segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

António Gil - Os russos estão a usar o secretismo como arma

* António Gil 


E isso é injusto porque os especialistas ocidentais não são capazes de calar a matraca.


Entende-se que os Ucranianos e seus Chefes ocidentais andem arreliados: o ano passado todas as semanas eles anunciavam publicamente o que iam fazer: atacar na direcção da Crimeia para cortar as tropas russas em duas fatias, recuperar Artemvisk (Bakhmut), ocupar a margem do Dniepr do outro lado da cidade de Kherson.


Eram informações honestas, não armadilhas, eles tentaram mesmo fazer tudo o que diziam. Os russos bem podiam retribuir, pensam eles, tendo a amabilidade de os informar de suas intenções. 


Mas não, eles são maus, mantêm a boca fechada. Até parece que a Guerra é um negócio secreto. Ah esperem, esperem, as guerras, antes da originalidade ucraniana, sempre foi um negócio secreto.


Já no passado, eles não avisaram os exércitos de Napoleão de que planeavam incendiar a Moscovo: deixaram-nos avançar para a grande cidade sem sequer um alerta amarelo. O alerta laranja e vermelho só piscaram quando Napoleão e seus guerreiros estavam tão pertinho da cidade que se podiam aquecer nas chamas.


Mais tarde, não avisaram o alto comando alemão que não abandonariam Leninegrado nem Estalinegrado.  Em consequência, a máquina propagandística de Goebbels ,anunciou várias vezes a captura das duas cidades enquanto os combates prosseguiam no miolo urbano das duas grandes povoações.

Tudo para zangar Goebbels, claro. E fazê-lo dizer: ‘foi desta, desta é que foi’’ para logo a seguir reconhecer: ‘ainda há escaramuças mas bom, nalgum ponto eles vão desistir’. Não desistiram, porém. Eles são teimosos e no fim foram os alemães que tiveram de retirar ou render-se.

Já deste lado, desde a 2ª guerra mundial, os chefes militares gostam de explicar nas TVs o que vão fazer. Não que isso seja mistério: eles usam sempre a táctica Obélix: Vamos lá (normalmente às capitais e grandes cidades dos países agredidos) e partimos aquela m*rda toda.

Uma legião de especialistas secunda-os, com mapas, modelos de aviões mísseis  e descrições abundantes de detalhes técnicos como a autonomia de voo, a velocidade, a capacidade explosiva de cada ogiva e por aí fora.

Os russos não fazem nada disso: são um país atrasado, diz-se. Eles não entendem que anunciar algo e fazê-lo mostra poder. Ainda estão naquela fase adolescente das festas-surpresa. 

Então, os militares, jornalistas, comentadores têm de tentar adivinhar: vai haver uma ofensiva a sério, daquelas com centenas de tanques e centenas de milhar de soldados? onde e quando? e de que estão eles à espera?

Que diabo: eles já têm tantos soldados fazendo pic-nics em terras que já pertenceram à Ucrânia! isto é uma guerra ou uma festa, para eles? por que não atacaram em força ainda? só para chatear, claro. Os russos são assim, adoram irritar seus inimigos, como se tivessem algo contra eles!

Esta espera está a matar os nossos especialistas todos, especialmente os que se movem a cocaína. Talvez eles devessem trocar um pó branco pelo outro: os opiáceos -diz-se - são também péssimos para a saúde mas pelo menos acalmam. 

mar 31, 2024

https://antoniojfgil.substack.com/p/russians-are-using-secrecy-as-a-weapon

Tiago Franco - MOMENTOS DE EMBARAÇO A DAR COM UM PAU |

* Tiago Franco 

A conferência de Munique, pelo furacão que lá passou, fez-me ligar a televisão. 

O resumo do que me pareceu ouvir, e que me fez corar de vergonha, está aqui:

- JD Vance, numa conferência sobre segurança, falou do clima, de firewalls e de imigração. Desprezou totalmente a questão ucraniana. 

- Mark Rutte (o novo bibelot da Nato) disse que as negociações de paz não incluem a adesão mas que no futuro, numa galáxia distante, quem sabe?

- Keith Kellogg, o enviado especial de Trump para as questões da Ucrânia, disse que a Europa não estaria na mesa das negociações e, que a própria Ucrânia, estaria numa fase mais adiantada (basicamente para lhes comunicarem a decisão)

- Trump aceita metade dos minérios raros do território ucraniano e, em troca, faz o acordo de capitulação da Ucrânia (é apenas isso que está a acontecer, nada mais). 

- Von Der Leyen diz que não há negociações de paz sem a Ucrânia (tal como não havia mísseis sem chips das máquinas de lavar)

- Costa diz que juntos somos mais fortes e pergunta se é cheia para todos ou se há quem prefira italiana.

- Zelensky acena com a hipótese de um exército europeu, partindo do ucraniano (que é neste momento o maior). Questiona também como é que é possível haver negociações sem a Ucrânia e alguém lhe fala no plano de paz/vitória que ele apresentou à Europa e à EUA (do Biden) sem mandar uma cópia ao Putin.

- Macron, vendo a bandalheira em que se tornou a conferência e o enxovalho que os americanos, totalmente alinhados com a Rússia, foram fazer a Munique, convoca os países europeus para uma reunião de emergência. Ali haverá muito brainstorming e medição de pilas. Portugal não foi convidado para o sonho molhado francês o que é uma pena. Ninguém mede como nós.

Feita a cronologia, resta-me dizer o seguinte. Quando Von Der Leyen e demais inúteis líderes europeus, andaram a fazer de capachos dos interesses americanos, quem os criticou foi apelidado de putinista. Lembram-se desses tempos?

Quando Von Der Leyen, sem exército ou armas, prometia apoiar a Ucrânia "for as long as it takes", fartaram-se de meter bandeirinhas e jurar "slavas" aos filhos dos outros que iam morrendo.

Quando a população europeia foi empobrecendo para pagar esta merda, vendo o óbvio lucro a ir para o outro lado do Atlântico, passámos a primários anti-americanos, nossos eternos aliados, que por acaso eram os beneficiários das sanções à energia russa e do fornecimento de armas.

Quando nos buzinaram, durante 3 anos, que mais uma remessa de armas X e a Ucrânia, venceria, não se podia dizer que, desde Maio de 2022, as posições russas estavam estabilizadas.

A Europa andou 3 anos a servir os interesses dos EUA e do seu braço armado, graças a uma casta de líderes do mais incompetente e desprovidos de tomates que alguma vez me lembro de ter visto. A custo de uma geração absolutamente arrasada na Ucrânia, que fez frente aos segundo maior exército do mundo, enquanto idiotas com responsabilidades nas políticas europeias nos juravam que os russos estavam a dias do colapso. Tudo isto foi dito, escrito, repetido. Nada do que está a acontecer hoje pode ser uma surpresa de tão óbvio que era (com ou sem Trump, já agora).

3 anos depois a Europa está cheia de regimes amigos de Putin (a próxima deverá ser a Alemanha) e os próprios EUA viraram para uma autocracia, onde apenas a lei do comércio importa. 

Dá dó ver Zelensky a ser entalado por quem lhe disse para avançar. Sinto vergonha com a impotência do discurso europeu que tenta mostrar uma posição de força sem ter como derramar sangue. Chegamos ao ponto de ver o velho continente a ser relegado para segundo plano, enquanto os impérios decidem as divisões que se seguem. E para piorar, ainda temos que aturar figuras patéticas como o Macron na liderança do grito do Ipiranga.

Em 2022 escrevi, não me recordo das palavras ao certo, que em 100 anos de história, só me lembrava de uma ou duas vezes (Afeganistão por exemplo) em que os russos, uma vez num conflito, voltassem de lá com as mãos a abanar. Mas não...a Ursula disse que com sanções, F16s e chuva de dinheiro, a coisa ia lá. O problema é que estava a falar com as calças do pai vestidas e ele, agora, resolveu pedi-las de volta.
Acabo como já acabei N textos sobre a Ucrânia. Estávamos exactamente neste ponto há 3 anos, no que a território dizia respeito. Tínhamos era mais um milhão de rapazes vivos, coisa que importa rigorosamente nada a quem decidiu este conflito, da Casa Branca ao Kremlin, passando por Londres e Bruxelas.

Num mundo ideal e com governantes dignos desse nome, esta era o momento em que a Europa começava a subir a escada da independência e da libertação deste papel de fantoche menor.

Com as actuais lideranças e a subida da facharia um pouco por todo o lado, temo que nada disso aconteça. 

O futuro na europa, com todos estes sinais, parece estar destinado a ser algo que nunca vivi mas que todo o livro de História, em especial do séc.XX, se encarrega de explicar.

https://www.facebook.com/tiago.franco.735
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Antonio Gil
Algumas observações que não vão bulir nada com o tom geral deste texto:

Se a afirmação que a Ucrânia enfrentou o 2º exército mais poderoso do mundo tem em mente os EUA como o 1º não podia estar mais equivocada. Se nela está implícito que a China é o 1º mesmo assim é matéria para discussão (que não farei aqui).

Não estávamos exactamente neste ponto há 3 anos, no que diz respeito a território ganho pelos russos, nem de perto nem de longe. Isso é o que os média nos querem fazer acreditar quando falam de impasse. É observar como os russos avançaram desde o fim da chamada 'contra-ofensiva' ucraniana até aos dias de hoje e em aceleração constante, de lá para cá.

Tudo o resto subscrevo.

 Tiago Franco
Antonio Gil o primeiro é obviamente o exército chinês.

Antonio Gil
Tiago Franco : sob muitas métricas sim. Não todas porém.
 
Filipe Dourado
Eu que muitas vezes em campanha ando a falar com as pessoas já foi apelidado de Putinista 1000 vezes e os contra argumentos, quando tento explicar a posição política , são do nível pré-histórico com palito na boca . Alguns ainda dizem que foram camaradas mas que agora deixaram de ser pela posição que o Pcp tem sobre a guerra na Ucrânia . Ter razão tem consequências , pelos vistos negativas.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Cezar Xavier - Inundação: a estratégia de Trump para desnortear mídia e oposição

Steve Bannon tornou a estratégia de inundar a mídia de gestos políticos para dificultar uma narrativa de prioridades do governo na sociedade

Com decretos e anúncios diários e polêmicos, o ex-presidente usa a tática de “flooding the zone” para confundir adversários e dominar a agenda política. Mas a resistência também se unifica.

por Cezar Xavier

Publicado 11/02/2025 16:02 | Editado 12/02/2025 13:44

 Steve Bannon tornou a estratégia de inundar a mídia de gestos políticos para dificultar uma narrativa de prioridades do governo na sociedade

A expressão “flooding the zone” (inundar a área) descreve uma estratégia deliberada de comunicação na qual uma enxurrada de anúncios e decretos é lançada de forma contínua, com o objetivo de saturar os canais de informação e deixar a oposição e a mídia atordoados. Essa tática, utilizada por Donald Trump desde sua posse, busca desorientar os críticos e criar um ambiente de confusão que dificulte a análise e a resposta coordenada dos adversários.

Jair Bolsonaro também aplicou esta estratégia da extrema-direita, causando efeito semelhante no Brasil. Todas as pautas, emendas, medidas provisórias ou decretos, assim como declarações públicas, eram sensacionalistas e polêmicas. Uma blitz-krieg de bombardeios informacionais capaz de desnortear a reação social. A resistência se deu de forma complexa por meio de táticas diversas e simultâneas, em todos os âmbitos da sociedade (confira ao final).

Afirmações misóginas, homofóbicas, racistas, obscenas ou escatológicas frequentemente engajavam as redes sociais, a mídia e a esquerda, enquanto o governo tentava seguir sem obstáculos uma agenda de reformas trabalhistas, previdenciárias, privatista, desmontando as instituições do Estado. Todas pautas dignas de um grande protesto nas ruas, todas passíveis de grandes debates na imprensa. Mas poucos tinham tempo ou capacidade de articulação para tantos absurdos simultâneos.

Apesar disso, nem Trump, nem Bolsonaro foram capazes de se reeleger pela incapacidade de responder de forma efetiva aos problemas concretos de países tão grandes. Desde seu primeiro governo, Trump fala em fazer a América grande novamente. O trabalhador não viu isso acontecer como prometido, especialmente com o retorno das fábricas aos EUA ou melhora significativa nas condições de trabalho. Os desafios dos Estados Unidos estão postos na mesa, e não serão resolvidos na base da bravataria. Depois de quatro anos, Trump será julgado pelos resultados concretos.

A orquestra trumpiana

Desde seus primeiros dias no poder, Trump tem feito uso intensivo dessa estratégia. Em sua posse, ele assinou 26 ordens executivas, retirou os Estados Unidos do Acordo de Paris e da Organização Mundial da Saúde, eliminou subsídios para carros elétricos, entre outras ações polêmicas. Mais recentemente, o ex-presidente voltou a gerar manchetes com propostas aparentemente absurdas, como comprar a Groenlândia, construir um resort na Faixa de Gaza, mudar o nome do Golfo do México, retomar o Canal do Panamá, ou acabar com o direito à cidadania para filhos de imigrantes ilegais.

Cada anúncio, independentemente de sua viabilidade, serve para inundar a mídia com informações que, na prática, dificultam a construção de uma narrativa unificada e a identificação do que realmente importa na agenda política.

Steve Bannon e a velocidade das bombas

Um dos criadores do trumpismo, o estrategista político Steve Bannon, é o responsável por afinar essa tática. Ele foi também um articulador estratégico por trás da comunicação do governo Bolsonaro. Em entrevista à TV americana, Bannon disse:

“O partido de oposição é a mídia. Eles são burros e preguiçosos e só conseguem focar em uma coisa de cada vez. O que precisamos fazer é inundar o terreno. Todo dia nós jogamos três coisas diferentes neles. Eles vão morder uma e a gente vai fazer as nossas coisas. Esses caras nunca vão conseguir se recuperar. Mas temos que começar com a mesma velocidade com que uma bala sai do cano de uma arma.”

Essas palavras ilustram como a estratégia visa tirar o foco dos adversários, que ficam ocupados reagindo a uma nova polêmica enquanto Trump segue com sua agenda – muitas vezes, sem sequer ter o poder para resolver os problemas anunciados.

Exemplos da tática no dia a dia

Nas últimas 24 horas, a tática de “flooding the zone” foi novamente demonstrada:

Tarifas e decretos surpresa: Trump anunciou tarifas para o aço e decretos para liberar canudinhos de plástico, enquanto simultaneamente repetia que seria o dono da Faixa de Gaza.

Acusações e contradições: Em meio a tais anúncios, o ex-presidente afirmou ter conversado com o presidente russo Vladimir Putin, sem oferecer detalhes, confundindo ainda mais a opinião pública.

Distração político-administrativa: O presidente também assinou decretos para demitir militares de carreira e acabar com a fiscalização de empresas americanas, ações que, embora questionáveis, desviam a atenção dos críticos sobre as políticas mais substanciais do governo.

Consequências para a mídia e a oposição

A estratégia tem se mostrado eficaz em desestabilizar a oposição, que encontra dificuldade para concentrar esforços diante de uma avalanche de informações. Como resultado:

Mídia saturada: Portais de notícias e jornalistas se veem obrigados a cobrir não apenas um, mas todos os atos diários de Trump, o que dificulta a distinção entre ações relevantes e meras manobras de distração.

Dificuldade em construir narrativas: O excesso de declarações e decretos torna quase impossível que a oposição formule respostas consistentes e coordenadas, fazendo com que questões importantes fiquem ofuscadas pelo ruído das provocações constantes.

Impacto na política e na ordem global

Embora muitas das declarações de Trump – como a possibilidade de anexar territórios estrangeiros – sejam improváveis de se concretizarem, elas têm um efeito real ao confundir tanto a população quanto aliados e adversários internacionais. Esse ambiente de incerteza pode afetar a credibilidade dos Estados Unidos e minar alianças estratégicas, enquanto a política interna sofre com a dispersão do debate e a erosão dos mecanismos de controle e transparência.

Resistência: foco nas questões relevantes

Para neutralizar a estratégia de “flooding the zone”, é essencial que a oposição e os veículos de comunicação mantenham o foco nas questões que impactam a vida dos cidadãos. Durante o desgoverno de Bolsonaro, a denúncia do desemprego, da estagnação econômica e do preço dos combustíveis foram essenciais para desmascarar o diversionismo. A falta de resultados concretos da macroeconomia de Paulo Guedes e o cansaço de parcelas da sociedade com o discurso de ódio e golpismo também jogaram contra. Trump ainda não respondeu ao problema da inflação dos ovos, esperando que a gripe aviária passe e os estoques retornem.

Em vez de se deixar levar por cada anúncio bombástico, a recomendação é priorizar debates que abordem problemas estruturais e políticas públicas de longo prazo. Isso significa estabelecer uma agenda clara. Concentrar os esforços em temas estratégicos, como saúde, educação, segurança e economia, para evitar que a narrativa seja dispersada por declarações pontuais e irrelevantes.

Diferenciar o sinal do ruído ao utilizar ferramentas de verificação de fatos e análises críticas para destacar quais anúncios têm impacto real e quais são apenas manobras de distração.

Comunicação coordenada e unificada

Uma resposta eficaz exige que as forças políticas da oposição se unam e comuniquem de forma coordenada. Entre as medidas recomendadas estão a formação de um bloco de resposta. Reunir partidos e lideranças que possam articular uma mensagem unificada, contrapondo os anúncios diários com iniciativas concretas e dados que evidenciem as verdadeiras prioridades para a população.

O fortalecimento do fact-checking e da transparência são ferramentas da luta contra a desinformação, que passa também pelo fortalecimento de mecanismos de verificação dos fatos. Para isso, é importante apoio a agências independentes de fact-checking. Incentivar a criação e a manutenção de plataformas que possam desmentir, em tempo real, as declarações exageradas ou infundadas.

A transparência nas ações governamentais precisa ser preservada em governos que tendem a dificultar o acesso à informação pública, como já vem ocorrendo em Washington. É preciso cobrar do governo a prestação de contas das medidas anunciadas e avaliar quais decretos têm base legal e impacto prático na sociedade.

Educação midiática e engajamento popular

A longo prazo, é fundamental que a população desenvolva uma consciência crítica em relação às táticas de comunicação. No Brasil, o modo como fake news e falta de regulação de plataformas digitais acabaram de tornando ferramenta de criminosos para golpes financeiros, acabou forçando uma alfabetização crescente de parcelas da população que se sentiram vulneráveis. Cada vez é mais comum encontrar pessoas que sabem como distinguir quando uma informação é falsa na internet.

Mas as instituições de governo e da sociedade civil, assim como da mídia, precisam implementar programas de alfabetização midiática; iniciativas educacionais que ensinem os cidadãos a distinguir entre notícias relevantes e meros ataques ou distrações. Estimular o engajamento e a participação ativa da sociedade também é uma opção, para que os eleitores passem a questionar e demandar respostas concretas dos seus representantes, ao invés de se deixarem influenciar por anúncios vazios.

Alinhamento internacional e defesa das instituições

Por fim, a resposta à estratégia de “flooding the zone” também passa por uma articulação maior com aliados políticos e instituições democráticas. O Legislativo e o Judiciário foram fundamentais para barrar as iniciativas mais perigosas de Bolsonaro. Nos EUA, a própria volta de Trump ao poder revela a fragilidade de suas instituições, que precisam ser repensadas. Trabalhar em conjunto com governos e organizações que defendem a transparência e a responsabilidade na comunicação pública, é uma forma de cooperação para criar um ambiente global que penalize táticas de desinformação.

O reforço das instituições democráticas precisa avançar para proteger e valorizar os mecanismos de controle e prestação de contas, garantindo que a estratégia de inundação de informações não comprometa o funcionamento das instituições e a confiança na governança.  

Resistir politicamente à tática de “flooding the zone” de Trump (e da extrema-direita) exige uma combinação de foco estratégico, comunicação unificada, verificação rigorosa dos fatos, educação midiática e mobilização cidadã. Somente com uma resposta coordenada e comprometida com a transparência será possível garantir que a população não se perca em meio à enxurrada de anúncios e decretos, e que as questões de verdade e relevância continuem a nortear o debate político.

https://vermelho.org.br/2025/02/11/inundacao-a-estrategia-de-trump-para-desnortear-midia-e-oposicao/

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Boaventura de Sousa Santos - Trump: o filho legítimo da Europa

 * Boaventura de Sousa Santos

Trump é um filho legítimo, não bastardo, da Europa moderna. Tal qual o foi Hitler no seu tempo. A mãe que gerou estes filhos vai gerar outros até vir a ser devorada por um deles, talvez pelo próprio Trump. Em vez de ser o Saturno de Goya a devorar os seus filhos, será a Europa a ser devorada pelos filhos. Nesta metáfora ser devorada não significa extinguir-se. Significa voltar a ser o que era até ao século XIV, um canto insignificante da Grande Eurásia onde o Mediterrâneo Oriental pontificava como ponte entre os mundos oriental e ocidental então conhecidos. Trump começou a desestabilizar a Europa desde 2016, a devorá-la para atenuar as piores consequências do declínio do imperialismo norte-americano. O processo não começou com ele e continuou depois dele, com Biden e por outros meios: em vez da guerra comercial, a guerra da Ucrânia. Estamos, pois, perante um processo histórico que analisamos com a dificuldade própria de quem analisa a corrente das águas ao mesmo tempo que é arrastado por elas.

A Europa auto-denominou-se educadora do mundo a partir do século XV. E a cartilha dos educadores foi dominada pela ideia de que educar o outro é devorar o outro. Devorar é progresso para quem devora e destino comum para quem é devorado. Devorar é sempre progresso, seja devorar por evangelização, por compra, por roubo, por ocupação, por guerra, por assimilação. Por devorar entenda-se uma forma de antropofagia. A forma europeia auto-designou-se civilização e, consequentemente, todas as outras formas de antropofagia que os educadores europeus foram encontrando no mundo foram declaradas bárbaras e, como tal, proscritas e demonizadas. Trump é não só um filho legítimo como um estudante que aprendeu bem a lição que os educadores europeus lhe deram.

Por mais sonantes que sejam as rupturas entre a política as usual e o tsunami Trump, eu tendo a ver continuidades e são elas que significam o perigo do tempo que vivemos. O facto de se salientarem as rupturas leva a pensar que, uma vez Trump passado à história, tudo voltará a ser como dantes. Não voltará. Trump é historicamente o espetáculo do declínio do que chamamos Ocidente. Não é o declínio dos EUA, é o declínio da Europa e do mundo ocidental. O longo ciclo que se iniciou no século XV está a chegar ao fim. A inconsciência deste facto por parte da social-democracia europeia (que se foi suicidando a partir de 1980) está bem expressa na publicação recente da Social Europe, da Fundação Friedrich-Ebert, intitulada “EU Forward: Shaping European Politics & Policy in the Second Half of the 2020s” (2025). As ruínas explicadas por aqueles que as causaram limitam-se a propor soluções que eles próprios recusaram na altura em que elas poderiam ser possíveis e evitar o desastre. A partir de 1945, o pacto colonial entre a Europa e os EUA inverteu-se. A autonomia dada à Europa dividida e a generosidade da sua defesa (NATO) tiveram por objectivo conter o perigo comunista. A Europa interiorizou de tal modo esse papel que agora não tem outro remédio senão inventar o inexistente perigo comunista para subsistir. Europa é hoje uma colónia de sua antiga colónia, sem que nenhuma delas tenha passado por um verdadeiro processo de descolonização.

A matriz europeia de Trump
A matriz europeia tem os seguintes componentes: superioridade civilizacional; racionalidade instrumental; exclusividade epistémica da ciência-tecnologia; íntima relação entre comércio e guerra; conquista ou contrato desigual; pacta sunt servanda quando convém; linha abissal entre seres plenamente humanos e seres sub-humanos; a natureza pertence-nos, nós não pertencemos à natureza; soberania, inimigos internos e inimigos externos; dialética da revolução/contra-revolução. Esta matriz não desceu dos céus nem foi revelada a nenhum descendente tardio de Moisés. É constitutiva da estrutura de dominação (exploração, opressão, discriminação) da modernidade ocidental constituída por três pilares de dominação principais e intrinsecamente articulados: capitalismo, colonialismo, patriarcado. Esta tríade variou muito ao longo dos séculos, mas mantém-se intacta, ontem como hoje, e sempre se serviu de dominações-satélites, sejam elas castas, capacitismo, etarismo, religião, política, etc.
Esta matriz não é exaustiva, teve múltiplas interpretações e versões e produziu efeitos contraditórios. A modernidade europeia também permitiu que dois grandes intelectuais malditos, um no princípio do ciclo e outro no início do fim do ciclo, vissem como ninguém as contradições das interpretações dominantes desta matriz e as catástrofes que produziria. Refiro-me a Baruch Espinosa e a Karl Marx.

Superioridade civilizacional
Na modernidade ocidental a superioridade civilizacional pressupõe a superioridade racial. Por sua vez, a superioridade racial pressupõe que não se pode usar com os inferiores os mesmos procedimentos e instituições que se usa entre os iguais. Segundo uma lógica multissecular, de Aristóteles a Nietzsche, seria um contrassenso tratar como iguais os desiguais. O racismo e o militarismo foram sempre os sub-textos da superioridade civilizacional. Devorar em nome da superioridade civilizacional, qualquer que seja o instrumento utilizado, provoca uma forma específica da ansiedade decorrente da possível reacção dos destinados a ser devorados. O racismo desumaniza para legitimar a brutalidade da repressão, o militarismo elimina. Trump prefere o racismo extremo porque lhe permite combinar desumanização com eliminação. Ao contrário dos índios, os imigrantes não têm de ser eliminados. São transferidos para os seus países de origem ou para novas reservas, sejam elas em Guantánamo ou em El Salvador. Os imigrantes são algemados para dramatizar o contraste com a libertação dos verdadeiros americanos.

Racionalidade instrumental e exclusividade epistémica da ciência-tecnologia
O princípio moderno de que o conhecimento é poder só seria um princípio benévolo se a pluralidade dos conhecimentos existentes no mundo fosse reconhecida e as possibilidades de enriquecimento mútuo fossem celebradas. Em vez disso, deu-se uma prioridade exclusiva à ciência e posteriormente à tecno-ciência. Isto teve as seguintes consequências: um desenvolvimento científico e tecnológico sem precedentes; massivo epistemicídio, ou seja, destruição, supressão ou marginalização de todos os conhecimentos considerados não científicos; a construção de um senso comum segundo o qual ser racional é adequar os meios aos fins propostos sem que estes sejam sujeitos a discussão (eficiência); a desvalorização da ética decorrente da substituição da razoabilidade pela racionalidade; crescente discrepância entre consciência técnica e consciência ética, em detrimento desta última; recusa dos limites externos do conhecimento cientifico, ou seja, das perguntas a que a ciência nunca poderá dar resposta por mais que avance, pela simples razão de que tais perguntas não são formuláveis cientificamente (por exemplo, qual é o sentido da vida?); tendência em transformar problemas políticos em problemas técnicos e em reduzir questões qualitativas a questões quantitativas. Elon Musk é a face visível e caricatural do extremismo a que este tipo de racionalidade pode conduzir. Mas ele não é causa, é consequência. Os que o criticam pelo seu triunfalismo delirante são os mesmos que celebram a inteligência artificial sem se darem conta de que são duas manifestações do mesmo tipo de inteligência e do mesmo tipo de artificialidade. Levada ao extremo, a racionalidade instrumental implica a irracionalidade ético-política. O actual crescimento da extrema-direita é um dos sinais disso mesmo.

O uso racional dos recursos naturais e humanos
A racionalidade instrumental da dominação moderna capitalista, colonialista e patriarcal estabeleceu como fim a maximização da acumulação de recursos como condição da maximização dos lucros; os meios para o atingir foram aqueles que cada época tornou possível, em face da resistência dos que foram sendo “desacumulados” ou despossuídos, fossem eles os seres humanos ou a natureza. Antes de ser utilizado pelos marxistas para caracterizar as relações de trabalho, o conceito de exploração fora há muito consagrado para explorar a natureza segundo o mesmo princípio de que conhecer é poder. O neoliberalismo nas relações de trabalho e o colapso ecológico são as duas faces da mesma moeda. Tal como “drill, baby, drill!” e o tratamento dado aos trabalhadores migrantes são duas faces da mesma moeda.

Na lógica da racionalidade moderna tudo o que é racionalmente utilizável é natureza. Parece contraditório porque a distinção entre natureza e humanidade é central pelo menos desde o Iluminismo: a natureza pertence-nos; nós não pertencemos à natureza. Não há, de facto, contradição porque a definição de cada um dos termos permanece sempre em aberto para que tudo o que possa ser usado racionalmente como recurso acumulável seja convertido em natureza. Os povos nativos eram natureza, tal como as mulheres, tal como os escravos. E se hoje atentarmos no modo como os corpos humanos estão a ser industrializados de forma a funcionarem eficazmente nas novas configurações do trabalho, é a re-naturalização do humano que está em causa.

Íntima relação entre comércio e guerra
Desde o seu início, o comércio e a guerra foram as duas faces da expansão colonial europeia. Francisco de Vitória (1483-1546), o grande advogado do comércio livre, da propriedade individual e do direito internacional, é também o advogado da guerra justa sempre que os valores anteriores sejam violados. Aliás, na opinião dos críticos do universalismo liberal, este carregou sempre consigo o estigma de justificar a guerra em nome de princípios que só favorecem uma das partes, a que tem o poder para, num dado momento histórico, definir o que é o universalismo liberal. Os critérios duplos como princípio de governação são inerentes à modernidade ocidental. O princípio de que os pactos são para cumprir (pacta sunt servanda) sempre foi aplicado com uma cláusula invisível (aos desprevenidos): “sempre e só quando convém aos poderosos”

Na matriz da dominação moderna, a guerra é o início e o fim, o primeiro e o último recurso. Entre um e outro está a despossessão ou acumulação primitiva (e permanente), o roubo, o comércio, a troca desigual, a escravatura, o trabalho não pago das mulheres, etc. Para que tudo ocorra no marco da civilização e não da barbárie, inventou-se a diplomacia e os contratos desiguais. Já Adam Smith alertou para existência de contratos desiguais sempre que há desigualdade de condições materiais ou outras entre as partes que entram no contrato. A máxima desigualdade ocorre quando a parte mais fraca não tem outra opção de sobrevivência senão aceitar o contrato com as condições que a parte mais forte oferece. Dos contratos de trabalho e dos contratos de serviços entre indivíduos e empresas multinacionais aos contratos de exploração de recursos naturais e aos acordos comerciais entre os países centrais e os países periféricos, é longa a história de contratos desiguais na modernidade ocidental.

A linha abissal entre seres plenamente humanos e seres sub-humanos
A hierarquia entre civilização e barbárie assumiu diferentes características ao longo dos séculos. A partir do século XVI, essa hierarquia foi utilizada para justificar o colonialismo, primeiro a justificação pela religião e depois, com o Iluminismo, a justificação pela ciência. Superioridade civilizacional passou a ser racial, branca. Como diz Frantz Fanon em Black Skins White Masks, é o racista que cria o seu inferior. A partir de então, a ideia de humanidade universal, tão cara aos iluministas, passou a depender dos limites do universo do 

 se considera humano. E, por definição da superioridade civilizacional, esse universo não abrange todos os humanos. Uma linha abissal emerge entre os seres plenamente humanos (os que pertencem à sociabilidade metropolitana) e os seres sub-humanos (os que pertencem à sociabilidade colonial). A demarcação de exclusão/inclusão é de tal modo radical que, embora institucionalizada no período do colonialismo histórico (escravatura, code noir de 1695, as leis segregacionistas Jim Crow do final do século XIX e início do século XX, os códigos do indigenato português a partir de década de 1920), passou a ser a segunda natureza da civilização ocidental, e como tal sobreviveu ao fim do colonialismo histórico e ao fim de todas as legislações discriminatórias.

É hoje uma linha tão radical quanto invisível ao nível da normatividade institucional. É nela que assenta o racismo, o continuado roubo dos recursos naturais do Sul global e a troca desigual entre os países centrais e os países periféricos do sistema mundial. Na modernidade eurocêntrica não é possível a humanidade sem a sub-humanidade. Como é uma linha abissal, a sua existência não depende de leis ou de demarcações físicas (tipo apartheid) porque está inscrita no mais profundo do inconsciente colectivo da modernidade ocidental. Isto não significa que não esteja sempre disponível para ser visibilizada quando tal convenha aos poderes políticos encarregados de reproduzir a dominação moderna. Os muros fechando fronteiras e as deportações massivas de supostos criminosos são as duas formas hoje mais visíveis.

Recordemos que as deportações, embora tenham uma longuíssima história, foram uma das principais formas de punição-povoamento no período inicial da expansão colonial europeia. Os portugueses usaram-na desde o século XVI, enviando os degredados para os territórios “descobertos”; a partir de 1717, os ingleses deportaram cerca de 40.000 pessoas para as colónias, primeiro para a América do Norte e depois para a Austrália (entre 1787 e 1855). À luz desta história compreende-se que Trump insista tanto em que os imigrantes são todos criminosos. Aprendeu bem a lição europeia.

A conquista
O princípio da conquista é inerente à modernidade ocidental. Não se limita à conquista territorial; inclui também a conquista da religião, da espiritualidade, da mente, das emoções, da subjectividade. A conquista usa múltiplas armas, desde as militares às económicas, educativas, discursivas, religiosas, lúdicas. A conquista “sabe” que encontrará maior ou menor resistência e por isso opera segundo a lógica da neutralização preventiva. O mais eficaz e económico uso da força é o que se fica pela ameaça. A conquista implica roubo, compra, apropriação, diplomacia e violência. Se olharmos para o actual território norte-americano veremos que ele é o resultado do mais radical exercício do plano moderno da conquista. Trump mantem-se fiel a esse exercício ao imaginar as sua novas conquistas territoriais

Soberania, inimigos internos e inimigos externos
A ideia de soberania moderna que emerge do Tratado de Vestefália (1648) está na origem tanto do nacionalismo como do internacionalismo modernos. Qualquer deles teve tanto de realidade como de invenção e os seus sentidos políticos foram diferentes e até contraditórios ao longo do tempo e segundo as circunstâncias. O exacerbar do nacionalismo entre os países colonizadores foi sempre o prenúncio de guerra, enquanto o nacionalismo dos países colonizados foi uma condição para a independência. Como os EUA são uma colónia que se tornou independente sem se descolonizar, o nacionalismo esteve tanto ao serviço da guerra como do isolacionismo.

Esta ambiguidade do conceito de soberania, ao mesmo tempo que criou a distinção entre inimigos internos e inimigos externos, tornou possível manipulá-la para servir os interesses políticos do momento. Assim, os imigrantes são, segundo Trump, uma entidade híbrida, entre o inimigo interno e o inimigo externo. A mesma manipulação é possível com os amigos internos e externos. Muito se terão surpreendido que Trump tenha começado por castigar com tarifas os amigos mais próximos (Canadá, México, Europa). Na lógica de Trump, como na da Francisco de Vitória, quem é rival económico é inimigo político, por mais amigo que pareça.

Dialética da revolução/contra-revolução
Devido ao seu expansionismo incessante e incondicional, a modernidade ocidental é constituída pela dialética entre a insurgência e a contra-insurgência. Quer uma quer outra usaram métodos mais ou menos violentos em períodos distintos e segundo as circunstâncias. Estamos num período em que a insurgência usa métodos não violentos (democracia, sistema judicial, opinião pública), enquanto a contra-insurgência usa crescentemente métodos violentos (discurso do ódio, crescimento da extrema-direita, ameaça de guerra). Ninguém pode antecipar as consequências desta discrepância. No passado, esta discrepância levou à prevalência da contra-insurgência.

E agora?
O excepcionalismo norte-americano está desconfirmado?
Sim. Tal como a Europa e todos os países do mundo, os EUA tanto podem produzir heróis como vilões, tanto podem criar democracias como destruí-las. A diferença do benefício ou do dano está no poder de cada país no sistema mundial moderno

O fascismo pode voltar?
Sim e não. Hitler deu o golpe em 1933 depois de ganhar as eleições de 1932. Trump ganhou as primeiras eleições em 2016 para preparar o golpe institucional (as nomeações para o Tribunal Supremo) e agora exerce o novo mandato como se fosse um golpe democrático. A extrema-direita de todo o mundo está muito atenta de modo a definir em cada país qual a estratégia que, na mesma linha, conduza aos mesmos resultados

Haverá guerra global?
É provável. No caso das guerras anteriores, alguns dos maiores defensores da paz foram os que mais prepararam a guerra e depois a travaram. Se houver guerra será com a China e, desta vez, o território norte-americano será teatro de guerra. Acho que os norte-americanos estão tão viciados na ideia do excepcionalismo que ainda não se deram conta disso.

A esquerda poderá pontualmente estar de acordo com Trump?
Pode. Esta resposta é certamente a mais polémica. Mas tomemos o exemplo da USAID. Durante anos os analistas críticos criticaram a USAID como sendo o lado benévolo da contra-insurgência levada a cabo pela CIA. Foi criada em 1961 para impedir que a revolução cubana se espalhasse por todo o subcontinente. A ajuda humanitária teve sempre como termo de referência desenvolver atitudes e comportamentos favoráveis ao imperialismo norte-americano. Os comentaristas ao serviço do império (sempre equivocados a respeito dos desígnios do império) desfazem-se em lamentações por mais este golpe de Trump na benevolência da ajuda dos EUA aos povos mais desfavorecidos. Sem dúvida que essa ajuda foi preciosa para as populações e o seu corte abrupto vai criar muito sofrimento. Mas não tardará que a China e os seus aliados preencham o vazio deixado pela USAID. Com melhores condições para os países beneficiados? Provavelmente sim, enquanto a China for o império ascendente. Depois se verá.

15 de Fevereiro de 2025

https://aviagemdosargonautas.net/2025/02/15/trump-o-filho-legitimo-da-europa-por-boaventura-de-sousa-santos/

A única entrevista de Carlos Paredes ao PÚBLICO: “Sentimento perpétuo”


Carlos Paredes durante um recital de Mário Viegas, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, no dia 19 de Março de 1988 (Foto de António Cotrim)

Centenário de Carlos Paredes

A única entrevista de Carlos Paredes ao PÚBLICO: “Sentimento perpétuo” 

 

 “Toco guitarra. As pessoas gostam de ouvir. Juntamo-nos. E assim vamos vivendo.” Em quatro frases simples, este é o retrato que Carlos Paredes faz de si mesmo — devolveu-nos a arte de ser português.

Fernando Magalhães 

15 de Fevereiro de 2025, 8:29 


Esta é a única entrevista a Carlos Paredes ao PÚBLICO. Foi feita pelo jornalista e crítico de música Fernando Magalhães (1955-2005) e saiu no dia 18 de Março de 1992, antes de três concertos do guitarrista em Lisboa e no Porto. 

Tímido, amador, solidário sempre, Carlos Paredes confunde-se com o corpo de uma guitarra que "comove sem fazer chorar", onde vibra a tristeza de alguém que vive uma determinada forma de vida, também a alegria e a vontade de tocar para e entre amigos, nem que seja à mesa de um café. Hoje e amanhã, no Teatro São Luiz, em Lisboa, dia 25 no Rivoli do Porto, esperam-no o aplauso unânime e as grandes encenações. Luísa Amaro, Fernando Alvim, Natália Casanova, dos Diva, Mário Laginha, Paulo Curado, Rui Veloso são alguns dos convidados presentes, num espectáculo que inclui bailado e um grande final improvisado.  

Quando posou para a fotografia, pegou na guitarra e começou a tocar. Tratava-se apenas de uma imagem...

  Sabe, pegar na guitarra e tocar é já um gesto tão habitual que mesmo quase sem pensar, instintivamente, começamos a querer tocar. Isso sucede-me com a guitarra portuguesa, com a qual contacto todos os dias, há anos.

Como se a guitarra fosse uma extensão física de si próprio?

Digamos que é a intuição que todos nós temos que nos leva a fazer música. Não posso estar com uma guitarra nos braços sem ter vontade de a tocar. 

 Disse que toca guitarra todos os dias. Continua a tirar o mesmo prazer desse acto, após todos estes anos?

  Exactamente. Começo a tocar e vou-me adaptando à música, vou improvisando...

Reside aí a diferença entre ser músico e fazer música?

 Ah, pois, pois. No momento de tocar, a música fica a fazer parte de nós próprios.

Quando toca guitarra, perde-se de si próprio ou consegue manter uma distância em relação ao instrumento?

Nunca perco essa distância. Posso até ficar aborrecido ao ponto de não conseguir fazer nada. Mas há também um à-vontade, uma capacidade de ir inventando coisas.

Referiu uma vez a necessidade de se criar em Portugal uma escola de guitarra...

 Sabe, é necessário fazer um método do instrumento, estudá-lo profundamente, ter lições e tirar delas máximo proveito.

Não se dará o caso de a guitarra portuguesa valer o que vale o seu intérprete, sendo necessário o seu completo domínio de maneira a conseguir uma linguagem personalizada?

  O que é preciso é um estudo profundo da técnica do instrumento, de maneira a melhorar a qualidade de som... 

Uma mera questão técnica?

 É evidente que da minha parte tem de haver uma certa predisposição para sentir que posso inventar música.

  Tem-se de si a imagem de uma pessoa demasiado modesta, como se não tivesse, ou não quisesse ter, consciência do seu real valor...

 Sabe, é perigoso. A guitarra é um instrumento tão pouco evoluído e desenvolvido que muitos problemas musicais passam pela guitarra sem que ela dê sequer por eles. Ignora-os, pura e simplesmente. Quer dizer, estar a participar nos anúncios e elogios que muita gente por bondade me faz...

 Acha que é só por bondade? Não acredita que as pessoas se interessem e apreciem verdadeiramente a sua música?

Bondade, porque elas se interessam pelo instrumento.

Quer dizer que não se interessam pelo músico, pelo Carlos Paredes em si?

   Eu pouco posso dar, sabe. Tenho consciência do pouco que posso dar nesse aspecto.

É difícil acreditar, quando ainda há pouco pegou na guitarra, durante escassos segundos, e logo se juntou espontaneamente um grupo de pessoas para o ouvir tocar.

Pessoas que possivelmente viveram um período que eu também vivi...

Não, a maior parte eram jovens.

Eram jovens? É engraçado... Isso lembra-me os Verdes Anos, do Paulo Rocha, aquilo a que as pessoas na altura chamavam o "novo cinema português". Os argumentos já não eram apenas histórias de namoricos, eram histórias do dia-a-dia, da vida real. O argumento dos Verdes Anos foi extraído de uma notícia do jornal que contava o caso de um jovem que se apaixonou por uma rapariga e, a certa altura, teve um acesso e acabou por matá-la. É claro que isto parece una daquelas histórias tremendas, mas não, tratada de determinada maneira era apenas uma história das muitas que a vida tem.

Quando se fala dos Verdes Anos, as pessoas lembram-se logo do tema que compôs para a banda sonora. Como se tivessem sido tocadas no mais fundo de si próprias. Como se houvesse algo de muito profundo e português nesses sons...

No caso de um filme, há muitas maneiras de acompanhar musicalmente uma história. Muitas maneiras de focar a dor e o sofrimento, a angústia. Pode não ser aquilo que existe em certo tipo de cantigas ou de fados, em que essa angústia é um bocado forçada. De lágrima ao canto do olho.

 A sua música reflecte essa angústia?

  Eu desejaria que não reflectisse. Se há nela una angústia, é uma angústia muito especial.

 Que tipo de angústia?

Nunca poderá ser uma angústia torturada, uma angústia que obriga permanentemente a chorar. Há certo tipo de canções antigas e urbanas, acompanhadas à guitarra, em que o seu gemido característico era aproveitado para pôr as cordas a chorar. Um choro mecânico, físico. O gemido da guitarra podia considerar-se o gemido da voz. Eu não gosto muito disso. Acho que o sofrimento há-de ter uns tons poéticos.

Mas existe, de facto, na sua música um sentimento de tristeza.

 Uma tristeza equilibrada. Una tristeza de alguém que vive uma determinada forma de vida e que  

Será o fado, essa "estranha forma de vida"?

Posso dar um exemplo. Suponhamos que o meu amigo tem conhecimento de um caso em que a pessoa é torturada e tem tendência para chorar, para desesperar. Em vez de se focar o aspecto do desespero, é possível comover sem fazer chorar. Nos Verdes Anos, aquilo tudo não era acompanhado de lágrimas forçadas, e nem por isso deixava de haver comoção.

 Que relação a sua música mantém com o tema da "saudade"?

A saudade pode ser uma outra maneira de forçar a angústia. Mas um certo tipo de saudade pode não ser necessariamente uma dor torturada. 

Que relação a sua música mantém com o tema da "saudade"?

A saudade pode ser uma outra maneira de forçar a angústia. Mas um certo tipo de saudade pode não A única entrevista de Carlos Paredes ao PÚBLICO: “Sentimento perpétuo”

Essa "fuga" constante ao sofrimento, à angústia, terá alguma relação com a sua recusa de associar a guitarra apenas ao fado?

Aquilo que no fado popular, sobretudo em Lisboa, era caracterizado pelo chamado "fado da desgraçadinha". Dir-se-ia que os fadistas andavam à procura de histórias tristes para fazer as canções, o chamado "fado sentido". Essas histórias eram muitas vezes seleccionadas de acordo com aquilo que eram capazes de provocar nas pessoas: mais tristeza, mais angústia. Acho que nunca me servi disso. Prefiro abordar o sofrimento e os aspectos tristes da vida que nos dominam na intimidade e que não têm necessidade de ser exibidos. 

Tem muito que ver com a sua maneira de ser, de introspecção constante...

Sim, uma introspecção que é possível encontrar em muita literatura portuguesa.

Já que se fala de fado, vem à baila a velha questão: por que razão sempre se recusou a tocar com Amália Rodrigues?

Eu não sei acompanhar a Amália.

Como pode afirmar isso se nunca tentou?

Não é preciso tentar. Tocar com a Amália exige uma certa escola, um certo conhecimento na forma de a acompanhar. Eu seria um mau acompanhante dela.

Como pode afirmar isso se nunca tentou?

Não é preciso tentar. Tocar com a Amália exige uma certa escola, um certo conhecimento na forma de a acompanhar. Eu seria um mau acompanhante dela.

Claro que são outros géneros de música. A questão que lhe estou a pôr é sobre a recusa em assumir um risco particular, de acompanhar a Amália...

O Charlie Haden é um homem do jazz, do contrabaixo, e fez-me umas propostas interessantes. Eu limitava-me a introduzir também a guitarra, improvisando. Se eu hoje quisesse acompanhar a Amália não conseguia. Os guitarristas que a acompanham são especialistas que, à sua maneira, criam coisas novas. Eu já não seria uma pessoa para isso. O mais certo era ter de desistir logo. É como se tocássemos 

Entrámos num outro tema, da improvisação, sempre presente na sua música. Até que ponto esa improvisação se estendeu à sua carreira, senão mesmo à sua vida

A improvisação vive connosco. Há certos acontecimentos da nossa vida que nos obrigam a encontrar uma solução rápida. Muitas vezes isso acontece com o improviso. Há quem diga que o português é mestre da improvisação. O que muitas vezes procuro é uma solução ocasional, rápida, servindo-me dos elementos que tenho à mão. Se não houvesse um certo grau de improvisação, teríamos dificuldade em nos adaptarmos aos acontecimentos, ao inesperado.

Voltemos à Amália Rodrigues, que fez carreira, em Portugal e no estrangeiro. O Carlos Paredes não lhe fica atrás em qualidade artística, mas nunca alcançou o mesmo tipo de projecção. No seu caso, o que é que faltou, se é que sentiu ter faltado alguma coisa?

Pois, a Amália impõe-se pelo género que canta, muito ligado ao fado tradicional, ao sofrimento que se exprime fisicamente. Não queria dizer "fácil"... Como se costuma dizer: viver os acontecimentos ao canto do olho... É preciso falar da vida sem cair no exagero, sem chorar. 

Acha que a Amália cai no exagero?

Não cai no exagero, pois não. Eu diria que o caso da Amália é completamente inimitável.

Mas acabou por não responder à pergunta anterior, sobre a planificação da sua carreira, por não existir...

Pois não. Eu e a Amália temos culturas e origens diferentes.

 Vamos pôr a Amália de lado. Nunca se preocupou com os aspectos práticos da sua carreira? Ou com a necessidade de uma aceitação a uma escala maior?

As pessoas aceitam-me conforme me ouvem.

Mas primeiro têm de saber que a sua música existe, de a conhecer...

Nunca fiz muito esforço nesse sentido. As pessoas que apreciam, que gostam de me ouvir tocar guitarra ouvem, a coisa agrada-lhes e eles aderem. Não há mais nada.

Uma atitude semelhante ao que acontecia na antiga música de salão, tocada para um número restrito de pessoas...

... Entre amigos, sim.

É assim que se sente mais à vontade a tocar?

Exactamente. Em família, na intimidade. Acompanhando o tocar de uma conversa em que falamos de nós, dos amigos, dos acontecimentos da vida diária.

E no entanto prepara-se para tocar em grandes espectáculos, com encenação e músicos co  nvidados...

Quem organizou este espectáculo foi um empresário [António Pinho] que estudou a fundo as coisas, entrou em contacto com as pessoas, etc. Mas penso que vai ser tudo numa escala reduzida. Uma forma modesta de ver as coisas. Um bailarino, por exemplo, pode exibir-se com um grande grupo, num grande palco, mas pode também fazer pequenos apontamentos musicais, menos complicados. É isso que eu faço. 

Que reportório tocará nesses espectáculos?

Vou tocar coisas antigas, incluindo duas peças de há 20 anos, do período em que ainda tinha desejo de ser virtuoso e em que utilizava desenhos tecnicamente difíceis. Tocarei, é claro, outros temas mais recentes e mais simples. Abandonei os malabarismos para me dedicar à verdade melódica da guitarra. ~

E em conjunto com os artistas convidados?

A Natália Casanova vai cantar uma canção do José Afonso, Cantiga de Maio. Vou tocar o começo de Porto Santo e depois deixarei o desenvolvimento ao (Mário) Laginha, que improvisará à sua vontade. Com o Rui Veloso vai ser um bocado mais difícil. É um músico com uma técnica muito pessoal e não se pode levianamente pegar nas canções e fazer improvisações de acompanhamento. 

Há quem diga que certos partidos políticos, em determinadas ocasiões, se terão aproveitado da sua maneira de ser, convidando-o para participar em iniciativas sem um mínimo de condições nem contrapartidas. Concorda?

Não. Nunca houve da parte de ninguém a intenção de se aproveitar de mim, e até o podiam fazer, não é?

Mas nunca diz "não" a ninguém?

Repare, as pessoas convidavam-me para participar em espectáculos e o espírito que eu levava era um espírito de alguém que gosta de tocar, de ouvir a opinião das pessoas, que pode tocar até para quem está a tomar um café e a conversar.

Isso é o seu ponto de vista. Alguma vez se preocupou com as razões da outra parte?

Então vou-lhe ser franco. Participei em muitas coisas simplesmente levado pelos meus sentimentos de solidariedade. Como outros também participavam.

Mas acha bem que um músico da sua estatura continue a trabalhar como funcionário de um hospital, em vez de se dedicar por inteiro à sua música?

Bem, isso é o que muita gente pode pensar. Que um indivíduo que até faz determinada música se deve especializar, até de um ponto de vista profissional. Mas, infelizmente, não foi possível fazê-lo. Por exemplo, o meu pai (Artur Paredes) era um amador e tinha o seu emprego. As pessoas nessa época não dependiam da música, no entanto faziam música porque isso lhes dava um prazer pessoal.

Hoje, apesar de tudo, é possível viver em Portugal só da música. Pensou alguma vez nessa possibilidade?

Havia de facto músicos que eram convidados, e havia uma certa retribuição em dinheiro para lhes facilitar a vida. Quer dizer, começavam a ganhar dinheiro suficiente para viver. Mas não foi isso que me sucedeu, ou sucedeu só de vez em quando. Houve, em determinada altura, a Cantar Abril, uma organização semiprofissional em que se passou a fazer contratos. Evidentemente, o dinheiro que se ganhava até dava, por vezes, para resolver problemas económicos. Mas nunca fui muito de receber essa retribuição.

Um amador puro.

Sim, porque se não fosse um amador ninguém me suportava a tocar guitarra.

Acredita de verdade no que está a dizer? Parece ter sempre uma opinião negativa de si próprio e da sua música...

Não, não suportavam... Começavam a sentir a falta daquele espírito amador que faz com que numa plateia se ouça um guitarrista como eu de forma diferente, por exemplo, da de um profissional como o Segóvia.

 Houve alguma alteração na sua carreira a partir do 25 de Abril?

Não sei como é que os artistas resolvem os seus problemas, se porventura têm a possibilidade de ganhar um tanto por cada recital. E possível que isso lhes dê uma quantia apreciável que lhes permita resolver muitas coisas. Conheço, por exemplo, o caso de um cantor ligeiro que a determinada altura disse: "Preciso de comprar um andar." E comprou.

Mas, no seu caso pessoal, sentiu alguma modificação?

Não. Nunca procurei resolver problemas por esse sistema. Toco guitarra. As pessoas gostam de ouvir. Juntamo-nos. Tocamos. E assim vamos vivendo. 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Daniel Oliveira - Um dia olharemos para uma criança com um 'smartphone' como se estivesse a fumar

Opinião 

* Daniel Oliveira  

Menores entre os 4 e os 18 anos passam, em média, 4 horas diárias em frente a ecrãs. Horas que nunca mais se repetirão, deixando mazelas irreversíveis. A nossa negligência pode ser responsável por uma geração menos preparada, dotada e empática do que as anteriores, o que terá efeitos sociais, culturais e políticos devastadores. Basta cumprirmos a nossa função. Ou deixar que a escola cumpra a sua

Segundo um estudo do Quostodio, tendo como objeto 400 mil famílias de Espanha, EUA, Reino Unido e Austrália, os menores entre os 4 e os 18 anos passam, em média, quatro horas por dia em frente aos ecrãs. Dois meses do ano.Horas que nunca mais se repetirão no seu desenvolvimento cerebral e físico. Definitivamente perdidas e irrecuperáveis. Perdas que deixarão mazelas irreversíveis. Porque nós, os seus pais, somos coletivamente negligentes. Talvez por estarmos tão viciados como eles, não conseguimos cortar-lhes a droga. Talvez porque essas horas nos tirem peso de cima. Talvez por ignorância.
  
Não é por acaso que os pais de Silicon Valley procuravam (pelo menos em 2018) escolas com acesso limitado a tecnologia e contratam amas que se comprometem a não deixar os seus filhos usar telemóveis. Sabem o que produzem. Nós, menos avisados, deixámos que se viciassem e, agora, não fazemos ideia o que fazer com o mal que permitimos. Droga e vício não são metáforas. É mesmo um vício, é mesmo uma droga.

Matilde Sobral e Mariana Reis, fundadoras da Associação Mirabilis Portugal, explicaram-no aqui no Expresso: “Como as drogas leves e pesadas, o álcool ou as apostas a dinheiro, também o consumo abusivo de ecrãs provoca libertação de quantidades excessivas de dopamina. Ainda que a dopamina seja um neurotransmissor necessário para a sobrevivência, caso circule em excesso no nosso cérebro, repetidamente, pode causar dependência. A dopamina em excesso é o fator subjacente a todos os vícios. E os ecrãs interativos, pela forma como estão desenhados, provocam libertação desequilibrada de dopamina, tal como as outras drogas.”

Marc Massip compara os smartphones à heroína porque, quando ela surgiu, também se desconheciam os seus riscos. Como sabe quem tem filhos adictos ao telemóvel (ou é adicto), até existe a síndrome de abstinência. Mas continuamos tão a leste da dimensão do problema que a proposta do psicólogo espanhol, que defende que não se tenha estes aparelhos até aos 16 anos, até o cérebro estar suficientemente desenvolvido para lidar com ele, nos parecerá lunática.

Estamos a léguas disto. Mais de 60% das crianças portuguesas recebe o primeiro telemóvel entre os 10 e os 12 anos. E a partir dos 13 ou 14 anos, praticamente todos o têm. 15%, mais do que um. Não vale a pena continuar a fazer a comparação com o passado e o que se dizia sobre a televisão. Os smartphones e tablets estão sempre disponíveis;permitem uma interação que leva ao vício e dão à criança o controlo do que querem ver, evitando o tédio.

A LISTA DAS MAZELAS
Não se ensina uma criança a gerir um vício. Porque lhe faltam capacidades de gestão dos seus impulsos. Ter um tempo no dia em que os telemóveis estão inacessíveis é a forma de a ensinar a gerir a frustração e a ansiedade, levando-a a descobrir outras formas de divertimento. Coisa que inevitavelmente acontecerá. A mais antiga de todas: interagirem entre si, expressando emoções com o instrumento que naturalmente temos para o fazer (o corpo), reforçado lanços empatia. Serem, enfim, seres humanos. Isso também se aprende. E não se aprende no meio de zoombeis virados para ecrãs, perdendo capacidades indispensáveis para animais gregários como nós.

A Sociedade Portuguesa de Neuropediatria fez a lista de efeitos da utilização precoce de ecrãs: aumento do tempo em atividades sedentárias, com limitação do desenvolvimento motor; dificuldade em focar a atenção, gerir adversidades e enfrentar o tédio (reduzindo a criatividade), o que aumenta o risco da hiperatividade e défice de atenção; redução do tempo de interação com adultos e outras crianças, com riscos para o comportamento social e atraso na linguagem; perda de qualidade do sono; e aumento do risco de se sentir fisicamente inferior, com o aumento do risco de perturbações do comportamento alimentar, depressões e ansiedade. Deixo de fora o cyberbullying ou acesso fácil a pornografia, numa idade em que ela não é compreendida pela criança. Acho, aliás, delicioso ver pais que temem as aulas de educação cívica e dão telemóveis aos seus filhos. Confiam mais em algoritmos de empresas do que num professor.

Como escreveram, neste jornal, as duas fundadoras da Associação Mirabilis Portugal, “não há uma única atividade necessária ao desenvolvimento do cérebro que precise de um ecrã.” É por isso que a SPN recomenda que não se usem ecrãs até aos 3 anos, exceto para videochamadas (excluindo a televisão, na presença de adulto e para conteúdo adequado, até à meia hora diária). Entre os 4 e os 6 anos, o uso deve ser limitado a meia hora de programação de alta qualidade, na presença de adultos e sem controlo da mudança de canais ou vídeos. Entre os 7 e os 11 anos, uma hora por dia. E entre os 12 e os 15, duas horas, com cautelas várias. Redes sociais? Só depois dos 16. Em nenhum caso ou idade, se deve usar para resolver problemas de comportamento, seja para comerem ou não fazerem birras. Nunca à refeição. Nunca no quarto. Perante estas recomendações, ainda discutimos se miúdos do terceiro ciclo podem dispensar smartphones sempre disponíveis, na escola.

COMEÇAR NA ESCOLA
Mas olhemos para o copo meio cheio. O facto do livro de Jonathan Haidt, “A Geração Ansiosa”, ser um best-seller diz-nos que as pessoas começam a perceber que estão a fazer qualquer coisa incrivelmente errada. E a razão porque me tornei obcecado pela proibição dos telemóveis na escola é por achar que podemos, enquanto sociedade, ajudar as famílias ultrapassar esta fase inicial de correção do primeiro impacto. Cinco ou seis horas por dia sem ter acesso ao telemóvel é a primeira cura de privação, a primeira oportunidade para viverem parte do seu tempo sem esta droga. E para redescobrirem tudo o que precisam para virem a ser adultos.

Será a partir da escola que se determinará o que serão aquelas pessoas enquanto adultos. É ali que se aprende a brincar e brincar é a preparação para coisas sérias. Nas escolas, os telemóveis substituem a formação das primeiras amizades, o exercício físico, as conversas, a socialização, aprendizagem de gestão de conflitos, o tédio. Tudo o que é necessário para a infância e a adolescência prepararem a vida adulta.

Claro que a escola não pode ser um espaço anacrónico, onde a tecnologia está interdita. Mas a tecnologia, a que a escola garante a todos, deve ser usada quando é necessária, fazendo aquilo que a escola faz: pedagogia. Nenhum miúdo deixa de aprender a usar novas tecnologias por não estar sempre com um aparelho ao lado. A escola não pode ser uma bolha no quotidiano de crianças e jovens, mas também não pode ser a repetição do que os pais fazem de errado. Por isso, mesmo que haja crianças que só comem porcaria em casa, a escola só deve ter disponível alimentação equilibrada, saudável e de qualidade. Porque a saúde também se educa, com a experiência. É isso que devia acontecer na relação com os telemóveis e os tablets.

COMEÇA A REAÇÃO
Os primeiros passos, ainda minoritários, começam a ser dados pelos pais. A pressão de vários grupos de pais já permitiu que, em Portugal, várias escolas públicas avançassem na interdição de telemóveis no terceiro ciclo. Mas não me parece que se tenha de esperar pelos pais. Também não se esperou por eles para decidir que alimentos se vendem nas escolas ou para proibir fumar.

Há pais que foram mais longe. Para vencer a pressão dos colegas, que todas as gerações conheceram em tantas coisas, nasceu, no Reino Unido (onde 89% das crianças de 12 anos têm seu próprio smartphone), o movimento Smartphone Free Childhood, que lançou um pacto online: em cada escola, comprometerem-se a não dar smartphones aos filhos até aos 14 anos. Ainda é um movimento minoritário, mas 37 mil pais de 56 mil crianças que estão em oito mil escolas britânicas já o assinaram. Em vez do smartphone, dão-lhes um “tijolo”, para estarem contactáveis. Pelo menos sentem que não estão a condenar os seus filhos ao degredo.

Lamento se regresso recorrentemente a este tema. Não quero ensinar a educar. Não sou um ludita. Não vivo em pânico com cada geração será pior do que a seguinte. Apenas percebi, como milhões de pais já perceberam, que a nossa negligência coletiva pode ser responsável por uma geração menos preparada, dotada e empática do que as anteriores. Que isto terá efeitos sociais, culturais e políticos devastadores. E que, no entanto, isto é incrivelmente fácil de resolver. Basta aprender uma palavra mágica: “não”. Basta cumprirmos a nossa função. Ou, pelo menos, deixar que a escola cumpra a sua. 

Expresso 05 dezembro 2024

Daniel Oliveira - Todos os homens como ilhas

Opinião   

* Daniel Oliveira 

Nos EUA, o tempo passado a socializar presencialmente caiu mais de 20% em 20 anos. Na Europa, os jovens que não socializam uma vez por semana passaram de um em cada dez para um em cada quatro. O efeito político deste século antissocial é o crescimento da extrema-direita. Porque a solidão e o isolamento reforçam a crença na ameaça externa. É necessário retirar a oligarquia tecnológica do volante e reconstruir o espaço público como espaço de encontro físico. Salvar o que de humano existe na humanidade

Os pais de Sewell Setzer, um adolescente suicida, processaram uma plataforma online. Conta a família que o jovem de 14 anos passou os últimos dez meses da sua vida em diálogo com bots criados por Inteligência Artificial, a quem contava tudo, incluindo os problemas de saúde mental que escondia dos pais.

Os processos contra estas empresas avolumam-se, com relatos de casos em que estes “amigos” fictícios disseram a um jovem para matar os seus pais depois deles terem limitado o tempo de telefone, ou com conselhos agravam o risco de anorexia. Os utilizadores destas plataformas passam, em média, 93 minutos diários à conversa com bots e a maior destas plataformas, a Character.AI, tem dezenas de milhões de utilizadores. A forma como a empresa anuncia os seus serviços é esclarecedora: “converse com milhões de personagens de IA a qualquer hora e em qualquer lugar. Bots de conversação superinteligentes que o ouvem, o compreendem e se lembram de si”.

No século antissocial, como lhe chamou Derek Thompson, num magnífico e detalhado trabalho jornalístico na revista “The Atlantic”, essas promessas encontram um eco crescente em milhões de pessoas desligadas fisicamente de qualquer rede de amizade.

Um estudo anual do Departamento de Estatísticas do Trabalho dos EUA mostra que o tempo passado a socializar presencialmente caiu, entre 2003 e 2023, mais de 20%. Um declínio superior a 35% entre homens solteiros e jovens com menos de 25 anos. O fenómeno não é episódico nem resulta apenas da pandemia. A tendência é anterior e continua a acelerar. Na Europa é igual: nos últimos vinte anos, os jovens europeus que não socializam uma vez por semana passaram de um em cada dez para um em cada quatro. Os adolescentes e jovens na casa dos vinte têm hoje os mesmos níveis de socialização presencial que as pessoas com mais de 30 anos tinham há apenas uma década ou duas.

O isolamento reflete-se até nos hábitos mais banais. Nos EUA, o número de reservas para apenas uma pessoa efetuadas em restaurantes cresceu 29%. Um estudo recente de Patrick Sharkey, sociólogo da Universidade de Princeton, concluiu que os americanos passam mais 99 minutos em casa, a cada dia da semana, quando comparado com 2002. Para onde quer que olhemos, há sinais de que a sociedade se está a reorganizar para que cada um possa viver no seu casulo, sem precisar de interagir presencialmente com ninguém.

A falta de interação social tem consequências devastadoras. Um jovem que cresce sem um espaço real para partilhar emoções, dúvidas e frustrações é presa fácil da ansiedade, da depressão e da baixa autoestima. O aumento do tempo passado sozinho correlaciona-se diretamente com o declínio da satisfação com a vida entre jovens adultos nos últimos 15 anos, como indica o Financial Times com uma profusa sucessão de gráficos e dados. E os jovens até aos 30 anos sabem-no. As atividades que lhes consomem cada vez mais tempo, como os jogos e interação online, são exatamente a que eles indicam como dando-lhes menor satisfação.

Adolescentes e jovens estão presos numa armadilha digital que os condiciona a repetir um comportamento que os faz sentir pior. Como acontece com qualquer adição. Porque a economia digital da atenção é orientada por algoritmos desenvolvidos para hiperestimular o cérebro e ativar o seu circuito de recompensa através da libertação de dopamina. E é uma adição coletiva e é como tal que temos de a enfrentar.


UM EXÉRCITO DE SOLITÁRIOS FURIOSOS

Os efeitos deste século antissocial não se ficam pelo seu impacto no bem-estar e saúde mental, especialmente dos mais jovens. Quando milhões passam pelo mesmo processo, os impactos tornam-se políticos. A frustração acumulada, a ausência de conexões reais e a perceção de que o mundo os abandonou fazem crescer uma raiva latente que se transforma em ressentimento. E essa raiva, explorada pela extrema-direita, ajuda a explicar a atração da juventude pela desumanização do outro. Indivíduos isolados têm maior predisposição para culpar terceiros pela sua insatisfação e a desenvolver atitudes agressivas em relação a grupos que percecionam como “inimigos”. Esta predisposição para procurar bodes expiatórios e abraçar teorias da conspiração é amplificada pelos algoritmos das redes sociais, que apresentam conteúdos cada vez mais polarizados e extremados.

Michael Bang Petersen, um cientista político dinamarquês citado pela “The Atlantic”, diz que são os que tendem a sentir-se socialmente isolados que mais reforçavam uma necessidade de caos e destruição. A política deixa de ser um exercício de construção e passa a ser um palco de destruição. O outro não é um adversário, mas um inimigo. E quando a única via de escape parece ser a implosão do sistema, o populismo radical oferece exatamente isso: um refúgio emocional, uma catarse coletiva, a promessa de que o caos será a resposta para a dor.


Um estudo recente, desenvolvido por investigadores da Universidade de Amesterdão e Instituto de Psicologia Leibniz, com 41 mil participantes de nove países europeus, indica que os solitários têm uma maior propensão para apoiar a extrema-direita. A solidão e o isolamento reforçam o sentimento de alerta e a crença na ameaça externa, gerando indivíduos mais recetivos ao discurso nativista (que vê imigrantes e minorias como ameaças) e populista (que culpa as elites políticas e económicas). A oferta de uma ideia de comunidade, que se vem perdendo com o declínio das formas tradicionais de intermediação como a religião, sindicatos e estruturas associativas, cria um sentimento de pertença atraente para quem se sente isolado.

O mecanismo pode ser bidirecional: a solidão tanto pode aumentar a predisposição para apoiar a extrema-direita, como ser o apoio a grupos radicais aumentar o isolamento social, devido à estigmatizarão social dos apoiantes desses grupos. É um ciclo dinâmico, onde fatores emocionais e políticos se alimentam mutuamente.

Tenho defendido de forma crescentemente empenhada a necessidade de limitar os telefones nas escolas. Faço-o, consciente que a dopamina libertada pela economia da atenção das redes sociais limita a capacidade de atenção necessária para pensamentos complexos, mas também para impedir que as crianças cresçam sem desenvolver interações sociais reais. Os dados que começam a surgir nos revelam que temos de o fazer também para proteger o bem-estar da comunidade. Ou enfrentamos o problema de frente, ou entregamos o futuro a uma geração de jovens isolados, viciados em dopamina digital e prontos para se agarrar à primeira ideologia que lhes oferecer um sentido de pertença – mesmo que esse sentido venha embrulhado em ódio. Se não reconstruirmos o tecido social, a extrema-direita fá-lo-á por nós. 

De pouco vale tentar travar a extrema-direita e o ódio se não retomarmos os espaços de socialização que nos permitem viver em comunidades empáticas. A radicalidade democrática passa pelo desmame, no espaço escolar e familiar, de uma adição coletiva feita para nos escravizar. A começar pelos nossos filhos e netos. Depois, pela regulação da IA e das redes, retirando a oligarquia tecnológica do volante das nossas sociedades. Por fim, a reconstrução do espaço público como espaço de encontro físico. Tudo isto seria absolutamente revolucionário. E já não se trata de construir um mundo novo, mas de salvar o que de humano existe na humanidade.

(Expresso 2025 02 12)