terça-feira, 29 de outubro de 2024

Eduardo Lucas - Guerra cognitiva e controle de informação


*  Eduardo Lucas in 


“O poder gera realidade. E enquanto você estuda essa realidade… nós criamos outra”. Esta ideia resume a essência da guerra cognitiva: aqueles que controlam a narrativa controlam a própria realidade.

A crise ucraniana, o conflito no Extremo Oriente e o genocídio palestiniano anunciam, para o mundo ocidental “baseado em regras”, o prólogo de uma crise social de proporções épicas. O capitalismo neoliberal enfrenta uma das suas maiores crises existenciais. O mundo transita de uma ordem unipolar para uma ordem multipolar, evidenciando o declínio do império norte-americano.

Neste contexto, as elites dominantes e a burguesia transnacional estão a implementar formas de controlo social sem precedentes. Os grandes conglomerados financeiros, confrontados com a ameaça de perder a sua hegemonia, optaram por restringir as liberdades públicas. Por outro lado, promovem movimentos de carácter messiânico, o revisionismo histórico, passando por debates de falsa identidade ou ambientalismo reacionário. Para garantir o uso do poder, financiam partidos e movimentos de extrema-direita que por vezes se apresentam sob a máscara de “europeístas” e, noutras ocasiões, como populistas de direita ou de esquerda, dependendo das circunstâncias. Estas forças políticas cuidadosamente moldadas permitem que os grupos financeiros mantenham a sua influência política, ao mesmo tempo que neutralizam a resistência popular. Neste contexto de restrição de liberdades e manipulação política, as tecnologias de vigilância e censura em massa assumem um papel central.

Em agosto de 2024, o Gabinete do Diretor de Inteligência Nacional (ODNI) dos EUA apresentou um documento que, camuflado como apenas mais um procedimento burocrático, representa na verdade uma mudança profunda na forma como a vigilância é realizada em todo o mundo. Sob o nome “Intelligence Community Data Co-op” (ICDC), o projeto propõe a criação de uma plataforma centralizada para coletar e analisar enormes quantidades de informações de qualquer indivíduo em todo o mundo. A imagem do irmão mais velho de Orwell dá um enorme salto em frente. Este sistema coleta dados de fontes comerciais e públicas: desde histórico de compras e geolocalização até atividades nas redes sociais e registros de saúde.

O preocupante é que o projeto permite que as agências de inteligência dos EUA “evitem restrições legais” comprando dados de empresas privadas, sem ter que passar por processos judiciais que poderiam atrasar as investigações. Esta nova arquitectura de vigilância faz do ICDC um pilar central da Guerra Cognitiva, pois oferece uma vantagem estratégica às agências de inteligência, permitindo mesmo a manipulação preventiva do comportamento através do controlo sobre ideias dominantes, tendências de voto… Descobertas na psicologia social sobre identidades partilhadas abrem novas caminhos para a projeção de líderes emocionais. A chamada psicologia das emoções aliada aos bancos de dados amplia o horizonte para a criação de lideranças sociais formatadas pelo próprio sistema.

Neste contexto, polvos tecnológicos como a Apple e a Microsoft têm sido atores-chave na facilitação da vigilância em massa[1] e, a partir dela, na criação ou recriação de futuros líderes sociais. Soma-se a isso o fato de a Microsoft coletar, há anos, grandes quantidades de informações dos usuários do Windows 10 e 11, como o texto que digitam em seus teclados, sua localização geográfica e até imagens capturadas por câmeras web, sem que os usuários estejam cientes disso. Estas ações geraram uma desconfiança crescente em relação às grandes empresas tecnológicas ocidentais.

Os ataques terroristas do regime israelita no Líbano em 2024 revelaram a extrema vulnerabilidade das infra-estruturas tecnológicas globais e como estas podem rapidamente tornar-se armas de guerra. As bombas em smartphones, pagers e instalações atacadas revelaram que, apesar dos avanços na segurança informática, as infra-estruturas tecnológicas globais são altamente susceptíveis a ataques cibernéticos ou a actos terroristas coordenados.

Este clima de incerteza e vulnerabilidade favoreceu paradoxalmente a ascensão da China como uma alternativa tecnológica mais fiável, especialmente nos mercados emergentes. A ascensão de empresas chinesas como a Huawei e a Xiaomi, as principais beneficiárias, deve-se em parte ao medo gerado pela fragilidade das infra-estruturas tecnológicas ocidentais. Os ataques no Líbano e os atuais problemas de cibersegurança no Ocidente aceleraram esta mudança de perceção, levando a um aumento significativo nas vendas de produtos chineses, especialmente nas regiões em desenvolvimento. Pequim aproveitará estas circunstâncias para consolidar a sua posição como líder em tecnologia segura, fora da interferência ocidental.

Guerra cognitiva: definição e estratégias
A guerra cognitiva é um conceito desenvolvido pela NATO para descrever a manipulação da percepção e do pensamento colectivos, a fim de influenciar o comportamento humano. Ao contrário da guerra convencional, onde os objectivos são territórios ou recursos, a guerra cognitiva procura dominar a mente, moldar opiniões e controlar narrativas. Este tipo de controle não se limita apenas a censurar pontos de vista opostos, mas também busca antecipar, evitando que ideias opostas à narrativa oficial se formem na opinião pública. Para isso, é essencial a censura sistemática de meios de comunicação como Telegram, RT, Sputnik e muitos outros no Ocidente. Na sequência do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, as plataformas tecnológicas ocidentais e os governos bloquearam o acesso a estes meios de comunicação para impedir a disseminação das suas narrativas ao público na Europa e na América.

Estas medidas, em muitos casos, não resultam de decisões judiciais, mas sim de ordens administrativas que procuram limitar o acesso a pontos de vista divergentes e controlar o fluxo de informações. Nesse sentido, é fundamental reconhecer a célebre frase atribuída a um assessor do ex-presidente George W. Bush: “O poder gera a realidade. E enquanto você estuda essa realidade… nós criamos outra.”

Esta ideia resume a essência da guerra cognitiva: aqueles que controlam a narrativa controlam a própria realidade. O poder reside não apenas em influenciar os factos, mas em moldar a percepção desses factos antes que outros possam questioná-los. Na mesma linha, Michel Foucault, em sua obra “História da Sexualidade: A Vontade de Saber” (Foucault, 1976), afirmou que, em última análise, quem tem controle sobre a narrativa tem controle sobre como a realidade é percebida.

Expansão dos smartphones e uso de algoritmos preditivos
A expansão do uso de smartphones, que agora chegam até às mãos de meninos e meninas, abriu uma nova fronteira no controle da informação e na manipulação social. Ao utilizar “algoritmos preditivos”, as grandes empresas tecnológicas e as oligarquias globais podem recolher e analisar grandes quantidades de dados pessoais desde tenra idade. Isto permite definir as inclinações, tendências e comportamentos dos usuários, oferecendo uma visão precisa do futuro imediato, que pode ser manipulada e controlada de acordo com os interesses das empresas transnacionais. O acesso a dados sensíveis como as preferências dos consumidores, os padrões de interação social e o comportamento online desde muito cedo fornece às oligarquias as ferramentas necessárias para moldar as perceções e decisões das gerações futuras.

Neste contexto, os algoritmos não apenas prevêem o que uma pessoa fará, mas influenciam ativamente a forma como ela verá o mundo e tomará decisões. Esta monitorização contínua e manipulação subtil do comportamento através de tecnologias de vigilância digital fazem dos smartphones uma das ferramentas mais poderosas para garantir que as elites possam manter o seu controlo sobre a ordem social e económica para as gerações vindouras.

O comportamento da casta dominante está repleto desta ideia: muitos dos filhos das elites crescem educados em ambientes onde o acesso aos dispositivos digitais é restrito, conscientes dos perigos que estas ferramentas podem representar em termos de controlo, manipulação e vigilância. Como aponta Manfred Spitzer em seu livro Demência Digital, o uso intenso da tela pode ter efeitos devastadores no desenvolvimento cognitivo das crianças, o que explica por que as “crianças ricas” muitas vezes “não olham para as telas”, sendo afastadas do alcance delas as mesmas tecnologias que as elites promovem para a população em geral.

Rumo a uma sociedade monitorada
À medida que o controlo da informação e a vigilância em massa se expandem, figuras políticas de alto nível começaram a defender cortes nas liberdades civis em nome da “Segurança Nacional” e do combate à “desinformação”. Tanto o ex-secretário de Estado John Kerry como a ex-candidata presidencial Hillary Clinton têm sido vozes proeminentes nesta discussão, sugerindo que certos direitos, como os protegidos pela “Primeira Emenda da Constituição Americana”, devem ser revistos para se adaptarem aos tempos actuais. Em declarações recentes, John Kerry argumentou que a liberdade de expressão não deve ser um “cheque em branco” que permite aos cidadãos espalhar desinformação ou desafiar as narrativas oficiais sobre questões de segurança.

Kerry observou que, num mundo onde as “notícias falsas” e a desinformação podem desestabilizar as sociedades, é necessário “limitar certas formas de discurso” para proteger a coesão social e a estabilidade política. Na sua opinião, uma sociedade mais “monitorada e controlada” seria menos vulnerável a influências externas maliciosas. Por sua vez, Hillary Clinton tem defendido abertamente a necessidade de “combater a desinformação” e sugeriu que o governo deveria ter mais poder para regular e monitorizar o que é publicado nas redes sociais.

Clinton argumenta que embora a Primeira Emenda seja um pilar fundamental da democracia americana, a sua interpretação deve adaptar-se aos desafios do século XXI. Para Clinton, a “liberdade de imprensa” e a “liberdade de expressão” devem ser compatíveis com um sistema de “vigilância e controlo” que garanta que apenas informação “responsável” seja divulgada.

Por trás deste discurso, porém, está a influência dos “grandes grupos de poder”. A classe política, obedecendo aos interesses destas elites, abre debates sociais sobre as liberdades em abstrato, mas esconde o seu verdadeiro objetivo: a “restrição progressiva das liberdades públicas” sob o pretexto da segurança e da estabilidade social. Este processo, por enquanto, é realizado sob o manto de uma “subdemocracia”, onde os cidadãos são chamados a votar de tempos em tempos, enquanto a casta política toma decisões fora da vontade popular, concentrando o poder nas mãos de poucos. Além disso, esta restrição de liberdades é justificada pelo medo do terrorismo, pelas preocupações com as alterações climáticas, que orientam o consumo social em direcções que favorecem determinados interesses, e pelas epidemias, que alimentam a solidão social. Esse isolamento reforça o controle, pois quando os laços entre os indivíduos são rompidos, o tecido social fica enfraquecido, dificultando a resistência organizada.

Perseguição de dissidência e censura global
A guerra cognitiva não é travada apenas no mundo digital. Aqueles que tentam desafiar o controlo da informação e oferecer narrativas alternativas, sejam jornalistas, activistas ou académicos, enfrentam perseguição e censura. Exemplos recentes (para não mencionar Assange e Snowden) incluem os ataques aos escritórios de Jurgen Elsasser, editor-chefe da revista Compact na Alemanha, e a perseguição do antigo inspector de armas da ONU Scott Ritter nos EUA, ambos acusados ​​de ter ligações com a Rússia pelas suas críticas às políticas ocidentais.

Estas ações fazem parte de uma estratégia mais ampla para silenciar as vozes críticas e garantir que a narrativa dominante prevaleça sem concorrência. Em muitos casos, as acusações de desinformação ou de “interferência estrangeira” são utilizadas como pretexto para justificar a censura, quando na realidade o objectivo é suprimir quaisquer opiniões críticas que possam desafiar o status quo.

Conclusão
Em suma, o controlo da informação, os ataques terroristas no Líbano e a guerra cognitiva estão profundamente interligados. Através de programas de vigilância em massa como o ICDC e da estreita colaboração com empresas tecnológicas, as agências de inteligência procuram dominar o fluxo de informação global. Contudo, este controlo não se limita apenas à recolha de dados; Vai mais longe, no sentido da manipulação direta do pensamento e das percepções coletivas. A vulnerabilidade dos sistemas informáticos, exposta pelos ataques no Líbano, mostra como as infra-estruturas tecnológicas globais são susceptíveis de exploração, facilitando a guerra cognitiva.

Ao mesmo tempo, a China aproveitou as fraquezas dos sistemas ocidentais para se estabelecer como o novo vencedor na competição tecnológica global, aumentando a sua influência e o seu poder brando. A guerra cognitiva representa um desafio sem precedentes para as sociedades modernas.

Ao integrar tecnologia, espionagem em massa e manipulação de informação, as elites globais procuram não só controlar o que sabemos, mas também a forma como pensamos. Como cidadãos, é crucial estarmos conscientes destas estratégias e defendermos ativamente os direitos fundamentais que estão em risco nesta nova era de controlo e vigilância.

Referências:
1. Ameaças estrangeiras às eleições federais dos EUA em 2020, Avril Haines, 10 de março de 2021.

2. Mídia financiada pelo Kremlin: RT e o papel do Sputnik no ecossistema de desinformação e propaganda da Rússia, Centro de Engajamento Global, janeiro de 2022.

3. “Campanha da OTAN contra a liberdade de expressão”, por Thierry Meyssan, Rede Voltaire, 5 de dezembro de 2016.

4. “O Ocidente renunciou à liberdade de expressão?”, por Thierry Meyssan, Rede Voltaire, 8 de novembro de 2022.

5. Guerra Cognitiva, François du Cluzel, Comando Aliado para a Transformação da NATO, Novembro de 2020.

6. “O poder gera realidade.” Atribuído a Karl Rove, conselheiro de George W. Bush【46†fonte】

7. Michel Foucault, História da sexualidade: A vontade de saber, Madrid: Siglo XXI, 1976.

8. Manfred Spitzer, Demência Digital , Barcelona: Edições B, 2012.

Nota: [1] Em 2023, o Serviço Federal de Segurança (FSB) da Rússia relatou que os dispositivos Apple foram infiltrados por software malicioso que permitiu que a inteligência dos EUA espionasse diplomatas e cidadãos estrangeiros na Rússia

Fonte aqui.

blog osbarbarosnet.blogspot.com, 20/10/2024)

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Paulo Baldaia - ou neto de um polícia e sou um privilegiado, outros há que não são

Opinião

* Paulo Baldaia

Ser de um destes bairros, levantar de madrugada para trabalhar e só regressar noite feita, ao mesmo tempo que educam os filhos, dá a estas pessoas o estatuto de heróis, não o de eternos suspeitos

Num mundo tão desigual como aquele que habitamos, a mais dura das discriminações é aquela a que sujeitamos os mais pobres dos pobres, porque a esses apontamos a culpa da sua própria condição. Queremos acreditar, e fazê-los acreditar a eles próprios, que só é pobre quem quer. Repetimos por descargo de consciência: são pobres porque não estudaram, são pobres porque não querem trabalhar, são pobres porque querem viver à custa dos outros (RSI). Não ocorre à generalidade dos privilegiados que estes pobres que geram pobres, geração atrás de geração, são o fruto da sociedade que construímos. Esquecemos que a grande maioria dos pobres são trabalhadores e isso mostra-nos que a mão que tem o indicador apontando a culpa aos outros é a mesma que tem três dedos que se dobram apontando responsabilidades a nós próprios.

Sim, é verdade que ser cigano (a etnia mais odiada e mais discriminada) ou afrodescendente, a que se juntam agora também os indostânicos, é condição suficiente para sofrer na pele diariamente algum tipo de discriminação. Mas se forem pessoas abastadas (uma pequeníssima minoria) e puderem comprar um lugar ao sol (nos bairros ricos da cidade) e pôr os filhos no colégio, a discriminação a que são sujeitos será, mesmo que apenas ligeiramente, atenuada. Pelo contrário, quanto mais pobres são, mais são vistos como ciganos, afrodescentes ou indostânicos e não como cidadãos de plenos deveres e direitos.

Cresci num bairro de vivendas geminadas, mandado construir durante o Estado Novo, em parceria com organizações corporativas, em cidades como Lisboa e Porto, para as famílias dos funcionários desse mesmo Estado, mas não só. As Casas Económicas, como passaram a ser designadas, são habitações independentes de que os moradores se tornaram proprietários ao fim de determinado número de anos, mediante o pagamento de prestação mensal. No momento seguinte, construíram-se, junto dessas vivendas, bairros sociais de blocos (assim chamados por se tratar de prédios de construção muito simples e que permanecem pertença das autarquias). Na altura, dizia-se que a construção destes bairros camarários junto às vivendas tinha o objectivo político de dar aos mais pobres o convívio com a tal classe média que se formava e assim aprenderem a sair da pobreza. Outrora, como agora, havia a ideia peregrina de que só era pobre toda a vida quem queria.

O meu avô materno, que nem cheguei a conhecer, era polícia municipal e talvez isso tenha ajudado para os meus pais terem direito a uma vivenda, onde puderam criar uma família que só parou nos nove filhos. Eram da classe média, na relativa pobreza que isso significava ser classe média naquela altura, concorreram e foi-lhes entregue uma casa que passou a ser deles ao fim de 25 anos. O meu pai tinha estudos médios e isso fez com que eu não tenha nascido predestinado a viver na pobreza, mas quis o destino que crescesse a olhar para ela. A casa, que foi crescendo à medida que crescia a família, ficava paredes-meias com o bairro social onde o que crescia era a pobreza e a discriminação. Sou testemunha do esforço titânico que aquelas pessoas (alguns andaram na escola primária comigo) faziam para serem vistos como cidadãos de corpo inteiro. O país mudou, diminui o número de pobres, cresceu a classe média, mas até isso travou às quatro rodas. A certa altura, ficamos conformados com a ideia de que o país tem de viver com dois milhões de pobres.

Para evitar vermo-nos ao espelho quando olhamos para esta pobreza económica que reflecte a pobreza dos nossos valores, empurramo-la para cada vez mais longe da elite dominante. A condição social em que me encontro faz de mim um privilegiado, mas a consciência que tenho do privilegiado que sou obriga-me a olhar ainda com mais humanidade para os que apenas podem ambicionar sobreviver um dia de cada vez. Ser de um destes bairros, levantar de madrugada para trabalhar e só regressar noite feita, ao mesmo tempo que educam os filhos, dá estas pessoas o estatuto de heróis, não o de eternos suspeitos.

Ainda assim, este ano, algures num destes bairros poderá ter nascido alguém que, daqui a 20 anos, terá uma vida ligada ao crime. Nessa altura, vamos todos apontar o dedo ao criminoso e exigir repressão policial, continuando a não ver os três dedos que se dobram e nos apontam a responsabilidade por pouco ou nada termos feito para evitar que o bebé de hoje se tornasse um criminoso no futuro. No mesmo bairro, poderá ter nascido também este ano alguém que vai ser polícia, porque é uma das formas de sair da pobreza onde nasceu, e ao entrar no bairro, traído pela má memória do perigo que lá mora, vai disparar à mais pequena ameaça. Nessa altura, vamos todos querer justiça, não cuidando de perceber que para lhe apontar um dedo há três que se dobram apontando a todos nós, porque não lhe demos condições de ser um justo braço da lei. Está nas nossas mãos fazer com que a realidade mude.


Expresso  2024 10 28

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Alexandra Lucas Coelho - Sinwar não é o vosso monstro

* Alexandra Lucas Coelho  

"1. Eu estava a dormir num prédio de Gaza quando o soldado israelita Gilad Shalit foi feito refém, na madrugada de 25 de Junho de 2006. Combatentes palestinianos, do Hamas e não só, penetraram em Israel por um túnel de meio quilómetro junto a Rafah, atacaram um posto militar, mataram dois soldados, feriram quatro e voltaram com Shalit. Quando acordámos, toda a gente sabia o que aí vinha: Gaza ia ser bombardeada (crónica desses dias no arquivo do PÚBLICO). O que ninguém podia prever, claro, é que o refém Shalit sairia o mais caro de sempre ao Estado judaico. E seria o começo de uma história que de certa forma só acabou esta semana, quando soldados comuns, uma geração depois de Shalit, mataram por acaso o actual Inimigo nº1 de Israel: Yahya Sinwar. O cérebro do 7 de Outubro, aquele a que Netanyahu chama a encarnação do mal. E que o próprio Netanyahu tirou da prisão perpétua. Porque Sinwar foi um dos 1000 prisioneiros palestinianos trocados pelo soldado Shalit em 2011, acordo que hoje parece mirabolante, se pensarmos em tudo o que Netanyahu não fez para libertar os reféns do 7 de Outubro.

2. Nesse Junho de 2006, entre o rapto do soldado e o castigo a caminho, fui às barricadas que a população de Gaza erguia para atrasar a investida terrestre. Lá estava um beduíno que me descreveu com detalhe como na madrugada do rapto dormia na sua tenda quando foi acordado por carros com militantes armados na direcção de Israel. Depois ouvira explosões e tiros, e depois vira os militantes a voltarem, arrastando um ferido. Apontaram uma arma ao beduíno para o enxotar. O ferido seria Shalit.

Esse raide contra o posto israelita era uma resposta: semanas antes, Israel executara o líder da Jihad Islâmica, e explosões israelitas numa praia do norte de Gaza tinham feito oito vítimas civis, sete das quais da mesma família. Os executores do raide eram militantes da ala militar do Hamas, dos Comités de Resistência Popular e de um desconhecido Exército do Islão. Em comunicado conjunto pediam a libertação das mulheres e jovens até 18 anos presos nas cadeias de Israel.

Mas anos depois, quando o acordo foi feito, e Shalit trocado pelos 1000, entre os libertados havia barbas rijas, até grisalhas. Como a de Sinwar, que passara 22 anos na cadeia. Pensem em 22 anos da vossa vida. Na vida de Sinwar, 22 anos a aprender hebraico, estudar história, conhecer por dentro o inimigo. Inimigo desde antes de nascer e para além da morte.

Porque Sinwar se tornou o Inimigo nº1 de Israel a 7 de Outubro, mas Israel já era o Inimigo nº1 de Sinwar havia 75 anos. Ele herda a resistência ao nascer, e vai deixá-la em herança muito mais feroz. Implacável, a começar pelos traidores internos. As condenações que o levaram à cadeia incluem execuções de palestinianos colaboradores ou suspeitos. E os israelitas que o interrogaram na prisão lembram um homem sem qualquer medo, que ameaçava os seus carrascos ali mesmo, sendo prisioneiro.

O que também ajuda a entender porque não é possível resumir — ou destruir — o Hamas como um grupo terrorista. E como o Hamas cresceu perante 1) uma Autoridade Palestiniana minada por corruptos 2) um Estado cada vez mais ocupante, a quem convinha um inimigo como o Hamas 3) um Ocidente (ou Norte Global) que abandonou os palestinianos desde 1948, depois de a Europa, a mais antiga das anti-semitas, ter ajudado a criar Israel.

Esse mesmo Ocidente que agora se escuda com o Hamas para não ver, e tentar que não se veja, a sua própria ignomínia. Como se a crueldade do que aconteceu a 7 de Outubro fosse o início e não o fim de um status quo que nunca devia ter existido. O ferro do Hamas queimou Israel até ao osso. E os líderes ocidentais tapam o seu próprio crime contínuo com o Hamas. Tal como toda a gente que não quer ver Gaza (ou o Líbano). Mas o Hamas não é o vosso escudo humano. Sinwar não é o vosso monstro. Não vai fazer esse papel. Não vai tapar o abismo aqui. O nosso.

A verdade são várias, paralelas, não se excluem. O Hamas fortaleceu-se por ser incorruptível, dar a vida à causa e sendo implacável. É um movimento religioso, de resistência nacional, que encara todos os meios como legítimos para a sua visão da libertação da Palestina, incluindo terrorismo contra civis. E, sim, desfez-se de opositores internos, de "imorais", homossexuais. Torturou não-alinhados, denunciados ou suspeitos. Incluindo, como contei várias vezes, o palestiniano de Gaza que foi meu tradutor e guia em dezenas de reportagens para este jornal, ao longo dos anos. Cuja casa de família eu partilhava quando o soldado Shalit foi raptado naquela madrugada que de certa forma foi o ovo do 7 de Outubro.

3. Uma das primeiras memórias que tenho de entrevistar alguém do Hamas em Gaza, durante a Segunda Intifada, é a de um porta-voz que chegou com um daqueles pequenos telefones tipo Nokia que todos usávamos na altura. Antes mesmo de se sentar tirou a bateria para não ser localizado. Estávamos numa esplanada, vários membros do Hamas eram relativamente acessíveis, mas não me lembro de não haver precauções deste género. Quando eu aterrei no assunto já eles tinham toda uma linhagem de assassinados. Depois, ao longo dos anos, conheci muitos membros do Hamas, homens e mulheres, e alguns dos líderes, incluindo Mahmoud Zahar, que me lembro de entrevistar em casa, ou Ismail Hanyieh. Sobretudo durante a campanha para as eleições de Janeiro de 2006, as únicas a que o Hamas concorreu, e que ganhou de forma limpa.

Sinwar não existia nesse quotidiano porque estava preso. Só foi libertado em 2011, quando eu era correspondente no Brasil, e só se tornou líder anos mais tarde. Nunca o vi, que me lembre.

Ficará para a história como o homem que infligiu a Israel o maior golpe de sempre, e não vai ser fácil substituí-lo. Não seria eu a lamentar a extinção do Hamas (ou de qualquer partido ou regime teocrático). Mas não vai acontecer. Pelo menos não tão cedo.

4. Depois de confirmar a morte de Sinwar, Israel divulgou o vídeo de um drone que supostamente filma os últimos minutos do líder do Hamas. Um homem de cara coberta está sentado no meio de um andar bombardeado, mão direita talvez amputada. Ao reparar no drone, pega num pau com a mão que sobra e atira-o contra a câmara. Não sei se é Sinwar. Mas há algo naquela imagem que é Sinwar e é o Hamas, tanto quanto o Hamas é uma ideia sem fim de resistência, enquanto estiver lá o que mantém um povo inteiro refém. Não certamente a minha ideia. Não a ideia de tantos e tantos palestinianos. Mas uma ideia verdadeira para muitos. E que muitos outros adoptaram porque mais ninguém estava lá, para lutar com eles, por eles. Infelizmente. Tal como infelizmente a defesa internacional da Palestina é reclamada por um regime tão odioso como o Irão. Não por responsabilidade dos palestinianos, mas pela derrocada moral das democracias selectivas: as nossas.  

Houve a Intifada das pedras e a Intifada das bombas suicidas, e passaram décadas. Os palestinianos perderam o passado há 76 anos, perdem o presente há 76 anos, e, mais rápido do que tínhamos visto em qualquer guerra, já perderam uma parte do futuro próximo desde 7 de Outubro. Todas aquelas crianças que continuamos a ver nos nossos telefones a serem desfeitas. E ainda assim há quem se incomode não com a continuação do holocausto, mas com o facto de se continuar a falar dele. Na verdade é simples, ou devia ser: o assunto não muda porque o assunto não mudou. E não mudará, enquanto Israel ganhar a vida à custa da morte da Palestina (ou do Líbano). E assim perder definitivamente a guerra. O futuro."


in "Público" de 19/10/2024

domingo, 20 de outubro de 2024

Carlos Coutinho - [Lobisomens]

* Carlos Coutinho

  NUNCA fui muito de acreditar em lendas estapafúrdias nem de ter medo de sombras ou de pios de coruja. Vendo um filme na televisão, lembrei-me agora de uma certa noite de sábado, na barbearia do Sr. Manuel Sacristão. Teria eu uns seis anitos, quando lá fui cortar o cabelo, à luz mortiça do candeeiro a petróleo que iluminava os rostos impacientes de meia dúzia de clientes à espera de vez.

Era inverno, o chão da rua tinha uma camada de neve quase de palmo que, depois, no caminho de regresso a casa, eu ia marcando com sulcos arrastados das minhas chancas de solas de pau. Quando cheguei ao Largo do Terreiro, comecei a notar que havia duas filas, paralelas e muito encostadas uma à outra, de outros sulcos, estes em forma de coração e com uma largura de quatro ou cinco centímetros. Podiam ser de cão grande, mas, como eu vinha com os ouvidos cheios de histórias assustadoras de lobos e lobisomens, foram marcas lupinas o que me pareceu ver pela rua acima, na direção da minha casa e do cemitério, lá muito para o alto.

Parei debaixo de um luar pálido e de mau augúrio, achei desmesurada a lua cheia e decidi seguir para o Largo do Cimo da Rua por um caminho alternativo que passa pelo Tapado, onde começa o urtigoso Quelho que desce para o Largo do Itreido. Estaquei ao lado da fonte de pedra para avaliar a situação posta pela fantástica corrida de um peludo lobisomem que passou à minha frente sem para mim olhar. Veio da Carreira Velha e embicou de cabeça oblíqua pela rota do cemitério.

Hoje sei que foi uma alucinação, consequência das histórias ouvidas na barbearia, provavelmente exploradas para me assustarem. Mas eu levei a coisa a sério e, quando me dispunha a voltar para a barbearia, apareceu esbaforido o meu tio Alberto que tinha ficado encarregado de me ir buscar e já não me encontrou. Justificou a sua demora não me lembro como e, quase a chegar a minha casa, disse:

– Estás mais suado que o meu peito numa tarde de verão. Tens febre?

– Não. Tenho fome. Vossemecê atrasou-se muito.

Fez-se um breve silêncio e eu perguntei:

– Alguma vez viu um lobisomem, tio?

– Eu? Nunca! E tu?

– Também não, mas na barbearia só se falava nisso.

Se eu não fosse sobrinho de um irmão da minha mãe, talvez confessasse que havia acreditado em certos pormenores inquietantes daquelas arrastadas conversas mal-intencionadas, mas a verdade é que desatámos ambos a rir, já no quinteiro que havia à frente da minha antiga casa.

Passados estes anos todos e puxado pela televisão para as crenças de antanho, fui à Internet procurar o que haveria sobre o assunto e, então, fiquei a saber que, na lúgubre barbearia que ficava por cima da loja de uma vaca leiteira e ao lado da sapataria do Sr. Lucindo, nada tinha sido inventado e que lobisomem ou licantropo (do grego λυκάνθρωπος: λύκος, lýkos, ‘lobo’ e άνθρωπος, ánthrōpos, ‘humano’) é uma pessoa capaz de se transformar num faminto lobo ou em algo semelhante a um lobo, quase sempre em inquietantes noites de lua cheia.

Tal lenda aparece nas obras de vários autores que contam a história do pugilista arcádio Damarco da Parrásia, herói olímpico, que assumiu a forma de lobo nove anos após um sacrifício a Zeus Liceu, lenda atestada pelo geógrafo Pausânias.

Também Heródoto, nas suas “Histórias”, escreveu que, de acordo com o que os citas acreditavam, os gregos estabelecidos na Cítia lhe contaram serem os Neuri, uma tribo do Nordeste, que eram todos transformados em lobos, uma vez por ano, durante vários dias, voltando seguidamente à forma humana. O historiador teve o cuidado de acrescentar que não estava convencido da veracidade dessa história, mas os moradores locais juravam que ela era verdadeira. Esta lenda também foi narrada por Pomponius Mela.

No século II a.n.e. o geógrafo grego Pausânias contou a história do rei Licaão da Arcádia, que foi transformado em lobo porque sacrificou uma criança no altar de Zeus Liceu. Na versão escrita em latim por Ovídio nas suas “Metamorfoses”, quando Zeus visitou Lacaão, disfarçado de homem comum, o visitado quis testar se ele era realmente um deus. Para tanto, matou um refém molossiano e entregou as entranhas da vítima a Zeus. Enojado, este transformou Licaão em lobo. No entanto, noutros relatos da lenda, como o da Bblioteca de Apolodoro, Zeus atacou-o, bem como aos filhos, com raios e coriscos, como como punição divina.

Esta história também é contada por Plínio, o Velho, que chama a Licaão a Demaenetus, citando Agripas. Segundo Pausânias, este não foi um acontecimento único, já muitos homens foram transformados em lobos durante os sacrifícios a Zeus Liceu. Se eles se abstivessem de comer carne de gente enquanto eram lobos, seriam restaurados com a forma humana nove anos depois, mas, se não se abstivessem, permaneceriam lobos para sempre.

Os primeiros autores cristãos também mencionaram lobisomens. Na obra “Cidade de Deus”, o bispo Agostinho de Hipona (Santo Agostinho) faz um relato semelhante ao encontrado em Plínio, o Velho. Agostinho explica que "é geralmente aceite que, por certos feitiços de bruxa, os homens podem ser transformados em lobos.”

Esta metamorfose fisionómica também foi mencionada no “Capitulatum Episcopi”, atribuído, desde a sua reunião no século IV, ao Concílio da Ancira e tornou-se texto doutrinário da Igreja em relação à magia, bruxas e transformações como as dos lobisomens. Nele está escrito que “quem acredita que qualquer coisa pode ser transformada noutra espécie ou semelhança, exceto pelo próprio Deus é sem dúvida um infiel.”

Há também evidências de uma crença generalizada em lobisomens na Europa medieval. Os lobisomens foram mencionados em códigos de então, como o do Rei Canuto II da Dinamarca, cujas “Ordenações Eclesiásticas” nos informam de que esses códigos visam garantir que “o lobisomem loucamente audacioso não devaste muito, nem morda muitos dos membros do rebanho espiritual.”

Liuprando de Cremona, por sua vez, fala de um boato segundo o qual Bajan, filho de Simeão I da Bulgária, poderia usar magia para se transformar em lobo.

As obras de Agostinho de Hipona tiveram grande influência no desenvolvimento do cristianismo ocidental e foram amplamente lidas pelos clérigos do período medieval que ocasionalmente peroravam sobre lobisomens em suas obras. Exemplos famosos incluem “Werewolves of Ossory”, de Geraldo de Gales, na sua “Topographica Hibernica”, assim como em “Otia Imperiala”, de Gervase de Tilbury, ambos escritos para o público real.

Gervase revela que a crença em tais transformações (ele também menciona mulheres que se transformam em gatos e em cobras) foi difundida por toda a Europa. Usa a frase “que ita dinoscuntur”, ao discutir essas metamorfoses, que significa “é conhecido”". Escreveu na Alemanha e também diz que a transformação de homens em lobos não pode ser facilmente descartada, pois “na Inglaterra, muitas vezes vimos homens transformarem-se em lobos (“Vidimus enim frequenter in Anglia per lunationes homines in lupos mutari”).

As tradições pagãs germânicas associadas a homens-lobos persistiram por mais tempo na Era Viking escandinava. Harald I da Noruega tinha um corpo de Úfhednar, os “homens revestidos de lobo”, que são mencionados em “Vatnsdœla, Haraldskvæði! e na “Saga dos Volsungos”, parecendo-se com algumas lendas de lobisomens.

Os Úlfhednar eram lutadores semelhantes aos berserkers, embora se vestissem com peles de lobo, em vez de peles de urso, e tivessem a reputação de absorver os espíritos desses animais para aumentarem a eficácia na batalha. Úlfhednar e os berserkers estão intimamente associados ao deus nórdico Odin que deu excelente substância a Wagner para as suas óperas.

As crenças escandinavas deste período podem ter-se espalhado pela Rússia de Kiev, dando origem aos contos eslavos de lobisomens. Um príncipe bielorrusso do século XI, Vseslav de Polotsk, foi descrito como um lobisomem, capaz de se deslocar em velocidades sobre-humanas, conforme se pode ler no “Conto da Campanha de Igor”:

“Vseslav, o príncipe, julgou os homens; como príncipe, ele governou cidades; mas à noite ele rondava disfarçado de lobo. De Kiev, rondando, ele alcançou, antes da tripulação dos galos,Tmutorokan. O caminho do Grande Sol, como um lobo rondando, ele cruzou. Para ele, em Polotsk, os sinos tocavam cedo para as matinas em Santa Sofia; mas ele ouviu o toque em Kiev.”

“Ser um lobisomem” era uma acusação comum em julgamentos de bruxas ao longo da história, e apareceu até nos julgamentos de bruxas de Valais, um dos primeiros casos desse tipo, no século XV.

Na “Historia de Gentibus Septentrionalibus”, Olaus Magnus descreve uma assembleia anual de lobisomens perto da fronteira Lituânia-Curlândia. Os participantes, incluindo a nobreza lituana e lobisomens das áreas vizinhas, reniam-se para testarem a sua força, tentando saltar sobre as ruínas de uma muralha de castelo. Aqueles que conseguiam eram considerados fortes, enquanto os participantes mais fracos eram punidos com chicotadas.

Também houve numerosos relatos de ataques de lobisomens – e consequentes julgamentos judiciais – na França do século XVI. Nalguns casos havia provas claras contra os acusados de homicídio e canibalismo, mas nenhuma associação com lobos. Noutros, as pessoas ficaram aterrorizadas com essas criaturas, como no caso de Gilles Garnier em Dole, em 1573, que foi condenado por ser lobisomem.

Um pico de atenção para com à licantropia ocorreu no final do século XVI, como parte da caça às bruxas na Europa. Vários tratados sobre lobisomens foram escritos na França entre 1595 e 1615. Lobisomens foram avistados em 1598 em Anjou e um lobisomem adolescente foi condenado a prisão perpétua em Bordéus em 1603. Henry Boguet escreveu um longo capítulo sobre lobisomens em 1602. No Vaud, lobisomens foram condenados em 1602 e 1624. Um tratado escrito por um pastor de Vaud em 1653 afirma-se, no entanto, que a licantropia é puramente uma ilusão.

Depois disso, o único registo adicional do Vaud data de 1670: é o de um menino que alegou ter, tanto ele como a mãe, a capacidade de se transformarem em lobos, o que não foi levado a sério. No início do século XVII, a bruxaria foi perseguida por Jaime I da Inglaterra, que considerava os “warwoolfes” vítimas de um delírio induzido por “uma superabundância natural de melancolia”.

Depois de 1650, a crença na licantropia desapareceu em grande parte da Europa de língua francesa, como consta da “Enciclopédia", de Diderot, onde os relatos de licantropia não são mais que um “transtorno do cérebro".

A parte da Europa que mostrou interesse mais vigoroso pelos lobisomens depois de 1650 foi o Sacro Império Romano-Germânico. Pelo menos nove obras sobre licantropia foram impressas na Alemanha entre 1649 e 1679. Nos Alpes austríacos e bávaros, a crença em lobisomens persistiu até o século XVIII. Também na nossa vizinha Galiza, em 1853, Manuel Blanco Romasanta foi julgado e condenado como autor de uma série de assassinatos, mas afirmou estar inocente devido à sua condição de “lobishome”.

Isto é corroborado pelo facto de em áreas desprovidas de lobos ocorrerem normalmente diferentes tipos de predadores mitificados: homens-hiena na África, homens-tigre na Índia, bem como homens-puma (‘runa uturuncu’ e homens-jaguar (‘yaguaraté-abá’ ou ‘tigre-capiango’) na América do Sul.

O vampiro também tinha relação com o lobisomem nos países do Leste europeu, particularmente na Bulgária, Sérvia e Eslovênia. Na Sérvia, o lobisomem e o vampiro são conhecidos como vulkodlak. Daí nasceu o famoso Drácula romeno.

Na sua obra, Gerard registrou os relatos das diversas etnias que fazem parte da Transilvânia (alemães, ciganos, húngaros, romenos, entre outros) sobre diversos aspetos da vida na região, bem como as superstições sobre o mau-olhado, espíritos, bruxas, vampiros (dos tipos strigoi, moroi e nosferatu) e lobisomens (representados pelos prikolitch e pelo vârcolacve):

“O primo-irmão do vampiro, o werwolf dos alemães, é encontrado aqui sob o nome de Prikolitsch. Às vezes é um cão e não um lobo, cuja forma um homem assumiu, ou foi obrigado a assumir, como penitência pelos seus pecados.

Numa aldeia ainda se conta — e acredita-se – a história de um homem que, num domingo, voltando para casa com a esposa, sentiu de repente que havia chegado o momento da sua transformação. Entregou-lhe as rédeas da carruagem em que seguiam e correu para o meio dos arbustos, onde, murmurando uma fórmula mística, deu três cambalhotas sobre uma vala.

"Logo depois, a mulher, que esperava em vão pelo marido, foi atacada por um cachorro furioso, que saiu latindo do mato e conseguiu mordê-la com força e rasgar-lhe o vestido. Quando, uma ou duas horas depois, a mulher chegou a casa depois de dar o marido como perdido, ficou surpresa ao vê-lo a vir sorrindo ao seu encontro; mas quando entre os dentes dele ela avistou os pedaços de seu vestido mordidos pelo cachorro, o horror dessa descoberta a fez desmaiar."

Há referências muito antigas ao lobisomem em Portugal. Aparece no “Rifão” de Álvaro de Brito (Cancioneiro Geral):

"Sois danado lobisomem,

Primo d’Isac nafú;

Sois por quem disse Jesus

Preza-me ter feito homem."

(Garcia de Resende, in “Excertos”)

É também mencionado no “Vocabulário Português e Latino”, de Rafael Bluteau, e num soneto de Bocage:

"Profanador do Aónio santuário,

Lobisomem do Pindo, orneia ou brama,

Até findar no Inferno o teu fadário!"

(Bocage, in “Obras Escolhidas”.

No século XIX, Alexandre Herculano escreveu sobre o lobisomem da região da Beira-Baixa:

“Os lubis-homens são aqueles que têm o fado ou sina de se despirem de noite no meio de qualquer caminho, principalmente encruzilhada, darem cinco voltas, espojando-se no chão em lugar onde se espojasse algum animal, e em virtude disso transformarem-se na figura do animal pré-espojado. Esta pobre gente não faz mal a ninguém, e só anda cumprindo a sua sina, no que têm uma cenreira mui galante, porque não passam por caminho ou rua, onde haja luzes, senão dando grandes assopros e assobios para se lhas apaguem, de modo que seria a coisa mais fácil deste mundo apanhar em flagrante um lubis-homem, acendendo luzes por todos os lados por onde ele pudesse sair do sítio em que fosse pressentido. É verdade que nenhum dos que contam semelhantes histórias fez a experiência. (in “Opúsculos”).

Nos seus estudos sobre mitologia popular, o escritor e etnógrafo Alexandre Parafita reconhece que, embora a designação sugira tratar-se de um ser híbrido de homem e lobo, muitas das crenças sobre esta criatura identificam-na na figura tanto de lobo, como cavalo, burro ou bode, consistindo o seu fadário em ir despir-se à meia-noite numa encruzilhada, espojando-se no chão, onde um animal já antes fizera o mesmo, após o que se transforma nesse animal para ir “correr fado”.

Camilo escreve nos “Mistérios de Lisboa”:

“A porta em que bateu o padre Diniz comunicava para a sala em que estavam duas criadas da duquesa, cabeceando com sono, depois que se fartaram de anotar as excentricidades de sua ama, que, a acreditá-las, há cinco anos que cumpria fado, espécie de Loba-mulher, ou Lobis-homem fêmea, se os há, como nós sinceramente acreditamos.”

Pronto, por hoje basta. Já estou a ficar com fome, como quando saí da barbearia do Sr. Manuel Sacristão, naquela noite enluarada de lobisomens.


2024 10 20

https://www.facebook.com/carlos.coutinho.7186896

sábado, 19 de outubro de 2024

Bruno Amaral de Carvalho - Beirute, capital da resistência




Bruno Amaral de Carvalho [*]
 
Uma cidade é feita de muitas contradições, das suas luzes e sombras, dos seus cheiros e sons e, sobretudo, das histórias de quem nela vive. Das costureiras aos artesãos, dos taxistas às cozinheiras. O Líbano é, hoje como no passado, um lugar assediado pelas bombas israelitas, onde mulheres e homens enfrentam a invasão com a dignidade de quem entende estar do lado certo da história. Beirute, uma vez mais, é a capital da resistência.

Esta mulher que está sentada no chão, de negro da cabeça aos pés, na marginal de Beirute, não tem praticamente nada. Não tem nome porque não se quer identificar nem que se lhe mostre o rosto. Um chapéu de sol, um colchão individual de espuma e a roupa que tem no corpo foi tudo o que conseguiu trazer na noite em que Israel começou a bombardear o seu bairro, nos subúrbios a sul de Beirute. Já passou uma semana desde que fugiu de casa com a família. A princípio, lavavam-se num dos muitos hoteis e condomínios de luxo com vista para o Mediterrâneo. Agora, nem isso podem fazer, diz, porque os proprietários se fartaram. Como esta família, há milhares de famílias por todas as partes. No areal da praia, no passeio marítimo, nos separadores e rotundas, em jardins, escolas, em varandas de casas sobrelotadas.

O governo libanês afirma que há, neste momento, um milhão de refugiados, números nunca vistos num país que já foi invadido por Israel quatro vezes, que viveu uma guerra civil e que tinha, até há bem pouco tempo, no seu território, cerca de dois milhões de refugiados palestinianos e sírios. Milhares de libaneses fogem agora para a Síria e para o Iraque. Os ricos fogem de iate para Chipre, numa prova irrefutável de que, como sempre, as tragédias são vividas de forma diferente consoante a classe social a que se pertence. Contudo, Beirute não esquece os seus e, por todo o lado, em cada esquina, é possível ver quem descarregue colchões, garrafões de água e outro tipo de víveres essenciais. E em vários pontos da cidade, organizações políticas recorrem à força para rebentar as portas fechadas de hotéis e edifícios desabitados para abrigar os refugiados, como aconteceu no bairro de Hamra, numa das primeiras madrugadas a seguir aos primeiros bombardeamentos. Num ato de revolta, gritando contra Israel, cerca de meia centena de jovens arrancaram o portão de um prédio vazio e a seguir conduziram várias famílias para o seu interior.

Dahieh, o coração da resistência

Esta mulher que está sentada no chão sem praticamente nada não é de um bairro qualquer. É de Dahieh, e Dahieh é uma espécie de nome maldito para Israel. Todas as noites, sem exceção, a população que vive no bastião do Hezbollah é castigada por apoiar a resistência. Foi aqui que no dia 27 de setembro a aviação israelita lançou 80 bombas com quase uma tonelada de explosivos sobre o quartel-general da organização xiita para matar Hassan Nasrallah e outras figuras importantes. De lágrimas nos olhos, diz ainda não acreditar que morreu. “Precisamos do Hezbollah para nos defender”. Durante quase um dia, o país parou em suspenso. Apoiantes e inimigos, todos esperavam saber da sorte de Nasrallah. Por volta das 14 horas do dia seguinte, gritos e lágrimas tomaram conta das ruas. E mulheres vestidas de negro como esta choraram a morte do seu herói.

O histórico secretário-geral do Hezbollah negociava uma trégua quando foi assassinado por Israel, o mesmo que acontecera ao líder do Hamas, Ismail Haniyeh, no Irão. Então, os Estados Unidos haviam prometido a Teerão que Telavive aceitaria o cessar-fogo se não respondesse ao atentado. Com a cumplicidade dos Estados Unidos, não só isso não aconteceu, como Israel estendeu a sua guerra ao Líbano e intensificou os ataques na Síria e no Iémen.

Caminhar pelo bairro de Dahieh é percorrer ruas completamente destruídas, ver automóveis esmagados e crateras onde antes havia prédios. É um cenário desolador. Sobre uma montanha de destroços, alguém pôs o retrato de Hassan Nasrallah. “Fuck Israel, we will win!”, gritam vários jovens quando se apercebem de que há jornalistas na zona. À Voz do Operário, um militante do Hezbollah que aceita falar sob anonimato recorda o papel do até agora líder da organização. “Era enorme. Tiveram de usar uma tonelada de explosivos para o matar. Prevaleceremos e venceremos”, afirma.

Há, neste momento, por parte de Israel, uma campanha de assassinatos de dirigentes das principais organizações da resistência libanesa e palestiniana. No bairro de Kola, em Beirute, a aviação israelita destruiu três andares de um prédio para matar três destacados militantes da Frente Popular para a Libertação da Palestina, a histórica organização comunista que combate ao lado do Hamas e outras forças da resistência contra as forças de Israel em Gaza e na Cisjordânia.

A violência do ataque atirou varandas de ferro para o outro lado da rua. Ali, num descampado debaixo de um viaduto, centenas de documentos, livros e cartazes jaziam inertes como prova de fogo. Um documento de saudação à libertação de Lula da Silva da prisão, um cartaz com Fidel Castro a discursar em Havana e o retrato de Lénine eram alguns dos objetos que se podiam encontrar no local. No dia seguinte ao ataque, milhares de palestinianos e libaneses acompanharam o funeral que percorreu os vários campos de refugiados.

Israel ataca hospitais e centros de saúde

O Hospital Rafik Hariri fica ao lado do campo de refugiados palestinianos Mar Elias e demasiado perto de Dahieh. É o maior centro hospitalar de Beirute, com espaço para 550 pacientes. Todos os dias chegam aqui mulheres e homens vítimas das bombas de Israel. Neste momento, 80% da capacidade ocupada corresponde a feridos de guerra. “Até ao momento, temos reduzido ao máximo casos que podem ser adiados. Queremos todas as camas para as vítimas da guerra”, explica Jihad Sade, o diretor hospitalar, no seu gabinete. Com a experiência de quem já viveu várias invasões israelitas, descreve os trabalhadores que dirige como muito preparados para tratar o tipo de feridas mais comuns neste cenário de conflito.

Com o número de mortes provocadas por Israel desde 8 de outubro de 2023 a chegar aos 2 mil, incluindo 127 crianças, Jihad Sade diz que é imprevisível o comportamento de Telavive em relação aos equipamentos de saúde. Em Bachoura, um bairro central de Beirute, Israel atacou um centro de saúde durante a noite e matou nove profissionais de saúde. Como em Gaza, as forças israelitas não têm linhas vermelhas e ao fecho desta edição tinham morto já 73 destes trabalhadores em diferentes partes do país.

De acordo com este médico, a guerra vai acabar quando houver respeito entre todos. “Dêem direitos [aos palestinianos]. A força é temporária e o conflito não vai acabar se não respeitarem os direitos [dos palestinianos].

07/Outubro/2024

[*] Jornalista.

O original encontra-se em vozoperario.pt/jornal/2024/10/07/beirute-capital-da-resistencia/

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Carlos Matos Gomes - O julgamento de Ricardo Salgado — Big Show BES

* Carlos Matos Gomes


O julgamento de Ricardo (Espirito Santo) Salgado é um espetáculo de farsa politica com a cobertura de legalidade proporcionada pelo sistema judicial e encenado pela comunicação social.

A justiça do Estado sacode as pulgas do tapete para assegurar o regime de capitalismo de papel e especulação. Os políticos do regime fazem de macacos cegos surdos e mudos. A indústria do espetáculo aproveita o espetáculo grátis e aumenta as audiências. O povo aplaude e compra os produtos anunciados nos intervalos. No entanto está em causa o julgamento do sistema financeiro que é o fundamento do capitalismo, seja ele gerido por democracias liberais ou ditaduras. Um sistema implantado no final do século XVII pela família Rothschild.

Deixem-me emitir e controlar o dinheiro de uma nação e não me importarei com quem redige as leis.

Mayer Amschel (Bauer) Rothschild, o fundador da família

Todo aquele que controla o volume de dinheiro de qualquer país é o senhor absoluto de toda a indústria e comércio, e quando percebemos que a totalidade do sistema é facilmente controlada, de uma forma ou de outra, por um punhado de gente poderosa no topo, não precisaremos que nos expliquem como se originam os períodos de inflação e depressão.

James Garfield, presidente dos Estados Unidos, 1881(assassinado)

Por detrás deste espetáculo do julgamento de Ricardo Salgado encontra-se a relação de dupla dependência entre a política e a finança anunciada no final do século XVII por Mayer Amschel (Bauer) Rothschild, o fundador da família que criou o sistema bancário que da Europa, através do Banco de Inglaterra, expandiu para os Estados Unidos, onde se associou à família Rockefeller e que está na base do FED, a Reserva Federal Americana. O sistema que os Espirito Santo e os outros banqueiros utilizaram e utilizam para obter lucros assenta no que pomposamente se designa por fractional reserve lending, (FRL) ou “empréstimo baseado numa reserva fracionada”, ou “empréstimo sem cobertura ou base real”. Embora de enunciado complexo, a prática é muito simples;significa emprestar mais dinheiro do que está em caixa e transformou-se na maior fraude legal de todos os tempos.

O sistema bancário de reserva fracionada é o que vigora em todos os países do mundo, no qual os bancos que recebem depósitos do público mantêm apenas parte de seus passivos de depósito em ativos líquidos como reserva, geralmente emprestando o restante aos tomadores. As reservas bancárias são mantidas como dinheiro no banco, ou como saldos na conta do banco no banco central.

A família Espirito Santo foi a que primeiro e mais intensamente interpretou estes princípios em Portugal e os impôs ao poder político, desde o fundador da família ter evoluído de dono de uma casa de câmbios até os seus filhos surgirem como os banqueiros do regime de Salazar e desempenharem um papel político de primeira grandeza no Portugal do Estado Novo durante o período crucial da Segunda Guerra Mundial, colaborando na manutenção do difícil equilíbrio entre os aliados ingleses e a Alemanha nazi.

Os Espirito Santo, a quem a imprensa da época chamava “os Rockefeller de Portugal”, ofereceram refúgio às realezas fugidas da guerra, entre eles os condes de Paris, com os seus dez filhos, os condes de Barcelona, o rei Humberto de Itália, e o mais significativo de todos, o Duque de Windsor que acabara de abdicar do trono em Inglaterra, apesar de essa presença ser delicada para o regime de Salazar por prejudicar a sua pretensa neutralidade e de também não ser do agrado Churchill dadas as simpatias pro germânicas do duque ex.rei.

Ricardo Espirito Santo, o herdeiro do fundador, culto e muito amigo de artistas, tinha as costas quentes, era casado Maria Pinto de Morais Sarmento y Cohen, filha de un banqueiro de Gibraltar, Abraham Cohen, britânico de origem judaica, e sobrinha do barão de Sendal e através deste casamento os Espirito Santo conheceram e fizeram amizade com toda a realeza exiliada em Cascais e com as suas redes de influência.

O Banco Espirito Santo era, de todos os bancos portugueses, o mais internacionalizado e o que tinha mais fortes ligações ao Estado. A sua nacionalização em 1975 não quebrou a influência da família na política portuguesa, nem quebrou a ligação da família ao mundo da grande banca internacional. Pertenci à Assembleia do MFA do dia 11 de março de 1975 que aprovou a nacionalização da banca. Consciente da importância da banca na definição do poder político. Sofri as consequências dessa opção no 25 de Novembro de 25 de 1975, assumindo-as como naturais da parte dos que optaram pelo regime de “mercado” e pelos seus financiadores.

O 25 de Novembro de 1975 e o seu programa de integração de Portugal na ordem política e económica vigente na Europa Ocidental, implicava as privatizações indispensáveis à recuperação do poder das velhas oligarquias e da ascensão das novas, exigia a criação de novos bancos, caso do BCP e do BPI e aconselhava o regresso da marca mais prestigiada internacionalmente, a que garantia a credibilidade do novo regime. Mário Soares percebeu a importância do regresso de um nome tão prestigiado e com tão boas relações no mundo da finança internacional e promoveu o regresso da família Espirito Santo a Portugal, o que foi conseguido através dos bons ofícios de Francois Miterrand com a associação ao Crédit Agricole.

Há razões nunca explicadas por detrás da “resolução do BES” e as principais não são aquelas que se encontram no julgamento espetáculo. Com todo o respeito pelos lesados do BES, que viram sumir as suas economias e exprimem o seu protesto contra a figura de Ricardo Salgado, há que explicar se foi o Estado Português que propôs a resolução do BES à Comissão Europeia, ou se foi dela a imposição dessa medida jamais utilizada. Não havia alternativa? Não havia o exemplo do Lehman Brothers, da seguradora AIG, não foi encontrada recentemente uma outra solução para a União dos Bancos Suíços?

O BES era o único banco privado com “nacionalidade portuguesa”, embora associado ao Crédit Agricole francês. Todos os outros bancos que resultaram da reprivatização tinham passado para o controlo da banca espanhola, de capitais ingleses, americanos, alemães. Todo o sistema bancário português tem a sede em Espanha, em Madrid ou Barcelona. O sistema bancário português está hoje integrado no sistema mundial através de Espanha, o chamado “mercado ibérico”.

O BES tinha, por tradição, o papel de banco do regime, fora o banco que assegurou a transferência do ouro alemão que pagou o tungsténio, o volfrâmio, durante a Segunda Guerra, por exemplo. Nos anos anteriores à resolução era o BES que estava a financiar a implantação de grandes companhias portuguesas no Brasil e em Angola, dois mercados emergentes e muito cobiçados pela finança internacional, em particular a inglesa e a francesa. Era o BES que financiava a implantação da TELECOM no Brasil, uma ação importante de presença num grande mercado em expansão no continente sul-americano, e era o BES que estava a financiar através de uma filial, o BESA, o apoio a empresas portuguesas no mercado de Angola, outro espaço cobiçado pela banca internacional.

O BES intervinha na diversificação dos mercados de grandes empresas portuguesas em mercados importantes em concorrência com os grandes bancos europeus que têm, como é evidente, um peso de lobbying incomparavelmente superior junto de Bruxelas e dos seus financeiros. Era um concorrente a eliminar e assim foi.

Todo o negócio bancário se baseia na usura, toda a utilização do capital para obter lucro é abusiva, isto porque o lucro é obtido com a venda de um produto que não tem base material, que existe apenas porque as autoridades de um dado estado garantem que o banqueiro, o moneychanger, é de confiança e honrará o compromisso de pagar os juros aos depositantes.

O BES sob a administração de Ricardo Salgado vendeu mais dinheiro do que aquele que podia remunerar aos juros acordados. E fê-lo coberto pela reputação de confiança que lhe era e foi publicamente demonstrada pelas mais altas figuras do Estado, o presidente da República, Cavaco Silva, tido por eminente professor de Finanças, pelo primeiro-ministro Passos Coelho, pela ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, recentemente nomeada pelo atual governo comissária europeia, pelo governador do Banco de Portugal, a entidade reguladora, Carlos Costa, pelos mais conceituados comentadores políticos com acesso aos mais poderosos meios de comunicação, caso de Marcelo Rebelo de Sousa. Todos serviram de fiadores de Ricardo Salgado! Todos e todos os ministros que assinaram a ata do Conselho de Ministros que decretou a “resolução” do BES deviam responder em tribunal e serem corresponsabilizados pelos prejuízos.

O BES foi também a instituição escolhida pelo ministério da Defesa dirigido por Paulo Portas para conduzir as operações financeira de leasing que esteve e está na base do fornecimento dos helicópteros EH 101 e dos submarinos da classe Tridente, que pertencem formalmente a uma empresa e não ao Estado Português. Um banco da maior confiança do Estado e dos seus governos, de que nenhum agente político desconfiou, antes pelo contrário afiançou.

O que aconteceu ao BES, ou no BES, foi, em termos simples um excesso do abuso de confiança dentro de um sistema, o bancário, que assenta num contínuo abuso da confiança instituído pelos Estados que obrigam os cidadãos a confiar nos usurários (os banksters) para terem acesso aos bens essenciais, desde a habitação ao transporte, à alimentação, à educação, ao lazer. Quem estabelece o valor dos bens são, em última instância, os banqueiros que em Washington e na Wall Street de Nova Iorque impõem o valor do dólar como moeda de troca universal. São eles que estabelecem a inflação que gera lucros aos banqueiros e prejuízos aos clientes. São eles que desencadeiam crises e guerras para manipular o valor do dinheiro.

Agora, no Big Show BES, tudo se vai resumir a artigos dos vários códigos diante de um tribunal que interpretará factos contabilísticos, considerando-os crime ou não à luz dos seus preceitos, quando a questão era e é de política e os políticos estão todos eles a fazerem-se de mortos. Ou praticaram o rito judaico do Kaparot, realizado nas vésperas do Yom Kippur, uma expiação simbólica dos pecados, em que milhares de galos e galinhas são degolados em Israel e o sangue derramado pelas cabeças. Um ritual de arrependimento e perdão.

Numa entrevista ao Público, Vitor Bento, o administrador do BES na data da sua resolução e é hoje o presidente da Associação Portuguesa de Bancos, garante que o que aconteceu ao BES não aconteceria hoje e que o sistema bancário português está mais controlado e merece confiança. É uma afirmação paliativa, como garantir que não vai ocorrer um terramoto.

O sistema financeiro mundial baseado no dólar está em equilíbrio periclitante. As guerras na Ucrânia e no Médio Oriente têm como causa a manutenção do dólar enquanto moeda de troca universal, o que implica força para o impor e é essa força que está a ser desafiada nessas guerras e é do resultado delas que depende a solidez do sistema bancário da área do dólar, que está a sofrer a concorrência das moedas dos BRICS.

O julgamento de Ricardo Salgado conduz à triste conclusão de que no capitalismo os cofres dos bancos contêm papel que tem o valor que a Reserva Federal dos Estados Unidos lhe atribuir e que os Estados nacionais atestam com a assinatura do governador do banco nacional. Nenhum cidadão sabe o que significam os algarismos do seu extrato bancário.

Alguém decidiu que as “obrigações” emitidas pelo BES eram papel sem valor e eram, mas resta a pergunta, porque elas, porque aquelas? Porque ninguém do BCE em Franckfurt ao Banco de Portugal em Lisboa viu o que se estava a passar no BES? Essas perguntas jamais serão colocadas em tribunal.

O espetáculo no Campo da Justiça, centrado na figura de um vencido que gera sentimentos de vingança a vários níveis, a do poderoso arrastado para o cadafalso, também esconde a vileza das ratazanas políticas que continuam a representar o seu número de macacos cegos, surdos e mudos. 

Já agora, não há lesados no caso BPN, dos amigos de Cavaco Silva, nem do BANIF da Madeira.

2024 10 17

https://cmatosgomes46.medium.com/o-julgamento-de-ricardo-salgado-big-show-bes-7861cc357d4f

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Miguel Esteves Cardoso - Ler às pilhas é o melhor

* Miguel Esteves Cardoso

Ler em pilhas é a melhor maneira de ler. As pilhas não podem ter mais de 8 livros cada uma, para não dificultar muito a extracção. Isto sabendo que apetece sempre mais ler o livro que está por baixo.

16 de Outubro de 2024

Não consigo entrar num estúdio de rádio sem pensar em livros. Aquela mesa oval, enorme, vazia, limpíssima, com um buraco no meio, dá-me vontade de ler.

Imagino-me no buraco, em cima de uma cadeira com rodas, a circular por dentro da mesa, cheia de pilhas e mais pilhas de livros novinhos em folha, todos a competir pela minha atenção


É assim que está a minha sala de estar neste momento, com pilhas de livros por toda a parte, mas sempre à mão dos sofás onde me sento.


Ainda não foram arrumados – o que, em língua livreira, significa esquecidos, sepultados, comprimidos uns contra os outros para nunca mais poderem dançar.

 
Ler em pilhas é a melhor maneira de ler. As pilhas não podem ter mais de oito livros cada uma, para não dificultar muito a extracção. Isto sabendo que apetece sempre mais ler o livro que está por baixo deles todos.


Mas é espantosa a quantidade de pilhas que se pode ter à volta de um sofá – sobretudo com a cumplicidade de umas mesinhas e de uns jornais velhos dobrados, para não serem contaminadas pelo chão.

Na leitura – se é que quer mesmo competir com a Internet – o que conta é o acesso. Isso de uma pessoa levantar-se estraga tudo. Quem consulta paga multa. E então quando não se encontra o raio do livro e é preciso percorrer as prateleiras com o mandado de busca nas mãos vazias.

O ser humano lida bem com o número oito. É só uma meia dúzia mais dois: o ideal para uma pilha temática. O segredo é saber fazer as pilhas, segundo os autores, ou as urgências, ou os apetecimentos mais frequentes.

Depois, há a disposição das pilhas: a pilha mais perto de si tem de ser um pódio – e todos os dias tem de ser reavaliada, para ver quem merece lá ficar.


Em cada pilha, o livro de cima é o único que tem o direito de mostrar a capa. Tem de ser muito bem escolhido, porque é esse – a preguiça é tramada – em que mais vezes irá pegar.

Claro que as pilhas são temporárias. São umas férias de Verão, antes de ir para o Inverno das estantes.

Colunista

https://www.publico.pt/2024/10/16/opiniao

Carlos Coutinho - [As clarissas em Portugal]



* Carlos Coutinho

2024 10 16

JULGO que poucos serão os conhecedores de que as clarissas são as autoencurraladas monjas da Ordem de Santa Clara., organização católica romana que dispôs de um enorme poder económico e político-militar, instalada que foi num imponente convento edificado às suas ordens na foz de um rio desprovido de asas, o Ave, em Vila do Conde, terra do poeta presencista que ao vai “por aí”, José Régio e que era colecionador de crucifixos, além de irmão de um notável pintor, Júlio, que também escrevia versos.

   Muito menos ainda serão os que sabem ter a Ordem de Santa Clara, meio século após ter chegado a Portugal, abriu em Lamego, Alto Douro, em 1254, o seu primeiro convento, sob a jurisdição dos franciscanos, que gostavam de “escadas a subir para o céu”, tendo alegadamente surgido de um sonho que Teresa Martins e Afonso Sanches, filho bastardo de D. Dinis, em que um “fumo odorífero” brotava do interior da terra. Aliás, segundo o cronista franciscano Manuel da Esperança, na sua “Corte da Glória”, tal foi um fenómeno recorrente em Portugal, em diferentes séculos e lugares, tendo o também franciscano e cronista frei Fernando da Soledade deixado escrito que uma mulher de “aprovada virtude” sonhou igualmente, no século XVI, com os mesmos odores no mesmo lugar, o que levou  mais tarde a rainha D. Leonor, a das misericórdias, a  ter a mesma “visão” aromática e a mandar construir em Lisboa o Convento da Madre de Deus que agora, para desgosto de muitos turistas, tem as portas sempre encerradas, não vá o Diabo tecê-las.

      De acordo com a sua carta de fundação, o ascetário de Vila do Conde destinava-se a jovens fidalgas descendentes de famílias nobres caídas em ruina. O regime era de clausura absoluta e, em contraste com o riquíssimo património do mosteiro, “tudo era muito pobre”, garante frei Fernando da Soledade: as freiras andavam descalças e vestiam apenas uma túnica de sarja ou um silício  de tecido grosseiro; nas celas tinham como cama alguns ramos de carqueja e cobertas pobres; consumiam dietas frugais de peixe e vinho, água e pão.

   Francamente, para mim, andar sem cuecas ainda vá lá - já tenho visto gente assim -, mas dormir em cima de uns agrestes ramos de carqueja, só as brasas com que se cozia o pão e o arroz do forno na minha casa da infância.

   Havia, no entanto, fartura por ali. Pescava-se no rio Ave trutas, sáveis e lampreias e no porto de mar as embarcações dos pescadores locais prodigalizavam peixe todo o ano. As searas tinham abundância de trigo, milho e centeio, árvores de fruto e boas hortaliças. Duas vezes por mês, havia feira franca no largo principal e a pacatez estabelecida era apenas quebrada uma vez por ano, durante a grande Feira de Santo Amar, que durava três dias e era montada no terreiro da capela homónima. 

   A vila, segundo a investigadora Maria José Oliveira, era pequena, mas bem dotada de autoridades locais – tinha alcaide e três vereadores, juízes de fora, dos órfãos da alfândega, escrivães e tabeliães, procurador do concelho e almoxarife, instituições públicas – (câmara, tribunal, casa da misericórdia, hospital e cadeia). Nenhuma notabilidade, porém, conseguia competir com o poder das freiras de Santa Clara, proprietárias de um vasto conjunto de herdades, coutos, lugares e vilas que mantiveram ferreamente os seus bens, rendas, padroados e aforações durante mais de cinco séculos. Em alguns momentos, esse poder foi disputado e guerreado com corregedorias, provisores e cúpulas eclesiásticas. 

   Em 1511, por exemplo, o bispo de Ceuta excomungou-as, depois de elas se terem barricado no convento, trancando portas e encerrando as igrejas, como protesto contra reformas decretadas pela Igreja Curiosamente, diz a investigadora, o mesmo método foi replicado no ano passado num convento de Burgos, Espanha, por freiras também da Ordem de Santa Clara). 

   Por vezes, irrompiam motins e rebeliões internas, com as clarissas a exigirem mudanças na cúpula conventual, alegando inquietações e injustiças, como regista abundante documentação do século XVI, quando o mosteiro deixou de ter o senhorio de Vila do Conde, mas a sua influência a diminuiu: a abadessa continuava com o privilégio de nomear diretamente as autoridades administrativas da terra: mantinha, terras, rendas, direitos reais, dízimos, tributos sobre o peixe, o pão e o sal; e eram donatárias da barca de passagem do rio Ave que lhes garantia opulentas receitas. 

   Quem diria…

https://www.facebook.com/carlos.coutinho.7186896

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Manuel Loff - Um ano de completa impunidade

 * Manuel Loff  

Até ontem, os países NATO, um após o outro, exortavam Israel a não invadir o Líbano e enviavam a este país aviões... para recolher o seu pessoal diplomático e os cidadãos que queiram e, num país onde um milhão de pessoas (uma em cada cinco) tiveram de fugir de casa, consigam sair. Mas não enviaram aviões de combate para reforçar as Forças Armadas libanesas contra o invasor israelita, como fizeram com a Ucrânia. O que vale para a Ucrânia não vale para o Líbano. Num ano inteiro não valeu para Gaza, a Cisjordânia, territórios invadidos não há dois, mas há 67 anos. Num ano morreram incomparavelmente mais civis em Gaza do que em mais de dois anos e meio na Ucrânia — e Biden e Von der Leyen pedem aos países árabes a mesma desescalada e diplomacia cujo oposto praticam intensamente há anos na Ucrânia.

É insólito este medo de uma guerra generalizada na boca de quem governa deste lado do mundo. Ontem mesmo, Biden deu as ordens necessárias para comprometer (mais ainda) os EUA nas guerras de agressão israelitas. Depois de terem justificado a chuva de mísseis sobre Beirute como uma merecida punição do Hezbollah, os EUA substituíram-se aos israelitas na interceção dos mísseis iranianos para proteger Netanyahu e os genocidas que o acompanham. E disponibilizam para a guerra os 43 mil soldados que, por vezes contra a vontade dos respetivos governos, têm na região. E assim se procura “evitar a guerra”...

A discussão da dualidade de critérios não é apenas moral. Ela tem implicações diretas nas vidas de milhões de pessoas. A dualidade mata. Em Gaza, na Cisjordânia, Israel comporta-se como um dos ocupantes mais sinistros da história, perpetrando represálias sobre a população civil em termos que reproduzem as represálias nazis sobre as populações dos países ocupados na II Guerra Mundial, ou as dos norte-americanos no Vietname, dos franceses na Argélia. Neste momento, com o fluxo imparável de material bélico ocidental, Israel dispara (e mata) em todas as direções: Irão, Síria, Iémen, e agora, sobretudo o Líbano. Por enquanto ordena deslocações de populações; depois passará diretamente às deportações, seguindo o exemplo de Gaza. Bombardeia cidades e campos de refugiados – dos milhões de palestinianos que na Nakba de 1948 expulsaram das suas casas, dos sírios que procuraram fugir da guerra que o Estado Islâmico e as guerrilhas que a Turquia (membro da NATO) e os EUA armaram em 2011.

Os EUA e Israel são há muito aquilo que no glossário imperial se tem chamado “Estados párias”: sequestros em prisões ilegais, tortura sistemática, assassinatos contrariando qualquer forma de direito, nacional ou internacional. Israel é o Estado do planeta que mais resoluções da ONU incumpre, o seu chefe de governo tem um mandado de captura internacional, ataca estruturas e instalações das agências da ONU e assassina os seus funcionários (e médicos, e jornalistas, e crianças...). E, contudo, aí estão os governos UE a proibir por “antissemitas” manifestações de solidariedade com as vítimas palestinianas e exigindo boicote e sanções a Israel.

Somos um mundo de impunidade e de desigualdade, lembrou há dias Guterres, onde muitos governos “podem invadir outro país, devastar sociedades inteiras ou ignorar totalmente o bem-estar do seu próprio povo” e passar por cima de “decisões dos tribunais internacionais”. Não vale a pena é imaginar que a impunidade imperial dos nossos dias é nova. O que é nova é a coerência desta “necropolítica”, deste exercício do poder de “ditar quem pode e não pode viver” como “expressão máxima de soberania” (Achille Mbembe), com esta narrativa tipicamente fascista e colonial que nos fazem das guerras expansionistas de Israel. Não somente tratando os povos árabes da região como “animais humanos”, mas contando tudo nos mesmos termos socialmilitaristas com que no Brasil se narra a entrada da polícia militar numa favela ou como na imprensa nazi se falava da “bestialidade” dos ciganos, dos judeus e dos eslavos que “ameaçavam a existência da Alemanha”.

As guerras israelitas, a sua necropolítica genocida, as décadas de ocupação impune, aplaudida, justificada, dizem tudo do que é hoje o Ocidente. A nossa posição perante elas diz tudo de cada um de nós.


2 de Outubro de 2020

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Carlos Coutinho - artigo de opinião

 * Carlos Coutinho

2024 10 03

ASSIM se vê a força da TV, isto é, a força das imagens que ontem fez um milagre na página 8 do “Público”, escarrapachando a opinião de dois historiadores, personalidades muito informadas, mas simétricas, que sentiram necessidade de convergir publicamente, já que as guerras nos estão a sair a todos muito caras e ninguém sabe como elas vão acabar. Ao fim da tarde, já noite em Beirute, vimos os clarões róseos e brancos do fogo no centro de Beirute, em direto, instantes depois de mais um bombardeamento ao centro da capital libanesa.

   Eis o que escreve o académico e ex-ministro da Administração Interna, num governo do PS, Nuno Severiano Teixeira”:

   “O Médio Oriente está a ferro e fogo. Gaza está arrasada e o Líbano em convulsão. Israel ébrio de vitórias táticas e o Irão condicionado por um dilema estratégico- Os Estados Unidos apelam à paz e Netaniahu faz a guerra. Sob a vertigem do dos acontecimentos e a ameaça de um conflito em larga escala, é difícil ver claro. Mas há duas perguntas fundamentais: como é que tudo começou? E como é que vai acabar?

   “Começou há mais de um século. É um conflito que atravessou várias fases e diferentes configurações. Entre as duas guerras, ainda sob o mandato britânico da Sociedade das Nações, assumiu a forma de uma guerra civil. Nos anos 30, os palestinianos revoltaram-se contra a instalação de judeus em Israel e contra os britânicos que a facilitaram.

   “Depois da fundação do Estado de Israel, entre 1948 e 1973, o conflito assume a forma de um conflito clássico interestatal. Os palestinianos desapareceram da equação e as grandes resoluções do Conselho de Segurança da ONU nem sequer os mencionam. O conflito é entre exércitos regulares de Israel e dos estados árabes. É tempo da chamada ‘guerra israelo-árabe’. E das grandes vitórias israelitas: 1948, 1956 e, sobretudo, a Guerra dos Seis Dias, em 1967, e do Yom Kippur, em 1973. A partir de então, o conflito muda uma vez mais de configuração e aproxima-se de uma guerra assimétrica entre as forças palestinianas e o Estado de Israel. Este processo é acompanhado por uma ampla dinâmica: de desarabização do conflito e apropriação palestiniana da sua causa. Desde os acordos de paz de Camp David, em1978, que, primeiro o Egito, depois os outros estados árabes se vão afastando do conflito. Em 1993, nos acordos de Oslo, são os próprios palestinianos, através da OLP, que assinam, a paz com Israel.
 
  “Em casa, enquanto Israel vai consolidando o seu poderio militar, os palestinianos vão alimentando a sua revolta nas sucessivas intifadas 1987-1993, e 2000-2005. Uma coisa é certa: a desarabização do conflito e reapropriação palestiniana é acompanhada pelo desenvolvimento da guerra assimétrica. E é a retirada dos estados árabes que permite a entrada do Irão. Em 1988, depois da guerra Irão-Iraque, o Irão decide substituir os estados árabes no apoio à causa palestiniana e construir uma rede de influência regional de atores não esttais, explorando, precisamente, a guerra assimétrica: o Hamas, ;o Hezbollah; a Jihad Islâmica e os houtis. 

   “Agora, como é que tudo isto voa acabar?”

   O professor da Nova não sabe e eu também não. Sei que, capciosamente o Nuno Severiano finge desconhecer que Israel financiou o Hamas, porque era a forma de atacar por dento a OLP. Arafat acabou por morrer envenenado E Telavive até já tem ogivas nucleares… Adiante.

   Eis agora o que escreve o académico o ex-deputado do PCP Manuel Loff:

   “Até ontem, os países da NATO, um após outro, exortavam Israel a não invadir o Líbano e enviavam a este país aviões… para recolher o seu pessoal diplomático eos cidadãos que queiram e, num país onde um milhão de pessoas (uma em cada cinco) tiveram de fugir de casa, se conseguiam sair. Mas não enviaram aviões de combate para reforçar as Forças Armadas libanesas contra o invasor israelita, como fizeram com a Ucrânia. O que vale para a Ucrânia não vale. Num ano inteiro não valeu para Gaza, a Cisjordânia, territórios invadidos não há dois mas há 67 anos. Num ano morreram incomparavelmente mais civis em Gaza do que em mais de dois anos e meio na Ucrânia – e Biden e Von der Leyen pedem aos países árabes a mesma desescalada e diplomacia cujo oposto praticam intensamente há anos na Ucrânia. 

   “É insólito este medo de uma guerra generalizada na boca de quem governa deste lado do mundo. Ontem mesmo, Biden deu as ordens necessárias para comprometer (mais inda) os EUA nas guerras de agressão israelitas. Depois de terem justificado a chuva de mísseis sobre Beirute como uma merecida punição do Hezbollah, os EUA substituíram-se aos israelitas na interceção dos mísseis iranianos para proteger Netanyahu e os genocidas que o acompanham. E disponibilizam para a guerra os c43 mil soldados que, por vezes contra a vontade dos respetivos governos, têm na região. E assim se procura ‘evitar a guerra’.

   “A discussão da dualidade de critérios não é apenas moral. Ela tem implicações diretas nas vidas de milhões de pessoas. A dualidade mata. Em Gaza, na Cisjordânia, Israel comporta-se como um dos ocupantes mais sinistros da história, perpetrando represálias sobre população a população civil em termos que reproduzem as represálias nazis sobre as populações dos países ocupados na II Guerra Mundial, ou as dos norte-americanos no Vietname, dos franceses na Argélia. Neste momento, com o fluxo imparável de material bélico ocidental, Israel dispara (e mata) em todas as direções: Irão, Síria, I énen e agora, sobretudo o Líbano. Por enquanto ordena deslocações de populações; depois passará diretamente às deportações, seguindo o exemplo de Gaza. Bombardeia cidades ed campos de refugiados - dois milhões de palestinianos que na Nakba de 1948 expulsaram das suas casas, dos sírios que procuraram fugir da guerra que o Estado Islâmico e as guerrilhas que a Turquia (membro da NATO) e os EUA armaram em 2011.
   “Os EUA e Israel são há muito aquilo que no glossário imperial se tem chamado ‘Estados párias’: sequestros em prisões ilegais, tortura sistemática, assassinatos contrariando qualquer forma de direito nacional ou internacional. Israel é o Estado do planeta que mais resoluções da ONU incumpre, o seu chefe de governo tem um mandado de captura internacional, ataca estruturas e instalações das agências da ONU e assassina os seus funcionários (e médicos e jornalistas. E crianças…). E, contudo, aí estão os governos da EU a proibir por ‘antissemitas’ manifestações de solidariedade com as vítimas palestinianas e exigindo boicote e sanções a Israel. (…) As guerras israelitas, a sua necropolítica genocida, as décadas de ocupação impune, aplaudida, justificada, dizem tudo o que é hoje o Ocidente. A nossa posição perante elas diz tudo de cada um de nós.”

https://www.facebook.com/carlos.coutinho.7186896