero, sem chorar.
Acha que a Amália cai no exagero?
Não cai no exagero, pois não. Eu diria que o caso da Amália é completamente inimitável.
Mas acabou por não responder à pergunta anterior, sobre a planificação da sua carreira, por não existir...
Pois não. Eu e a Amália temos culturas e origens diferentes.
Vamos pôr a Amália de lado. Nunca se preocupou com os aspectos práticos da sua carreira? Ou com a necessidade de uma aceitação a uma escala maior?
As pessoas aceitam-me conforme me ouvem.
Mas primeiro têm de saber que a sua música existe, de a conhecer...
Nunca fiz muito esforço nesse sentido. As pessoas que apreciam, que gostam de me ouvir tocar guitarra ouvem, a coisa agrada-lhes e eles aderem. Não há mais nada.
Uma atitude semelhante ao que acontecia na antiga música de salão, tocada para um número restrito de pessoas...
... Entre amigos, sim.
É assim que se sente mais à vontade a tocar?
Exactamente. Em família, na intimidade. Acompanhando o tocar de uma conversa em que falamos de nós, dos amigos, dos acontecimentos da vida diária.
E no entanto prepara-se para tocar em grandes espectáculos, com encenação e músicos co nvidados...
Quem organizou este espectáculo foi um empresário [António Pinho] que estudou a fundo as coisas, entrou em contacto com as pessoas, etc. Mas penso que vai ser tudo numa escala reduzida. Uma forma modesta de ver as coisas. Um bailarino, por exemplo, pode exibir-se com um grande grupo, num grande palco, mas pode também fazer pequenos apontamentos musicais, menos complicados. É isso que eu faço.
Que reportório tocará nesses espectáculos?
Vou tocar coisas antigas, incluindo duas peças de há 20 anos, do período em que ainda tinha desejo de ser virtuoso e em que utilizava desenhos tecnicamente difíceis. Tocarei, é claro, outros temas mais recentes e mais simples. Abandonei os malabarismos para me dedicar à verdade melódica da guitarra. ~
E em conjunto com os artistas convidados?
A Natália Casanova vai cantar uma canção do José Afonso, Cantiga de Maio. Vou tocar o começo de Porto Santo e depois deixarei o desenvolvimento ao (Mário) Laginha, que improvisará à sua vontade. Com o Rui Veloso vai ser um bocado mais difícil. É um músico com uma técnica muito pessoal e não se pode levianamente pegar nas canções e fazer improvisações de acompanhamento.
Há quem diga que certos partidos políticos, em determinadas ocasiões, se terão aproveitado da sua maneira de ser, convidando-o para participar em iniciativas sem um mínimo de condições nem contrapartidas. Concorda?
Não. Nunca houve da parte de ninguém a intenção de se aproveitar de mim, e até o podiam fazer, não é?
Mas nunca diz "não" a ninguém?
Repare, as pessoas convidavam-me para participar em espectáculos e o espírito que eu levava era um espírito de alguém que gosta de tocar, de ouvir a opinião das pessoas, que pode tocar até para quem está a tomar um café e a conversar.
Isso é o seu ponto de vista. Alguma vez se preocupou com as razões da outra parte?
Então vou-lhe ser franco. Participei em muitas coisas simplesmente levado pelos meus sentimentos de solidariedade. Como outros também participavam.
Mas acha bem que um músico da sua estatura continue a trabalhar como funcionário de um hospital, em vez de se dedicar por inteiro à sua música?
Bem, isso é o que muita gente pode pensar. Que um indivíduo que até faz determinada música se deve especializar, até de um ponto de vista profissional. Mas, infelizmente, não foi possível fazê-lo. Por exemplo, o meu pai (Artur Paredes) era um amador e tinha o seu emprego. As pessoas nessa época não dependiam da música, no entanto faziam música porque isso lhes dava um prazer pessoal.
Hoje, apesar de tudo, é possível viver em Portugal só da música. Pensou alguma vez nessa possibilidade?
Havia de facto músicos que eram convidados, e havia uma certa retribuição em dinheiro para lhes facilitar a vida. Quer dizer, começavam a ganhar dinheiro suficiente para viver. Mas não foi isso que me sucedeu, ou sucedeu só de vez em quando. Houve, em determinada altura, a Cantar Abril, uma organização semiprofissional em que se passou a fazer contratos. Evidentemente, o dinheiro que se ganhava até dava, por vezes, para resolver problemas económicos. Mas nunca fui muito de receber essa retribuição.
Um amador puro.
Sim, porque se não fosse um amador ninguém me suportava a tocar guitarra.
Acredita de verdade no que está a dizer? Parece ter sempre uma opinião negativa de si próprio e da sua música...
Não, não suportavam... Começavam a sentir a falta daquele espírito amador que faz com que numa plateia se ouça um guitarrista como eu de forma diferente, por exemplo, da de um profissional como o Segóvia.
Houve alguma alteração na sua carreira a partir do 25 de Abril?
Não sei como é que os artistas resolvem os seus problemas, se porventura têm a possibilidade de ganhar um tanto por cada recital. E possível que isso lhes dê uma quantia apreciável que lhes permita resolver muitas coisas. Conheço, por exemplo, o caso de um cantor ligeiro que a determinada altura disse: "Preciso de comprar um andar." E comprou.
Mas, no seu caso pessoal, sentiu alguma modificação?
Não. Nunca procurei resolver problemas por esse sistema. Toco guitarra. As pessoas gostam de ouvir. Juntamo-nos. Tocamos. E assim vamos vivendo.