segunda-feira, 17 de março de 2025

António Gil - Os líderes políticos actuais do ocidente foram escolhidos num casting



* António Gil


Os líderes políticos actuais do ocidente foram escolhidos num casting

Disso mesmo se gabou várias vezes Klauss Schwab, o patrão do Fórum Económico Mundial

.Se é verdade -como acredito que é - que a qualificação para a sobrevivência dos indivíduos, como dos povos, depende em larga medida da capacidade de adaptação a novas circunstâncias, então devo dizer que a civilização no seio da qual nasci parece irremediavelmente comprometida

Há um número indeterminado - mas grande - de indivíduos europeus, canadianos, americanos, australianos e neo-zelandeses que parecem ter ficado presos num tempo em que a URSS e os EUA putativamente decidiam os destinos do mundo. Bom, nem nessa época isso era verdade, imaginem agora, mais de uma geração depois.

Podemos certamente acusar os sistemas educativos e a propaganda ocidentais de tudo, certamente, menos de sofisticação. Não há nuances nem flexibilidade mental nas formas de conceber o mundo geo-político actual nas massas ocidentais. Só o preto e branco, sem sequer a qualidade imagética de Eisenstein, esse genial realizador que deixava os tons de cinzento implícitos, no seu gosto pelos grandes contrastes.

É tudo tão primitivo que ainda vemos gente falando sobre ditaduras comunistas e lutadores pela liberdade (anti-comunistas, dentro desse esquema simplista). E sim, para muitos a Rússia permanece comunista e os EUA os campeões do livre mercado, não importa quantas tarifas imponham aos produtos que …importam.

Tudo o que aconteceu depois do colapso do muro de Berlim? é como se não tivesse existido! se isto não representa um caso de estado coma mental, nem sei o que chamar-lhe. E não, isto não é uma percepção de ‘camponeses’, de gente iletrada, pelo contrário. Na verdade, esta visão foi imposta de cima para baixo, os ‘camponeses’ apenas papagueiam o que dizem suas supostas elites.

Nada disto seria novo, não se desse o caso de parecer cada vez mais evidente que as ditas ‘elites’ parecem realmente acreditar no que dizem. Em épocas históricas não tão distantes assim, a elite parecia ter -pelo menos - a noção que havia duas ‘realidades’ imiscíveis:
1- O que era preciso dizer à populaça para que esta se mantivesse ordeira. As elites do passado não acreditavam naquilo que diziam, mas sabiam o que era preciso dizer para manterem seus privilégios.

2- A realidade propriamente dita, que as elites conheciam e mantinham em circuito fechado, longe do conhecimento público. Essa realidade não era desprezada, dentro de um certo círculo, era mesmo estudada e aprofundada, com o mesmo objectivo: a manutenção ou ampliação dos privilégios próprios.

Hoje isso não parece acontecer. A própria elite parece acreditar piamente nas suas mentiras. Como explicar isso? 

Bom, na minha opinião a ‘elite’ que temos é pouco mais que um punhado de camponeses deslumbrados, pagos a peso de ouro mas nem por isso cientes do que dizem e do que fazem. Não são pessoas que alguma vez tivessem recebido (como os aristocratas do passado) qualquer rudimento da arte de governar, são ‘celebridades’, promovidas pelos mesmos processos que consagraram artistas da música pop ou do cinema. E tal como a maioria destes, vindos dos extractos mais baixos da sociedade. Talvez as chamadas democracias ocidentais se resumam a isto, afinal: pessoas escolhidas num casting para interpretarem o papel de governantes. E quando o casting falha, quem paga o ‘filme’ anula a escolha e avança com protagonistas de seu agrado, como aconteceu recentemente na Roménia.


mar 16, 2025
https://antoniojfgil.substack.com/p/the-current-political-leaders-of? 

António Rodrigues - “Mulheres” é uma das palavras censuradas pela Administração Trump

 

EUA 

Médicos de Harvard apresentam queixa na justiça pelo desaparecimento de ensaios de um site médico federal. Departamento de Defesa manda militares apagar milhares de fotos e textos.

António Rodrigues 

16 de Março de 2025, 17:39

No final deste artigo, veja a lista de palavras coligida pelo New York Times

Investigadores da Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard apresentaram queixa na justiça na semana passada por causa da decisão da Administração Trump de fazer desaparecer uma série de artigos destinados a investigação médica do site governamental Patient Safety Network. Dizem os médicos que ensaios científicos com palavras como “trans” ou com a sigla LGBTQ foram pura e simplesmente apagados.

A ferramenta online destina-se aos profissionais de saúde e visa partilhar informações sobre erros médicos, diagnósticos erróneos e resultados de tratamentos. No entanto, por mais que a saúde precise de informação para trabalhar, o uso de determinadas palavras, mesmo em documentação científica, choca com as directrizes da Administração Trump no domínio da linguagem.

Há dias o New York Times trazia uma lista de quase 200 palavras proibidas que havia compilado de directivas e emails internos partilhados por membros do Governo. E a palavra “trans” e a sigla LGBTQ figuram nessa lista, junto com "racismo" e "anti-racismo", "diversidade", "igualdade", "discriminação" ou "discriminatório", expressões como "biologicamente feminino" ou "biologicamente masculino", "discurso de ódio", "pessoa que amamenta", "apropriação cultural", etc., etc.  

Em declarações à plataforma GBH, Cneleste Royce, professora assistente de obstetrícia, ginecologia e biologia reprodutiva na Faculdade de Medicina de Harvard, mostrava-se chocada pelo desaparecimento súbito de um artigo, escrito há cinco anos, de que tinha sido co-autora. “Não me lembro de nada no artigo que possa ser controverso, para além do facto de se centrar na saúde das mulheres. E, sabe, acho que 'mulheres' é uma das palavras que está a ser censurada nessa lista”, disse.

E Celeste Royce tem toda a razão, a palavra “mulheres” faz parte da lista das palavras censuradas, tal como "fêmea", "fêmeas" e "feminismo". Para o acaso de alguém perguntar, a palavra “homens” ou “macho”, “machos” ou “masculinidade tóxica” não constam da lista ou expressões a silenciar.

"Golfo do México"

Na lista também consta a proibição de utilizar Golfo do México para designar o Golfo… do México. No seu primeiro dia de regresso ao cargo de Presidente, Trump emitiu uma ordem executiva a nomeá-lo Golfo da América, como se a toponímia pudesse variar quando uma pessoa quisesse. Mas, pelos vistos, nestes estranhos tempos em que nos toca viver, isso acontece e a uma velocidade estonteante.

Ainda não pssados dois meses desde que Trump tomou posse e o Departamento de Educação do Luisiana, estado que até agora era banhado pelo Golfo do México, já passou a incluir, desde a passada quarta-feira, no programa para as escolas primárias e secundárias que à costa do estado chegam agora as águas do Golfo da América e não do México.

“O Golfo é um motor de sustentação para o Luisiana – ajuda a alimentar o nosso sector energético e a indústria alimentar e de marisco e sustenta gerações de famílias”, afirmou Cade Brumley, superintendente de Educação do estado, que recomendou a alteração curricular, em declarações disponíveis no site do Departamento de Educação estadual. “A actualização dos nossos padrões académicos garante o alinhamento com a liderança do Presidente Trump e do governador Landry, ao mesmo tempo que reforça a importância do golfo para o futuro do nosso estado.”

É prática comum dos novos governos, nos Estados Unidos e noutros países, estabelecerem directivas sobre os termos da sua comunicação oficial, mas a longa lista de palavras censuradas por esta nova Administração mostra que a guerra contra aquilo a que chamam mentalidade woke assentou arraiais no executivo.

Como refere o New York Times, as palavras e frases listadas “representam uma mudança marcada – e assinalável – no corpus da linguagem utilizada tanto nos corredores do poder do Governo federal como entre os seus funcionários. São um reflexo inequívoco das prioridades desta administração.”

Desde “preconceito” ou “preconceituoso”, passando por “ciências climáticas”, “desfavorecido” ou “património cultural”, até acabar em “nativo americano” ou “multicultural”, o caderno censório da Administração Trump é alargado no léxico, mas transparente na ideologia.

"Enola Gay"

Timothy Noah, num artigo publicado na semana passada na New Republic, confirmava que a lista do New York Times não era exaustiva, tal como os autores do artigo salientavam, lembrando que o secretário da Defesa, Pete Hegseth, havia acrescentado Enola Gay à lista de expressões censuráveis, apagando assim o nome do avião que lançou a primeira bomba atómica (Hiroxima) dos sites oficiais. E com ele, provavelmente, o grande êxito homónimo dos Orchestral Manoeuvers in the Dark.

Hegseth, homem com longo passado de alcoolismo, acusações de assédio sexual e suspeitas de abusos de mulheres, pode até concordar com o bombardeamento de Hiroxima, o que não considera adequado é usar a palavra “gay” no nome do avião. “O lançamento da primeira bomba atómica foi durante muito tempo objecto de controvérsia, mas nunca por ter sido woke”, diz Noah.

De acordo com Associated Press, Hegseth enviou uma directiva às chefias militares a pedir que fossem apagadas pelo menos 26 mil imagens ou textos que constam dos sites oficiais, mas o número pode ascender a 100 mil.

“Referências a um galardoado com a medalha de honra da Segunda Guerra Mundial, ao avião Enola Gay que lançou uma bomba atómica sobre o Japão e às primeiras mulheres a passar o treino de infantaria dos fuzileiros navais estão entre as dezenas de milhares de fotografias e publicações online marcadas para serem eliminadas, à medida que o Departamento da Defesa trabalha para eliminar conteúdos sobre diversidade, igualdade e inclusão”, escreve a agência.

Até palavras aparentemente neutrais como "institucional" fazem parte da lista termos indesejados por esta nova Administração dos EUA. “Todos sabemos que Trump está determinado a destruir todas as instituições governamentais a que consegue deitar a mão, mas proibir a própria palavra eleva as coisas a um nível superior de fanatismo”, conclui Timothy Noah.



https://www.publico.pt/2025/03/16/mundo/noticia/

domingo, 16 de março de 2025

Aureliano - De quoi parlons-nous quand nous parlons de negociations?

Outro dos meus ensaios em francês 

* Aureliano

16 de março de 2025

Por favor, junte-se a mim mais uma vez para agradecer a Hubert Mulkens por outra tradução brilhante de um ensaio recente meu. Esta é uma tradução francesa do meu ensaio "Sobre o que falamos, quando falamos sobre conversas", que apareceu pela primeira vez em 19 de fevereiro. (E obrigado mais uma vez a Catherine por ler e comentar a tradução.) Suscitou um interesse considerável e alguns comentários na versão inglesa: esta tradução irá, espero, dar àqueles que têm o francês como primeira língua, uma oportunidade de ler e comentar também. Como sempre, estou muito feliz que as traduções dos meus ensaios para outros idiomas apareçam: peço apenas que você me informe e forneça um link para o original. Então agora vamos dar a palavra a Hubert ...

O novo secretário de Defesa dos EUA, Sr. Hegseth, anunciou com um timing impecável a revisão da política dos EUA em relação à Ucrânia, na esteira da conversa telefônica Trump/Putin, assim como meu último ensaio foi publicado. Portanto, ainda não tive a chance de escrever nada sobre esses desenvolvimentos, mas se você ler o site recomendado "Naked Capitalism" naquele dia (o que deveria), terá visto alguns dos meus primeiros pensamentos em e-mails trocados com Yves Smith. E como Yves gentilmente me deu a entender que eu poderia produzir um ensaio útil sobre o assunto, particularmente sobre o aspecto da negociação, bem, decidi fazê-lo.
 

Artur Queiroz - Angola | A ÁGUA QUE MATOU ZITA


domingo, 16 de março de 2025

<> Artur Queiroz*, Luanda ---

Oficialmente hoje é o dia da expansão da Luta Armada de Libertação Nacional. Para mim é o dia da Grande Insurreição Popular que varreu o Norte de Angola, de Sacandica aos Dembos. Na minha terra só existia escola primária e tive de ir estudar para a cidade do Uíje, no ensino secundário. Regime de internato. Tínhamos um líder, o Beto Martins, ao qual chamávamos, exactamente por ser um líder, Beto Lumumba. 

Naquele ano tínhamos exame e por isso não fomos a casa nas férias da Páscoa. Aulas de reforço, para não fazermos má figura e o colégio não ter “chumbos” no currículo.

Arlindo era o aluno mais velho do internato, 17 anos. Esteve vários anos sem estudar e retomou os estudos quando os pais puderam pagar-lhe o internato. 

No ano lectivo de 1960/1961 apareceu no internato um menino que ainda andava no ensino primário. Chamava-se Jorge Gonçalves e vinha de Sacandica, onde o pai era comerciante. Adoptado como nosso mascote. Todos o protegíamos. Muitos anos mais tarde ele foi presidente do Sporting Clube de Portugal. As voltas que o mundo dá!

No internato tínhamos um sapateiro que remendava os nossos sapatos. Veio do Cuanza Norte e o seu sonho era chamar a esposa e filhos À noite fazia de guarda. Aos fins de semana saltávamos a janela e íamos para as farras do Candombe. O guarda era conivente com os fugitivos. Um amigo do peito.

Lá na farra dançávamos a noite inteira. As meninas do bairro eram gentis, bonitas e bailarinas elegantes. Uma delas, por feliz coincidência, arranjou trabalho como ajudante da Candidinha, senhora que cozinhava para os alunos internos.

No dia 15 de Março, os guerreiros da UPA atacaram as fazendas do norte e mataram os brancos. Mas também trabalhadores “bailundos”. Nas pequenas vilas isoladas também atacaram com canhangulos, catanas e paus. Avançavam gritando maza, maza, maza quando os colonos disparavam as suas caçadeiras e carabinas sobre os atacantes. Quem aderiu à insurreição recebeu uma muxinga e um pau. Usando aqueles amuletos ficavam invulneráveis. As balas dos brancos eram água!

Essa água matou o sapateiro e guarda do internato. Há quem estivesse na cidade do Uíje e não visse nada. Eu vi mas preferia não ter visto. A água que matou o sapateiro também me matou. 

A Candidinha, no dia 16 de Março, gritava desalmadamente. Fomos saber o que tinha acontecido. A água matou Zita, a menina do Candombe, bailarina, alegre, gentil. A água naquele dia matou centenas de negros nas ruas da cidade do Uíje. Em frente ao internato havia um descampado. Estava juncado de cadáveres. Gente que levava as imbambas. Iam fugir da água. Há quem não tivesse visto nada, vivendo no Uíje. Eu vi. Antes não visse.

O Beto Martins é mestiço. Vivia com os padrinhos brancos. Durante uma semana desapareceu. A água matou-o? Não. Ficou aterrorizado com a fúria assassina das milícias dos colonos. O nosso líder ficou com medo da água. Só queria sair dali. Em Maio saímos todos. Fomos em viaturas militares até à Base Aérea do Negage e apanhámos um avião de carga, o Nordatlas. Em Luanda instalaram-nos num centro de refugiados e retomamos as aulas no Liceu Salvador Correia. Aprovamos todos nos exames!

A água do 15 de Março 1961, data da Grande Insurreição Popular no Norte de Angola matou milhares de inocentes. Pôs milhões em fuga para o Congo. 

Há quem não tivesse visto nada. Eu vi. Antes não visse. 

Hoje é o dia em que me lembro da água que matou Zita. A água que nos matou a juventude.

* Jornalista

at março 16, 2025 

https://paginaglobal.blogspot.com/2025/03/angola-agua-que-matou-zita-artur-queiroz.html

Alexandra Lucas Coelho - O Grande Irmão já está aqui, da polícia alemã aos EUA. A usar os judeus como arma

* Alexandra Lucas Coelho, 

in Público, 15/03/2025)


Daniel Day no topo do Big Ben com a bandeira da Palestina

(Este texto é perturbador. A causa de Israel e a suposta luta contra o antissemitismo estão a ser usadas nas “democracias” ocidentais para cercear os direitos civis, mormente a liberdade de expressão e manifestação. É esta a denúncia da autora que, ao que parece, acaba também de ser silenciada pois diz que a sua coluna no Público termina por ora. Junta-se, assim, ao Viriato Soromenho Marques, já silenciado no Diário de Notícias. E viva a democracia…

Estátua de Sal, 16/01/2025)

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1.O dia 8 de Março de 2025 — sábado passado — dava um livro. Pouco antes das 7h30, hora de Londres, a polícia de Sua Majestade foi chamada porque um homem escalava o Big Ben descalço com uma bandeira da Palestina. E por mais de 16 horas manteve-se lá, a 25 metros, agarrado à torre, fazendo flutuar a bandeira, pés em chaga como um Cristo. De nome judeu, aliás, porque o Cosmos tem sempre os melhores argumentistas: Daniel Day. Valeu, Daniel.

Este 8 de Março já era dele. Mas durante o tempo em que ficou lá em cima, o céu sobre Berlim e sobre a Casa Branca deu ainda mais sentido àquela escalada, aquele alegre sacrifício. Porque pelas 17h30, hora alemã, a polícia com a palavra POLIZEI incandescente no blusão dava murros na cara dxs manifestantes do 8 de Março, Dia Internacional da Mulher. Não de todas, claro, só dxs que tinham keffiyehs e bandeiras palestinianas, por não separarem a luta pela sua liberdade da liberdade da Palestina. Vi muitas imagens no Instagram, falei com pessoas que lá estavam. Uma delas, portuguesa, foi-me apresentada por um palestiniano. Eles conheceram-se na Europa como aprendizes de luthiers: fazem violas, violinos, violoncelos. Eu conhecera-o em Ramallah. Quando voltei lá depois do 7 de Outubro, passei o Ano Novo com a família dele, então antes da meia-noite ele fez uma chamada-vídeo para apresentar aquelas duas pessoas portuguesas, uma moradora em Berlim, a outra ali ao lado. Foi assim que vi Consti a primeira vez. E neste 8 de Março ali estava a mesma cara nos vídeos com a POLIZEI. Consti levou murros, pontapés, pisadelas da polícia, ficou a sangrar, nariz e boca, a companheira foi brutalmente algemada, revistada e detida, ficou a precisar de tratamento médico.

A violência estatal alemã anti-Palestina tem crescido desde o 7 de Outubro, já carregara sobre os manifestantes na Universidade de Humboldt, e tantos outros. Mas eu nunca tinha visto a POLIZEI da maior potência da UE como agora. Pessoas indefesas e já imobilizadas, algumas a sufocar, a tentarem proteger-se com as mãos, esmurradas como um saco de boxe, arrastadas pelo chão. Bom dia, boa noite, António Costa, um comentário? Nossos governantes parceiros dos alemães, nada?

2.Mas este 8 de Março ainda estava longe de acabar. Porque enquanto Daniel continuava empoleirado e descalço na madrugada gélida de Londres, e as feministas dormiam feridas em Berlim, na Costa Leste dos EUA já era noite mas ainda hora para a polícia de imigração, a ICE, ir prender Mahmoud Khalil à sua residência da Universidade de Columbia, NYC, diante da mulher grávida de oito meses. Sem mandado de captura, e levando-o de imediato para um estado a milhares de quilómetros, o Luisiana. Um rapto oficial.

Trump celebrou com post. Atribuiu a Khalil actividades “pró-terroristas, anti-semitas, anti-americanas” e fez saber que aquela prisão, antecedendo deportação, seria “a primeira de muitas”. A ordem fora dada pelo Secretário de Estado Marco Rubio, invocando uma cláusula remota, raramente usada, para ameaças à segurança dos EUA. Acusam Mahmoud de ser pró-Hamas sem provas. Ele acaba de completar o mestrado, é residente permanente com Greencard, já passou pelo escrutínio de uma organização inglesa com quem trabalhou. É preso agora apenas por ter sido um dos líderes dos protestos de Columbia contra a guerra em Gaza, pelos direitos palestinianos. Porque para o Grande Irmão de 2025 os direitos palestinianos são terrorismo.



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3.Mahmoud Khalil é fruto da limpeza étnica de 1948, quando Israel foi fundado e centenas de milhares de palestinianos foram forçados a fugir. Os avós de Khalil eram da Galileia, de uma aldeia perto de Tibérias, então fugiram para a Síria. Duas gerações depois Mahmoud nasceu num campo de refugiados do sul de Damasco. Portanto, um daqueles milhões de humanos que Israel continua a transformar em refugiados mal nascem. Alguns conseguem ir para fora, depois ficar residentes, como Mahmoud, agora casado, prestes a ser pai. Já enfrentara a repressão dos protestos em Columbia e com Trump tudo piorou (no terreno fértil para isso deixado por Biden e pela maioria dos Democratas). Trump cortou 400 milhões de dólares de apoio a Columbia. Dias antes de ser preso, Mahmoud avisou Columbia que corria riscos. Em vão. A polícia pôde ir lá raptá-lo. E Columbia anunciou entretanto expulsões de outros estudantes pró-Palestina, em vez de os proteger. É o futuro da universidade que está em jogo. A liberdade de expressão da Primeira Emenda. A democracia, em alerta vermelho. Mahmoud Khalil é já o primeiro prisioneiro político da era Trump/Musk. Em nome de uma suposta protecção aos judeus.

Milhares de judeus lutam contra isso, e depois da prisão de Mahmoud tomaram o átrio da Trump Tower, quase 100 foram presos. Camisas ou cartazes diziam: “Não Em Nosso Nome”, “Nunca Mais É Para Toda a Gente”, “Parem de Armar Israel”, “A Oposição ao Fascismo É Uma Tradição Judaica”, “Liberdade para Mahmoud, Liberdade Para a Palestina”. Recusam, assim, serem os judeus úteis de Trump, as vassouras da dissidência. Porque a Trump — avisam biógrafos — não interessam os judeus. A Trump, narciso colossal, interessa Trump, a sua glória, a sua estátua de ouro no mundo. Os reféns interessam-lhe (felizmente para vários libertados) como o anti-semitismo lhe interessa: enquanto for útil.

E nada alimenta tanto o anti-semitismo como o Estado de Israel, hoje a maior ameaça para os judeus do mundo. Quase como se um anti-semita estivesse a puxar os cordéis por trás de Israel. Se alguém montasse uma conspiração não faria melhor. Israel é detestado nas ruas do mundo: eis o desfecho do sionismo. Os judeus dos nazis e de há séculos — os perseguidos, os exterminados — são hoje os palestinianos. E toda a gente que esteja com eles, de Berlim aos EUA, está sob mira, ou já atacado. Porque judeus, palestinianos e quem quer que os defenda são ratos de laboratório para o Grande Irmão.

4.Entrámos na segunda semana de Março com dezenas de milhares na Cisjordânia a deambularem por montanhas de lama e entulho, sem terem para onde ir em pleno Inverno, porque Israel acaba de lhes destruir as casas. Enquanto em Gaza continua a impedir toda a entrada de comida e ajuda. “Isto não é um cessar-fogo. É um abrandar da violência militar mas a morte pela fome”, disse Michael Fakhri, relator da ONU para o Direito à Alimentação. Ao mesmo tempo que o Conselho de Direitos Humanos da ONU apresentava uma investigação: Israel cometeu “actos genocidas” em Gaza, atacando a saúde materna, neo-natal, reprodutiva; e pratica violência sexual e de género, incluindo violação. Ontem vi o testemunho de um palestiniano a quem os soldados urinaram em cima e violaram com um pau. Mais um.

Antes, tinha visto o directo que o “Democracy Now” (um tesouro do jornalismo audiovisual) conseguiu fazer com dois médicos voluntários no Nasser Hospital de Khan Yunis, Gaza. Um deles, Mark Perlmutter, é judeu americano. Já o tinha ouvido dizer que a sua experiência de 40 missões em 30 anos, toda somada, “não se compara com a carnificina” que viu na primeira semana em Gaza, as crianças desfeitas, ou atingidas com precisão no peito pelos “melhores snipers do mundo”. E agora contou o que aconteceu com um seu colega palestiniano cirurgião ortopédico de crianças, levado pelas tropas de Israel em Fevereiro de 2024, libertado há pouco. Partiram-lhe os dedos, danificaram os nervos das mãos com que opera, mostraram-lhe fotos da esposa dizendo como a iam violar em grupo se ele não admitisse ser do Hamas. Onde estão os médicos de Israel? Que juramento fizeram?

Entretanto, a palestiniana Educational Bookshop, em Jerusalém Oriental, foi de novo invadida pela polícia, que desta vez deteve Imad Muna, 61 anos, a quem comecei por comprar cadernos e jornais há mais de uma geração. Na pilha dos livros confiscados estavam Joe Sacco, Rashid Khalidi, Noam Chomsky, Ilan Pappé.

Lembro-me da indignação de tantos liberais por se mexer em livros em nome do politicamente correcto: subscrevo, sempre estarei contra. E agora, que não é um parágrafo, é mesmo a caça às bruxas, é mesmo o Grande Irmão: vão defender a liberdade?

A propósito de Daniel Day, com os pés em chaga no Big Ben, também pensei nos vendilhões do Templo. E hoje mesmo li que Israel e os EUA tentaram vender os palestinianos de Gaza ao Sudão e à Somália.

Gaza é o marco do nosso tempo. Nunca mais desde o rio até ao mar.

*Esta coluna para aqui por tempo indeterminado.

https://estatuadesal.com/2025/03/16/o-grande-irmao-ja-esta-aqui-da-policia-alema-aos-eua-a-usar-os-judeus-como-arma/
https://www.publico.pt/2025/03/15/mundo/cronica/irmao-ja-aqui-policia-alema-eua-usar-judeus-arma-2126063

segunda-feira, 10 de março de 2025

Karla Pisano - 8 de Março: Contaram-nos a história errada


 
* Karla Pisano

Lembro-me de quando no secundário os professores nos falavam sobre a origem do dia 8 de março. Contaram a história das 140 trabalhadoras que morreram num incêndio numa fábrica de camisas em Nova Iorque. Portanto, a origem do “Dia Internacional da Mulher” foi nos Estados Unidos e a sua declaração oficial veio da ONU em 1975. Nada poderia estar mais longe da verdade; Nem os Estados Unidos, nem a ONU, nem o “Dia da Mulher”. Foi em 1910, na Conferência Internacional das Mulheres Socialistas realizada em Copenhaga (criada em 1907 e que reuniu as mulheres da II Internacional) que, por proposta de Clara Zetkin, se decidiu por unanimidade celebrar o Dia Internacional da Mulher Trabalhadora. Em 1917, o dia 22 de fevereiro foi comemorado na Rússia, dia em que se iniciou a Revolução de Fevereiro, e mais tarde, com a alteração do calendário, os soviéticos decidiram instituir o dia 8 de março como o Dia da Mulher Trabalhadora. Com a ajuda de grupos socialistas, o dia espalhou-se por diferentes países. O adjetivo “trabalhador” foi removido pela ONU em 1972 e não foi oficialmente celebrado nos Estados Unidos até 1992. História inócua não é história, portanto, esquecer ou retrabalhar a origem de uma data como esta é um bom exemplo do revisionismo a que a história do movimento operário foi sujeita. O feminismo de elite, uma vez institucionalizado, construiu uma narrativa que tenta apresentar a história da emancipação das mulheres como algo oposto à história da emancipação dos trabalhadores. O século XIX e grande parte do século XX testemunhariam a natureza conflituosa entre género e classe. Esta visão não é apenas historicamente falaciosa, mas politicamente prejudicial.

Em primeiro lugar, digo que é falacioso em termos históricos porque basta um olhar rápido para a história dos últimos dois séculos para perceber que alguns dos avanços mais importantes para a questão das mulheres trabalhadoras vieram de experiências e debates históricos dentro do movimento proletário. Claro que esta não é uma história isenta de contradições, avanços e recuos (como todos os processos históricos de mudança), mas isso não nos impede de deixar de reivindicar o extenso legado do movimento socialista no que diz respeito às mulheres trabalhadoras. Se a construção de uma frente de mulheres socialistas contra a dominação de género e pela constituição da mulher trabalhadora como sujeito político ativo em prol do socialismo não tivesse sido uma tarefa assumida pelo movimento proletário, como explicar então os seus primeiros contributos para a questão da mulher trabalhadora no capitalismo? Como explicar que muito antes de Simone de Beauvoir escrever O Segundo Sexo,  Augusta Bebel primeiro e Engels depois já tivessem publicado contributos para a crítica da família e da sexualidade. Se o socialismo não tivesse sido um elemento político importante entre as mulheres, como poderíamos explicar o aparecimento de líderes comunistas tão destacadas (não dedicadas exclusivamente ao trabalho feminino) como Rosa Luxemburgo, Klara Zetkin, Aleksandra Kolontái e Dolores Ibárruri? Como podemos explicar que uma “onda feminista” antes da Dama de Ferro Margaret Thatcher pudesse ser reivindicada como a mais famosa primeira-ministra mulher, em 1969 Sirimavo Bandaranaike, membro do  Partido da Liberdade do Sri Lanka , socialista não alinhado , foi eleita a primeira primeira-ministra mulher do mundo; onde e no atual Sri Lanka. Como podemos explicar que os primeiros partidos a assumir as reivindicações dos direitos laborais, políticos e civis das mulheres tenham sido os partidos socialistas, e que o primeiro governo a implementar algumas das medidas mais progressistas (o direito ao divórcio igualitário, a legalização do aborto, a criminalização da violação conjugal, etc.) tenha sido o governo bolchevique? Por outro lado, o papel de liderança que as mulheres trabalhadoras desempenharam nas sucessivas revoluções dá conta do seu potencial político emancipatório, enquanto sujeitos duplamente oprimidos: o papel das mulheres nas chamadas Marchas de Outubro, protestos contra a escassez de farinha que conduziram à Revolução Francesa; a participação indispensável das mulheres atrás das barricadas nas revoluções de 1848; ou os protestos das operárias têxteis de Petrogrado que conduziram à Revolução de Fevereiro.

Mas, como sabemos, estes ciclos revolucionários não foram capazes de superar a organização social que nos explora e oprime. Perante isto, o feminismo burguês apressou-se a declarar a morte política do projeto de emancipação universal; A “mulher” teve de se emancipar pelos seus próprios meios, como sujeito unitário interclasse. Isto leva a um divórcio cultural e político entre a luta pela emancipação das mulheres trabalhadoras e a revolução socialista, a par do enfraquecimento das opções socialistas. Depois das “quatro vagas feministas” creio que estamos em condições de dizer que a premissa introduzida pelo feminismo burguês era falsa: não há contradição entre a emancipação das mulheres trabalhadoras e a emancipação de classe, e o projecto feminista que preconizava a construção de um sujeito político de género desligado da luta de classes acabou por se tornar uma muleta necessária ao reformismo e a sua transformação não foi além do que a dominação de classe permitia. Assim, este movimento identificou-se com a defesa prioritária dos problemas que afligiam as mulheres mais abastadas (teto de vidro, políticas relacionadas com a identidade e a representatividade…), relegando sistematicamente para segundo plano as condições de vida da maioria das mulheres.

No dia 8 de março, nós, mulheres socialistas, temos um legado histórico a reivindicar, não como mera comemoração folclórica de um passado dissecado e dogmatizado, mas como testemunha do processo, inacabado, mas veemente, que nos recorda aquele axioma pelo qual nos reconhecemos nesta luta: Não há emancipação da mulher trabalhadora sem uma revolução socialista, mas também não há revolução socialista sem a emancipação da mulher trabalhadora. As mulheres trabalhadoras devem estar na vanguarda desta luta, não só porque o projecto de uma sociedade comunista contém as premissas necessárias para pôr fim à nossa dominação e exploração, mas porque sem nós não há emancipação possível.

FONTE   https://www.resumenlatinoamericano.org/2025/03/07/feminismos-8m-nos-han-contado-mal-la-historia/

https://osbarbarosnet.blogspot.com/2025/03/8-de-marco-contaram-nos-historia-errada.html

y Resumen Latinoamericano on 7 marzo, 2025

sábado, 8 de março de 2025

Zaíra Pires - Dia Internacional da Mulher Branca

? Zaíra Pires, Blogueiras Negras

Mais um 8 de março se aproxima e recebemos aquela enxurrada de chorume em nossas existências femininas nos “homenageando” por sermos delicadas, amorosas, resilientes, submissas, mães, esposas, damas na sociedade e amantes ardentes entre quatro paredes.


Todo esse repentino amor tem hora pra começar e acabar, durando o tempo do mês de março, da semana do 8 ou só desse dia mesmo, de acordo com o tanto de baboseira que cada um consegue produzir.

Nesse sentido, as mulheres homenageadas são sempre as mesmas: brancas, jovens, magras, ocidentais, cristãs e cisgêneras.

E para não perder o costume, nós, as pretas neuróticas, recalcadas, mal amadas e que veem racismo em tudo, vamos direcionar nossa crítica destrutiva ao bode expiatório da vez: a Riachuelo e sua campanha pela Semana da Mulher Brasileira 2014 (leiam ironia nas minhas palavras, por favor)

ver aqui o vídeo referido no artigo


Dia da Mulher Brasileira - Propaganda Riachuelo 03/2014

Como podemos ver no vídeo, a mulher brasileira padrão, essa do comercial, corresponde exatamente ao padrão médio da brasileira, afinal, somos majoritariamente brancas, loiras, com traços faciais finos e tão magras e altas como sílfides mitológicas. Uai, não somos?

E então que a presença negra no comercial é de uma mão que serve. Um corpo sem cara, que não consome, não tem vontades, sequer existe, apenas serve. Uma sombra semivivente que só se presta a apoiar a existência da sua senhora.

Sim, porque a mulher que deve ser homenageada na semana da mulher é aquela branca que trabalha fora, independente, bem resolvida, que limpa a casa, cuida dos filhos, serve ao seu marido e sempre está com as unhas feitas e a depilação em dia. Essa é uma super mulher que consegue viver seus rompantes de modernidade sem deixar de lado suas obrigações femininas. Essa merece ser louvada e ganhar um desconto nas compras da semana por cumprir suas funções com tanto esmero.

A preta que sustenta a família com seu salário do subemprego, que enfrenta 5 horas de ônibus sujeita a abuso sexual, que vê seu filho ser morto pela polícia, que morre por complicações aborto inseguro, que está fadada ao serviço doméstico desde sempre como se isso fosse inerente à sua existência, que suporta as investidas sexuais do patrão e do filho do patrão para não perder o sustento dos seus, que é a principal vítima de negligência na saúde pública, que deixa seus filhos sozinhos em casa pra cuidar dos filhos da patroa branca, que é a maioria entre as trabalhadoras do sexo, que não completa os anos básicos de estudo porque precisa sair para trabalhar, que tem que se virar em quinze para viver e ainda manter o sorriso no rosto, essa não merece as homenagens desse dia.

Na verdade essa mulher é a serviçal que deve se alegrar por ter a honra de ver seus braços pretos aparecerem na televisão.

Afinal, o que a Riachuelo nos diz com esse filme, e o que muitas outras nos dirão nessa semana, é que mulher negra consumidora é paradoxo, e já que ela não existe, porque deveria ser representada numa propaganda? Quem disse que preta tem dinheiro? Quem disse que preta compra alguma coisa? Quem disse que preta entende de publicidade?

Pois estamos aqui, consumidoras, pensadoras, cidadãs, formadoras de opinião, dizendo que esse comercial não nos representa. Durmam com esse barulho!

2014 03 08

http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=237240&id_secao=8

Viriato Soromenho-Marques - Na tempestade de fogo


Na guerra, mesmo os sobreviventes prosseguem um cruel combate. Entre culpa e redenção, para resgatar uma réstia de bondade humana dos campos de batalha.

* Viriato Soromenho-Marques


Na guerra da Ucrânia, os soldados dos dois lados, mortos e feridos, não têm direito à revelação completa dos nomes. A lista de baixas está transformada num segredo de Estado. A batalha que se trava nos jornais e nas televisões é de pólvora seca verbal. Que sabemos, verdadeiramente, sobre a experiência desses soldados, homens e mulheres, ucranianos e russos, dilacerados nesse inferno de fogo e sangue lavrando há quase três anos?


Para nos aproximarmos de uma resposta teremos de recuar à I Guerra Mundial (I GM). As semelhanças esmagam. Duas guerras de dominância industrial e tecnológica. Novas e antigas armas encontram-se reunidas num concerto letal, colocando o mais treinado e valente dos guerreiros numa situação de impotência e acaso perante o fogo de artilharia, o ataque de drones e mísseis, as minas, a investida dos tanques, o tiro furtivo dos snipers, o fogo de armas ligeiras, os ataques aéreos a distâncias que inibem qualquer defesa por antecipação. Na I GM não ameaçavam drones assassinos, mas imperavam os gases venenosos, banidos hoje dos teatros de operações. Na I GM, o combate desenrolou-se, a partir do final de 1914, numa linha contínua de fortificações, que, na frente ocidental, correspondia aos 750 km que vão do Mar do Norte até à fronteira franco-suíça. Na Ucrânia, a frente fortificada estende-se por mais de 1200 km. Nos dois conflitos a maioria das baixas é causada pela arma de artilharia. As condições dos combatentes nas trincheiras são, em ambos os casos, de enorme dureza, e os tempos médios de sobrevivência (sem algum tipo de ferimento), podemos alvitrar, serão de escassos meses.


Ernst Jünger
Para quem queira conhecer (e sentir) melhor a brutalidade do esforço que Kiev e Moscovo pedem aos seus soldados nesta guerra (nada comparável com as campanhas assimétricas travadas pelos EUA contra rivais muito inferiores) aconselho a leitura do melhor livro sobre a I GM: Tempestades de Aço (edição portuguesa de Guerra & Paz, 2023), da autoria do grande escritor alemão Ernst Jünger (1895-1998), na altura um jovem oficial, miraculosamente sobrevivente a quatro anos de combate contínuo, pontuado por catorze ferimentos graves: “Cinco tiros de espingarda, dois estilhaços de granada, uma bala de granada, quatro granadas de mão e dois estilhaços de projétil de espingarda” (p. 278). Em setembro de 1918, Jünger receberia a mais alta condecoração militar prussiana, Pour le Mérite, normalmente apenas atribuída a generais e marechais.


O livro baseia-se nas anotações dos seus diários de guerra. Nele se pratica um hercúleo exercício de distanciamento e objetividade, tratando a guerra como se fosse um cataclismo natural, semelhante a um sismo ou um furacão. A narrativa está povoada pelos nomes de companheiros mortos, por gratidão com camaradas que por ele deram a vida, pela lembrança de soldados inimigos, mortos pelas suas armas, ou por ele poupados. Entre 1920 e 1978, o livro conheceu sete edições, revistas parcialmente. Na última edição, Jünger, a propósito de um jovem soldado inglês abatido pela sua espingarda, acrescenta o seguinte: “Mais tarde, pensei nele muitas vezes, cada vez mais, com o decorrer dos anos. O Estado, que nos isenta da responsabilidade, não nos pode libertar da dor; temos de ser nós a lidar com ela. Ele penetra até às profundezas dos nossos sonhos” (p. 235). Na guerra, mesmo os sobreviventes prosseguem um cruel combate. Entre culpa e redenção, para resgatar uma réstia de bondade humana dos campos de batalha.

Diário de Notícias, 2025/01/03

https://azoreantorpor.wordpress.com/2025/01/04/


James Brown - I feel good (Good Morning Vietnam Soundtrack) 1988

Viriato Soromenho-Marques - PORTUGAL À DERIVA NA TEMPESTADE – quatro notas de leitura

Os EUA nunca acreditaram, ao contrário da ignara arrogância de Bruxelas, que a máquina de guerra russa poderia ser derrotada no plano convencional. Como o secretário da Defesa L. Austin afirmou, logo em maio de 2022, o objetivo dos EUA era o de fazer “sangrar a Rússia”, enquanto Kiev tivesse capacidade para o fazer.

* Viriato Soromenho-Marques


As grandes crises revelam os grandes líderes. Contudo, apenas quando os povos têm a sorte e a capacidade de os produzirem. A guerra da Ucrânia, que já entrou no seu quarto ano é, sem dúvida, a maior crise existencial de toda a história portuguesa, pois é a primeira vez que Portugal tem um governo que se deixou, com entusiástica estultícia, enrolar num confronto com a Rússia, totalmente contrário ao interesse nacional mais elementar, o salus populi suprema lex esto (seja a salvação do povo a lei suprema), imortalizado no De Legibus, de Cícero. Nem os fanáticos que queriam declarar guerra ao império britânico, na sequência do Ultimato de 1890, nem o furioso Afonso Costa, colocando Lisboa a ferro e fogo em maio de 1915 para enviar, por decisão unilateral, milhares de soldados analfabetos para a Flandres, se comparam à façanha do mesquinho consenso nacional que vai de António Costa a Rui Tavares, numa contemporânea demonstração da veracidade da tese de Unamuno que considerava ser Portugal um país de suicidas. O que continua em causa é a possibilidade de Portugal ser destruído num conflito total com a Rússia, o país com o mais poderoso e moderno arsenal nuclear do planeta.

Estamos a falar de acontecimentos vertiginosos, desde a chegada de Trump à Casa Branca. Vejamos, apenas, alguns das dimensões mais permanentes, neste quadro de incerta mudança.

Primeira. As negociações de paz, iniciadas por Trump com a Rússia, são boas notícias para os povos da Europa e do mundo. Afastam, pelo menos provisoriamente, o pior cenário, para onde estaríamos a rumar caso a linha de escalada bélica seguida por Biden tivesse prosseguido. Essas negociações, onde nem Zelensky nem a UE contam, revelam a justeza dos analistas, entre os quais me encontro desde sempre, que consideraram esta guerra como uma guerra de procuração (proxy war) dos EUA contra a Rússia, usando o território e o sangue ucranianos como instrumentos. Bruxelas protesta, porque Trump deixou cair o véu de Maia, a cortina ilusória, que fazia do apoio da UE à Ucrânia um assunto de direito internacional. Na verdade, tratava-se da prova de que os nossos governantes europeus não hesitam em sacrificar a qualidade de vida e a segurança dos seus povos, para servirem o império americano, e o seu desígnio persistente de fragmentar a Rússia. O caso mais aberrante de autoflagelação europeia é o da Alemanha, quando o governo de Scholz tudo fez para manter a lealdade canina com Washington, imolando para isso a qualidade de vida e a saúde económica do seu próprio país.

Segunda. As perspetivas de “paz imperfeita”, mil vezes melhor do que a continuação do conflito, só foram possíveis, para além das mudanças em Washington, pela clara superioridade militar das forças convencionais russas, apesar da valentia das tropas ucranianas e das correntes inesgotáveis de material bélico recebido dos países da NATO ao longo destes três anos. Os EUA nunca acreditaram, ao contrário da ignara arrogância de Bruxelas, que a máquina de guerra russa poderia ser derrotada no plano convencional. Como o secretário da Defesa L. Austin afirmou, logo em maio de 2022, o objetivo dos EUA era o de fazer “sangrar a Rússia”, enquanto Kiev tivesse capacidade para o fazer. No cenário, altamente improvável, de as tropas de Kiev com o apoio de “voluntários” ocidentais se aproximarem de uma derrota das forças convencionais russas, Moscovo não se renderia. Faria o que a sua doutrina há décadas promulga: escalaria ao uso limitado do nuclear, para obrigar o inimigo a pensar duas vezes antes de prosseguir até à guerra total. Por outras palavras, a vitória convencional e limitada da Rússia, parece ter salvo os povos da Europa de serem vítimas da irresponsabilidade estratégica dos seus dirigentes.

Terceira. A paz que está a ser negociada só poderá ser duradoura se se traduzir num tratado que defina as regras do jogo no sistema internacional europeu, pretensão que a Rússia sempre perseguiu, mesmo desde os tempos de Gorbachev. Há, contudo, dois obstáculos no caminho. Por um lado, aquilo que prevalece no discurso europeu (com apoio da administração Trump) é a ideia de a UE fazer da corrida armamentista o novo objetivo estratégico (rasgando e substituindo o famoso Pacto Ecológico, onde a minha derradeira credulidade se esgotou). A Rússia jamais permitirá que uma nova guerra seja preparada à sua vista, sem nada fazer. Por outro lado, Trump está a jogar perigosamente não só com os seus aliados, mas também com o próprio aparelho de Estado federal e com alguns dos poderosos interesses nele instalados. Considero bastante provável que um atentado contra Trump, desta vez bem-sucedido, possa desencadear uma segunda guerra civil americana, cujas consequências são totalmente imprevisíveis.

Quarta. Só um milagre poderia impedir as forças centrífugas dentro da UE de prevalecer. Não sei quanto tempo ainda teremos antes de este edifício, cheio de fissuras, nos tombar sobre a cabeça. A zona Euro, totalmente dependente de Wall Street e da Reserva Federal, irá contribuir para que governos e povos fiquem paralisados à espera do pior. Curiosamente, os furiosos governos anti-russos do Leste da Europa, darão, provavelmente, lugar a novos governos favoráveis à colaboração com Moscovo. A UE será a grande vítima da guerra da Ucrânia. Os insensatos que em Bruxelas abraçaram uma política totalmente oposta às realidades históricas e geopolíticas da Europa, serão, pelo menos, testemunhas do imperdoável caos em que nos fizeram mergulhar.

(Publicado no Jornal de Letras, edição de 5 de março de 2025)

Post scriptum. O artigo acima foi escrito antes da famosa “disputa” de Zelensky contra Trump e toda a sua equipa na Sala Oval, no dia 28 de fevereiro de 2025. Aconselho os leitores do Azorean Torpor a visionarem o filme completo (49’47’’), antes de fazerem coro com a transformação de Zelensky numa vítima heróica. Fazer um juízo a partir da parte final dessa conversa, satisfaz o alinhamento manipulatório que foi dado na Europa a essa longa conversa. Também não tenho simpatia por Trump, mas reconheço que existe um esforço sério da sua administração para acabar com esta guerra, em absoluto contraste com a corrida para o confronto total com a Rússia a que nos conduziria a continuação da política de Biden e Blinken. Pelo contrário, Zelensky aproveitou a amabilidade dos seus anfitriões norte-americanos para mostrar, perante um auditório universal, a sua total oposição a esse processo de paz. Para um cidadão europeu, ao fim de três anos de guerra, não perceber onde é que está o nosso interesse vital, preferindo o discurso de ódio ao discurso da via diplomática, significa até que ponto chagámos na Europa a um lamentável estado de degradação da nossa capacidade coletiva e individual de distinguir entre o que é essencial e o que é perigosamente ilusório.

2025 03 06 

https://azoreantorpor.wordpress.com/2025/03/06/

Jailme Nogueira Pinto - A Europa e a decadência,

 Opinião

* Jaime Nogueira Pinto

DN 07 Mar 2025, 00:27

Por vezes a resposta à realidade desagradável é ignorá-la; outras vezes é passar a tratá-la ao modo de Cruzada contra o Mal, o mal absoluto, contra o qual vale tudo; e nessa narrativa alternativa, concentrar tudo o que possa contraditar a realidade, usando argumentos laterais, colaterais, formais, por importantes que sejam, mas fugindo ao cerne da questão.

É este o juízo que me parece mais próprio, vendo o alheado agitar, esbracejar e passarinhar dos líderes europeus para longe do centro da intriga (o almejado fim do conflito Rússia-Ucrânia), perante a nova Administração americana e o seu dilúvio diplomático e executivo.

Em vez de caírem na realidade e nas consequências da realidade, “os europeus”, ou seja, essencialmente o duo Macron-Stamer (a que Merz ameaça juntar-se), continuam em manobras de diversão que, além de inconsequentes, se podem tornar perigosas.

Isto porque a Europa mudou neste último século. A Europa foi o centro do poder e da economia mundial até à Grande Guerra de 1914-1918. E saiu da guerra com os impérios alemão e austro-húngaro vencidos e desfeitos e com o vizinho império otomano também vencido e esfrangalhado.

Entretanto, na Rússia, dera-se uma revolução radical de esquerda, utópica e marxista, que praticava e prometia o genocídio de classe. Uma revolução que, posta em marcha, ameaçava a Europa, onde vários Estados - da Itália fascista ao Portugal da Ditadura Militar - adoptaram soluções autoritárias.

Para vencer a Alemanha, os aliados franco-britânicos tinham trazido os norte-americanos que, com o presidente Wilson, um cruzado da democracia mundial com nostalgias sulistas, quebravam o isolacionismo dos Founding Fathers e de Monroe.

Na Segunda Guerra passou-se algo semelhante; outra vez, contra uma forte corrente isolacionista, liderada pelo então “herói americano” Charles Lindbergh e pelo seu movimento America First, F.D. Roosevelt, depois de os japoneses atacarem Pearl Harbour, conseguiu levar a América para a guerra. E outra vez os americanos - com os russos de Estaline a vir do Leste atrás dos invasores hitlerianos - desembarcaram na Europa e resgataram os Ocidentais, vencidos e ocupados pelos alemães.

Estas “guerras civis europeias” - fosse qual fosse a sua justiça e sentido - além de causarem grandes destruições humanas, materiais e morais, marcaram o fim do mundo eurocêntrico. Na verdade, para ganhar a guerra e lograr o concurso dos seus colonizados no esforço de guerra contra a Alemanha e o Japão, os Aliados tiveram de lhes prometer o autogoverno. Nem de outro modo podia ser. Os impérios ultramarinos iam ser a principal vítima colateral da nova ordem mundial, redigida e fixada na Carta das Nações Unidas. E a Europa vencida, constrita e ocupada, iria avançar com projectos de união aduaneira e económica e até, para algumas elites políticas e tecno-burocráticas, de união e federação, sonhando e copiando o que acontecera nos Estados Unidos.

E face ao perigo comunista, que ocupara uma série de países da Europa Oriental, confiou-se com gratidão no amigo americano, a nova superpotência que, arcando com a defesa comum, libertava aos europeus recursos para, em democracia, construírem o Estado Social.

É isso que, agora, pode estar para acabar: os Estados Unidos não vão abandonar a NATO nos próximos tempos, mas também não parecem dispostos a tolerar o jogo duplo dos que vão a Washington ao beija-mão, mas bloqueiam a paz; dos que falam em rearmamento, mas se encolhem quando se trata dos seus filhos ou do seu dinheiro; dos que mandam os outros fazer peito aos poderosos e depois estender-lhes a mão.

Politólogo e escritor

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

https://www.dn.pt/opiniao/a-europa-e-a-decad%C3%AAncia?utm_source=website&utm_medium=related-stories

sexta-feira, 7 de março de 2025

Manuel Loff - O Comodoro e as coisas



* Manuel Loff


Verdade se diga que o país era pequeno, bem pequeno mesmo. Era o que ele lembrava aos seus compatriotas desde que, chegado à Presidência, enxotava os escrevedores de discursos que havia no Palácio. Ele por ele tinha “fome de vencer e sou muito ambicioso e não gosto de perder.” Mas o país que aprendesse a trabalhar, porque isto de “distribuir a riqueza inexistente, que não produzimos”, não podia ser!

Triunfara contra dois figurões dos velhos partidos. Pelo Partido Alcrata (popularmente conhecidos como “alcatras”), o comendador Parques Tendes, que se achava velha raposa dos tempos idos do professor Tamanco. No Partido Lista, como era habitual, não se tinham entendido, ofuscados muitos deles pelo brilho do uniforme do Comodoro, com quem se tinham dado tão bem. De entre eles, em bicos de pés, lá fizera o seu número o soporífero Dr. Apólice.

Foi a desgraça para eles. O Comodoro resolveu tudo logo à primeira volta. Irritara-se, isso sim, com o palavroso Porventura. O Comodoro tratava-o como quem trata um aspirante; todos conheciam os pedagógicos raspanetes públicos que gostava de dar aos praças. Mas sabia que precisava dele para livrar-se dos velhos partidos. E ainda por cima, o outro tratava-o com o mesmo grau de reverência com que despachava despautérios contra o resto do mundo. O Comodoro achava que o tinha posto na linha.

 Depois veio o rearmamento, o serviço militar obrigatório e a crise. O país era pequeno, tinha de poupar, a guerra vinha aí, e de guerras sabia ele. “Tempos de emergência” tinham chegado; aliás, a vida devia ser vivida toda ela como uma emergência, único meio ambiente no qual um povo desleixado compreende o seu dever. Chamou-se os constitucionalistas. Disse-lhes o que queria. Presidencialismo, o único regime das nações dignas desse nome. E que se reduzisse o número de deputados, 70 chegavam muito bem. Poucos mas bons. Os listas e os alcatras balbuciaram algumas dúvidas mas disseram que sim. Afinal, explicou-lhes o Comodoro, os tempos eram outros, e todos estavam de acordo que “já não estamos em 1975!”, a frase preferida dos comentadores. O Porventura disse que nunca tinha querido outra coisa, pudesse o Comodoro dar-lhe uma chance para demonstrar a sua valia no governo.

 Numa comemoração do 25 de Novembro – cuja passagem a feriado nacional o Comodoro aplaudira -, o Presidente fardado (por que não podia ele usar a farda como presidente?) apresentou o projeto. Os poucos deputados da esquerda abandonaram a sala. Vários cantavam uma canção sobre uma “vila morena”. O Comodoro queixou-se de “falta de respeito!”. Estava na altura de os pôr na ordem. O Porventura foi o primeiro a levantar-se para o aplaudir. “Sempre à disposição do senhor Comodoro para limpar a Pátria!”, garantiu. O Comodoro sorriu. Achou que o tinha no bolso. O Porventura achava que era ele que tinha o Presidente no bolso. Coisas da política, eles lá saberiam.

Depois, veio a guerra com a China. E mais austeridade. Agora assumia-se que era mesmo austeridade, e que tinha de ser. Quando começaram as greves, o Comodoro disse “Basta! Isto assim não pode ser!”, e a imprensa aplaudiu a linguagem genuína, a voz de comando, o caráter decidido! Impôs o estado de emergência, coisa que o país já conhecia. Explicaram-lhe que tinha de ser só por 15 dias e que depois havia que perguntar aos deputados se podia ser por mais tempo. “Claro que tem de ser, ou os senhores deputados acham que as guerras têm calendário?!” Fizeram-lhe a vontade. Proibiram-se as greves nos serviços públicos. Ele, militar, a servir a Nação, nunca tinha feito uma greve, por que haveriam os outros poder fazê-la?
 
E agora era assim. Como dizia o ele, no seu habitual “Colóquio à Lareira” pela televisão: “Para a frente, compatriotas! A pátria nos contempla e o passado nos espera.”

2025 03 05

https://www.publico.pt/2025/03/05/opiniao/opiniao/comodoro-212469

Carlos Ferro - A LÍNGUA PORTUGUESA DE RASTOS - Preguiça linguística ou um “elefante na sala”?



Carlos Ferro* | Diário de Notícias, opinião

Há em Portugal uma nova moda entre as crianças: não usam o verbo principal quando falam. Os exemplo são vários e há diversas opiniões e alertas sobre a situação que pode vir a ter consequências mais tarde.

“Professora, posso água? Posso bolachas?”. Estes são dois exemplos que a jornalista Cynthia Valente apresentou no Diário de Notícias no trabalho onde ouviu pais, professores e um psicólogo sobre este fenómeno que se está a tornar num “elefante na sala”, não só nas casas das famílias como nas escolas.

Chegados aqui, qual a explicação para tal e quais as consequências futuras para estes alunos do 1.º ciclo - o fenómeno está a ser mais detetado neste período escolar?

Parece que há várias justificações. Uma são os vídeos curtos a que as crianças e adolescentes assistem diariamente e que acabam por transmitir a ideia que qualquer conversa pode ser tida com pequenas frases, mais ou menos completas. Talvez seja a versão 2.0 do ditado “para bom entendedor meia palavra basta”.

Outra explicação passará pelo facto de as famílias falarem pouco entre si, ou seja, os pais devem ter uma maior interação com os filhos - e voltamos ao muito falado uso excessivo do telemóvel - e corrigi-los sempre que não completem as frases.

Uma terceira razão para esta “evolução” é o “mundo acelerado” em que vivemos como frisou ao DN, no trabalho já referido, Alberto Veronesi, professor do 1.º ciclo e diretor do Agrupamento de Escolas de Santa Maria dos Olivais. Disse este responsável que “a comunicação é geralmente rápida e eficiente e, assim sendo, as crianças sentem que as frases completas são desnecessárias para se fazerem entender”.

No entanto, agora que já se detetou esta “preguiça linguística” talvez seja o momento de os estudiosos da Educação e os responsáveis do setor verem como se pode/deve lidar com esta supressão verbal para que mais tarde os jovens adultos e adultos não sintam dificuldades numa sociedade cada vez mais comunicacional. E, já agora, para tentarmos, como País, melhorar nos rankings que vão sendo conhecidos e nos quais Portugal não está a ter boa figura.

* Editor executivo do Diário de Notícias

Nota PG: Em nossa observação e opinião não é só nas escolas do ensino básico que se fala e escreve mal a língua portuguesa em Portugal. Um grande mau exemplo temo-lo em vários canais de televisão e de rádios. Eles 'comem' palavras e dizem profusamente TÁ em vez de está, TAMOS em vez de estamos BORA em vez de embora, etc., etc,. e assim consecutivamente. Além disso usam e abusam da língua anglófona misturada com frases em português. A comunicação social - principalmente - nos comentários e em notícias - é completamente assucatada via  'angloportufonês'. Uma vergonha, principalmente naquelas profissões rádio-televisivas faladas. Não são crianças do ensino básico mas sim jornalista 'dótores' que mais parecem estar a falar mau português em conversas de café ou numa chungaria muito rasca. Esses maus exemplos são imensos. E o assunto devia de ser aprofundado e dar-lhe combate. A língua portuguesa é linda e muito completa mas não, comprovadamente, para as atuais gerações 'modernas e estrangeiradas' que não se exprimem em língua de 'peixe nem de carne' mas sim em expressões bárbaras todas misturadas e chafurdadas. São esses o setor principal de aplicação do mau português que se fala em Portugal. Está por saber qual será a Pátria desses 'maduros e maduras' tão 'calinosos' a falar em português.

at março 07, 2025 
https://paginaglobal.blogspot.com/2025/03/a-lingua-portuguesa-de-rastos-preguica.html

Carlos Coutinho - Terras raras


 
 




» Carlos Coutinho
  
DIZ quem sabe que, na conjuntura atual de equilíbrios políticos instáveis, os noticiários e os comentadores políticos passaram e integrar no seu léxico o termo “terras raras”, sem um conhecimento mínimo do que isso significa e muitas vezes até com dificuldades em pronunciar os nomes desses elementos químicos, olhados como estranhos e “objetos de cobiça”, representando assim “moedas de troca valiosas”

O que é facto é que as terras raras constituem “um conjunto de 17 elementos químicos da Tabela Periódica: os 15 lantanídeos – do lantânio (La) au lutéc io (Lu) –, mais o ítrio  e o escândio (Sc), que possuem propriedades químicas semelhantes. (…) A produção mundial de óxidos de terras raras foi aproximadamente 350 mil toneladas métricas em 2023. Apesar do nome, muitas terras raras não são tão raras assim, mas estando os seus depósitos principais e a sua produção mundial concentrados na China, esles são estratégicos para as necessidades tecnológicas mundiais”.

Quem isto diz são os professores universitários José Moura (Coimbra) e Carlos Geraldes (Nova de Lisboa), in “Público” (26.2.2025) que logo explicam:

“As terras raras apresentam vários estados de oxidação e são metais reativos especialmente quando em pó. A maioria tem comportamento químico parecido, o que dificulta a sua separação, e reagem facilmente com oxigénio, formando óxidos estáveis. Muitas aplicações específicas, resultantes das suas propriedades magnéticas e luminescentes, cruciais para a manufatura de muitos produtos para a alta tecnologia, tornam as terras raras muito apetecíveis na química e na indústria, sendo em geral denominadas materiais tecnológicos. 

“Enumeramos aqui as aplicações mais relevantes: em materiais supercondutores (neodímio e samário; na preparação de catalisadores químicos usados na indústria automóvel (cério e lantânio): em lasers (neodímio e ítrio); em motores magnéticos usados em turbinas eólicas e componentes de automóveis (neodímio e dispósio, o Dy); em luminóforos (európio e térbio) usados em telas e lâmpadas LED; em ligas metálicas (lítrio e escândio): e no desenvolvimento de materiais resistentes aplicados baterias e dispositivos eletrónicos (disprósio, praseodímio, ou Pr); em fibras óticas (´´erbio, ou Er) e células fotovoltaicas, por exemplo, em painéis solares (itérbio).

“O design a funcionalidade de smartphones, a nitidez dos seus altifalantes, microfones e dispositivos de vibração são possíveis graças à incorporação de150 a 250 miligramas de nove destes elementos, por exemplo, em motores e ímanes pequenos e potentes que são fabricados com neodímio e praseodímio. Deste modo, as terras raras são essenciais para o crescimento de tecnologias verdes, tais como veículos elétricos e conversão de energia solar e eólica, bem como telecomunicações, etiquetas de segurança (códigos QR)m, cirurgia e imagens médicas e na indústria de defesa.”

Tenho de parar aqui na citação, porque se trata de ingredientes indigestos. Basta-me lembrar que são tudo coisas em que a Europa é muito pobre e os EUA também. 

Ora, nisto como em tudo, só é cego quem não quer ver, podemos perceber, além do mais, quem inspirou, financiou e mantém a guerra da Ucrânia, com o nosso inefável Costa abraçado a Ursula van der Leyen, generais-chefes da NATO, Netanyahu e Zelensky.


2025 03 07
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quinta-feira, 6 de março de 2025

Zelensky na Ucrânia

Saiba quem é Volodymyr Zelensky e a verdadeira história da Guerra da Ucrânia com a Russia. 

Durante anos, ele foi aclamado como um herói. Para alguns, ele ainda é. Agora ele está exposto.

Aqui está a história da Ucrânia e de Volodomyr Zelenskyy que você não ouvirá da mídia. 

Zelenskyy nunca teve as cartas. Ele não é um líder corajoso dando as cartas. Ele é um homem desesperado, agarrado ao poder em um regime em colapso — apoiado por dinheiro, armas e propaganda ocidentais. E com a Ucrânia perdendo a guerra de relações públicas e a guerra real, ele está em pânico. 

A Ucrânia não foi um ator independente nesta guerra. Os verdadeiros corretores de poder estão em Washington, Bruxelas e Londres, jogando seus jogos geopolíticos.

Esta guerra foi planejada para enfraquecer a Rússia. Para entender isso, você precisa entender a história que eles nunca lhe contarão.

Ucrânia e Rússia estão unidas há mais de 1.000 anos. Kiev, a capital da Ucrânia, outrora o coração da Rus de Kiev — o primeiro grande estado eslavo — lançou as bases para a própria Rússia. O próprio nome Ucrânia significa "fronteira" — o que significa a fronteira da Rússia.

Por séculos, foi parte integrante do Império Russo, não uma nação "oprimida". Mesmo durante a era soviética, a Ucrânia não foi ocupada — era central para a URSS. Até o líder soviético Nikita Khrushchev era ucraniano.

Quando a URSS(União Soviética) entrou em colapso, a Ucrânia se tornou independente e Washington interveio — não para ajudar a Ucrânia, mas para armá-la contra a Rússia.

Os EUA e a OTAN mentiram para Gorbachev, prometendo que não se expandiriam "nem um centímetro para o leste". No entanto, a OTAN entrou na Polônia e nos Estados Bálticos.

A Ucrânia era o prêmio máximo da OTAN.

O Ocidente despejou bilhões na Ucrânia, financiando grupos políticos pró-OTAN, ONGs e mídia para fabricar um estado antirrusso.

Em 2004, a CIA apoiou a "Revolução Laranja", anulando uma eleição que favorecia um candidato pró-Rússia.

O verdadeiro golpe veio em 2014.

O presidente democraticamente eleito da Ucrânia, Viktor Yanukovych, rejeitou um acordo comercial da UE que teria destruído a economia da Ucrânia. Isso era inaceitável para Washington. Então, eles o removeram por meio de uma revolução colorida fabricada.

A chamada "Revolução Maidan" não foi um movimento popular. Foi um golpe apoiado pela CIA, orquestrado por autoridades como Victoria Nuland. Washington era tão descarada que Nuland foi pega em uma ligação vazada, escolhendo a dedo o próximo líder da Ucrânia antes Yanukovych havia partido. 

As multidões violentas que tomaram Kiev não eram manifestantes pacíficos. Eram líderes por grupos neonazis como o Batalhão Azov, grupos que celebram abertamente os colaboradores nazistas e usam insígnias das SS.

Esses mesmos grupos recebem agora armas ocidentais.

O regime pós-golpe proibiu então a língua russa, atacando diretamente milhões de ucranianos russófonos no leste.

Foi então que Donbass e Crimeia disseram basta. A Crimeia realizou um referendo — mais de 90% votaram pelo regresso à Rússia. O Donbass também votou pela independência.

O povo do Donbass rejeitou Kiev, mas Kiev não saiu de lá. Em vez disso, iniciaram uma guerra brutal contra o seu próprio povo, bombardeando civis durante oito anos. Onde estava a indignação ocidental? Em lado nenhum! 

E o que Zelensky disse? Quem é ele? É um líder orgânico que surgiu do nada ou foi instalado?

O Covert Action noticiou que, em 2020, Zelenskyy se encontrou secretamente com o chefe do MI6, Richard Moore. Porque é que um presidente estrangeiro se reuniu com o principal espião do Reino Unido em vez do seu primeiro-ministro?

Zelenskyy é um ativo do Reino Unido? Segundo os relatos, é protegido pessoalmente pela segurança britânica, e não pela ucraniana. Quando visitou o Vaticano, desprezou o Papa e encontrou-se com um bispo britânico. Adivinha quem mais estava lá? Richard Moore do MI6 novamente! Que coincidência.

Antes da política, Zelenskyy foi comediante e ator, interpretando literalmente o presidente num programa de TV. Depois, com a ajuda das equipes de relações públicas ocidentais, a ficção tornou-se realidade.

A sua campanha foi financiada pelo oligarca Ihor Kolomoisky, dono da maior empresa petrolífera e do banco da Ucrânia.

Uma vez no poder, a prioridade de Zelenskyy não foi combater a corrupção, mas sim garantir que a BlackRock e os bancos ocidentais assumissem o controlo da economia da Ucrânia.

Entretanto, canalizou milhões para contas no estrangeiro e adquiriu uma mansão de 34 milhões de dólares em Miami, bem como um apartamento de várias libras em Londres.

Em 2022, a NATO tinha armado a Ucrânia até aos dentes, e Kiev tinha forças reunidas perto do Donbass.

A Rússia tinha uma escolha: Deixar o Donbass enfrentar a limpeza étnica;

Deixe que a NATO transforme a Ucrânia numa base militar;

Ou, Intervir.

Intervieram, tal como outras nações fariam nessas situações.

A comunicação social relatou “invasão não provocada”. Mas a expansão da NATO, o golpe de 2014, oito anos de guerra no Donbass — esta guerra foi provocada a cada passo.

A Ucrânia foi colocada como um peão.

Com a derrota da Ucrânia, Zelenskyy está abandonado. Donald Trump disse-lhe: “Não tem as cartas.” Ele tem razão. Esta guerra foi planejada. A Ucrânia precisava da intervenção ocidental para vencer e isso significaria que a Terceira Guerra Mundial seria/poderia ser inevitável. 

É hora de o mundo acordar para essa realidade.

A guerra na Ucrânia foi provocada deliberadamente pelo Ocidente. Zelenskyy é apenas mais um fantoche – o seu tempo está a esgotar-se... e Trump sabe disso.

A questão é: você vê a verdade agora? Ou você ainda o vê como um herói?

2025 03 06

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Carlos Branco - O pacto com o diabo

 No Ocidente passou a ser pecado falar de neonazis na Ucrânia, dando-se início à maior campanha de branqueamento de um regime político realizada até hoje.

Carlos Branco, Major-General
2025 03 06

O tema ganhou uma renovada acuidade quando o presidente Donald Trump apelidou o seu congénere ucraniano de ditador. Independentemente do rigor das palavras usadas por Trump importa perceber qual é a verdadeira natureza do regime presentemente instalado em Kiev. Segundo a Varities of Democracy, uma organização de elevada credibilidade académica, que estuda o tema dos regimes políticos a nível mundial, considera a Ucrânia uma autocracia eleitoral, portanto, longe de ser uma democracia plena. Embora não se pretenda com este artigo fazer incursões teóricas no domínio da ciência política, ele apresenta alguns factos que podem ajudar o leitor a fazer uma apreciação do tema mais informada.

Para uma melhor compreensão dos factos e com o intuito de facilitar a sua leitura e sistematização, consideraram-se neste trabalho quatro períodos distintos: desde a independência (1991) até à vitória de Viktor Yanukovych (2010); durante a presidência Yanukovych (2010 – 2014); desde o golpe de Maidan (2014) até à eleição de Zelensky (2019), e desde a eleição deste até aos dias de hoje. Por questões de parcimónia, iremos, fundamentalmente, concentrar-nos no último período.

O aparecimento na Ucrânia, à luz do dia, de organizações ultranacionalistas teve lugar no primeiro período, acelerando após a revolução laranja (2004) e a chegada ao poder de Viktor Yushchenko que, por exemplo, em 2006 reabilitou a organização nacionalista ucraniana OHH UN, responsável pela execução de cerca de 100 mil polacos e judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Nessa sequência, em 2010, pouco antes de abandonar a presidência, Yushchenko concedeu o título de Herói da Ucrânia aos líderes da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) Stepan Bandera e Roman Shukhevych (22 de janeiro).

Durante a presidência de Yanukovych houve uma pausa nessa política de estado, com a anulação do título de herói da Ucrânia concedido por Yushchenko. Mas, isso não impediu que esses grupos continuassem a proliferar. Por exemplo, em 2013, nasce a Misanthropic Division, uma rede internacional neonazi cujo dirigente Dmytro Kanuper foi condecorado pelo parlamento dinamarquês, em 2024, como um combatente pela liberdade, o mesmo que tinha o Mein kampft como a sua leitura preferida; ou, a trasladação (21 de julho de 2013) por ativistas da organização ucraniana Pamiat (Memória) dos restos mortais de soldados ucranianos que combateram na Divisão SS “Galicia”.

O golpe de estado arquitetado pelos EUA no início de 2014 – numa audição no Congresso norte-americano, Vitória Nuland confessou terem sido gastos, desde 1991, cinco mil milhões de dólares em ações subversivas na Ucrânia – foi executado com a colaboração ativa destes grupos. Não é, por isso, de estranhar ver Oleg Tyanibok, um confesso nazi líder do Svoboda, uma organização de extrema-direita, impedido de entrar nos EUA devido às suas opções políticas, ser reabilitado e aparecer ao lado do falecido John McCain.

Em 2014 realizaram-se eleições presidenciais (25 de maio) e legislativas (25 de agosto). Nas primeiras concorreram 21 candidatos e nas segundas 29 partidos, num ambiente de grande hostilidade relativamente às forças não apoiantes do novo regime. O Partido das Regiões que tinha ganhado as eleições em 2010 não teve condições para concorrer às eleições legislativas, apesar de ter apresentado um candidato às presidenciais. O sistema marginalizou e absorveu os partidos pró-russos influentes. Nesse ambiente iniciaram-se as perseguições e o assédio a jornalistas e opositores ao regime.

Petr Poroshenko, presidente, entretanto, eleito, vem dizer, num tom “conciliador” que os “ucranianos terão empregos, eles [os russos] não; nós teremos pensões, eles não; as nossas crianças irão para as escolas e jardins de infância, as deles terão de se esconder em caves.” Iniciam-se os ataques indiscriminados às populações russófonas do Donbass por milícias ultranacionalistas, com a anuência do governo, recorrendo ao bombardeamento intensivo de áreas residenciais. Tornaram-se triviais as procissões destes grupos pela Avenida Moscow Prospect, redenominada Avenida Bandera Prospect, com archotes, em datas simbólicas.

Poroshenko toma medidas para diminuir a relevância social da língua russa e da Igreja Canónica Ortodoxa. Em 2017, foi aprovada uma lei que proibia o uso do russo no sistema de ensino. Em dezembro de 2018, foi criada a Igreja Ortodoxa da Ucrânia (OCU), independente da igreja canónica ortodoxa, alinhada com Constantinopla, cujos sacerdotes não só subscrevem a ideologia dos setores politicamente mais radicais do espetro político ucraniano, como homenageiam publicamente colaboradores nazis, personagens como Stepan Bandera.

Neste período generalizaram-se as punições públicas extrajudiciais dos chamados marauders, uma forma de justiça popular, “em que pessoas são atadas a árvores e postes com fita-cola, com as calças ou saias baixadas e as nádegas fustigadas com chibatas e varas.” Estas práticas sociais passaram a ser dirigidas contra quem se suspeitasse ser russófilo. Bastava ser ouvido pela “polícia de costumes” a falar russo ao telemóvel. Em 2015, Poroshenko bane o partido comunista, do antecedente, uma força política com uma considerável influência na sociedade.

Em maio de 2019, Zelensky ganha as eleições e assume o poder com a promessa de resolver o problema das províncias rebeldes que dilacerava a sociedade ucraniana havia cinco anos e fazer a paz. Mas fez tudo ao contrário do que tinha prometido. Tendo chegado ao poder escudado num partido – “Servo do Povo” – com uma ideologia libertária, rapidamente se posicionou como um partido russo fóbico e pró-americano, navegando num pântano de contradições ideológicas que combinava ideias liberais, socialistas e nacionalistas.

A intervenção na Rada (27 de maio de 2019) de Dmytro Yarosh, fundador do Sector Direito e comandante do Exército Voluntário ilustra bem a importância dos referidos grupos na sociedade ucraniana, quando ameaçou Zelensky de morte se “traísse a Ucrânia”, ou seja, se tivesse a aleivosia de implementar os Acordos de Minsk (“que não eram para ser cumpridos, mas para ganhar tempo e preparar a ofensiva final contra o Donbass e a Crimeia”).

Com a tomada de posse de Zelensky, acelera-se o processo de deterioração das liberdades cívicas iniciado no mandato do seu antecessor, particularmente no que respeita à promiscuidade entre Estado e grupos ultranacionalistas, que aumentam de protagonismo. Completamente alinhado ideologicamente com aqueles grupos, Zelensky vai aprofundar aquilo que Poroshenko tinha iniciado. Os oligarcas seguem-lhe o exemplo.

Um dos principais objetivos do presidente, ex-russo falante, é a completa eliminação da língua e cultura russa. Imediatamente após os protestos de Maidan, o Verkhovna Rada decidiu revogar a lei sobre os princípios da política linguística do Estado, que estava em vigor desde 2012. Em 2017, Poroshenko proíbe o ensino em russo, e a partir de janeiro de 2021, Zelensky dá outra machada na língua russa, ao proibir a sua utilização na administração do Estado.

Foram igualmente proibidos os livros escritos em russo, incluindo os clássicos da literatura russa. Zelensky ordenou a retirada de 100 milhões de livros de autores russos das bibliotecas da Ucrânia. Tolstoi, Pushkin, Dostoievski e Gorky, entre outros, foram proscritos. O mesmo sucedeu aos compositores russos. Tchaikovsky, Prokofiev, Shostakovich, Borodin, Glinka, Rimsky-Korsakov e muitos outros foram também banidos. Espetáculos e quaisquer outras manifestações culturais em língua russa foram igualmente proibidas. O inglês passou a ser a segunda língua na Ucrânia. As minorias húngaras e romenas, que tinham pretensões semelhantes à russa foram igualmente atingidas e objeto de discriminação.

No plano religioso, Zelensky foi mais além de Poroshenko e proibiu a igreja canónica ortodoxa (ICO). Foi penoso ver, em abril de 2023, o cerco ao Kiev Pechersk Lavra (KPL) e os correligionários da nova igreja ucraniana expulsarem os sacerdotes da ICO com a ajuda da polícia. De santuário de referência da ICO, o KPL passou a ser lugar de cerimónias pagãs e de encontros gastronómicos sem qualquer relação com a religião. Por toda a Ucrânia, os acólitos da nova igreja apoderaram-se dos santuários da ICO e expulsaram os seus sacerdotes.

Foi durante a vigência de Zelensky, que se realizaram os maiores ataques à liberdade de expressão no país. No dia 3 de fevereiro de 2021 foram banidos três canais de televisão (ZIK, News 1 e 112 Ukraine). No dia 20 de março de 2022, obedecendo às ordens de Zelensky, o Conselho de Defesa e Segurança Nacional da Ucrânia ilegalizou, de uma assentada, 11 partidos políticos por supostas ligações à Rússia. Viktor Medvedchuk, o líder da “Plataforma para a Vida”, o principal partido da oposição, que ocupava 44 lugares no parlamento ucraniano, foi colocado em prisão domiciliária.

Destino semelhante teve o presidente do supremo tribunal. O presidente do Tribunal Constitucional “ausentou-se” para parte incerta para não ter a mesma sorte. Até o antigo Presidente Poroshenko, um adversário político e inimigo de longa data de Zelensky, foi vítima da repressão política e da caça às bruxas “politicamente motivada” promovida por Zelensky, que o acusou de “alta traição” e de auxílio a organizações terroristas. É longa a lista de políticos, jornalistas e empresários mortos, sequestrados ou torturados durante a presidência de Zelensky. Um deles, é Oleksander Dubinskyi deputado na Rada, vítima de duas tentativas de assassinato e preso há mais de 15 meses por criticar a corrupção no país.

Em contrapartida, nenhuma das organizações neonazis foi ilegalizada. O nazismo e as insígnias fascistas normalizaram-se na sociedade e no seio das forças armadas. A suástica, o Sol negro e a caveira de Totenkopf vulgarizaram-se e tornaram-se moda. Zelensky publicou, sem qualquer pudor, fotografias destas insígnias nas suas contas das redes sociais.

A 13 de maio de 2023, Zelinsky visitou o Papa envergando uma camisola preta com o emblema da UNO, uma organização nacionalista ucraniana, e entregou-lhe um ícone com uma silhueta negra de Cristo ao colo da Virgem Maria, o que, de acordo com os cânones da Igreja Católica pode ser considerado satânico. A moda chegou também a outros domínios como monumentos, toponímia e filatelia, utilizados para exaltar figuras prominentes do movimento ucraniano bandeirista, responsável pela morte de judeus.

No dia 1 de março de 2022, de acordo com o decreto assinado por Zelensky, foi criada a “Legião Internacional de Defesa da Ucrânia” que passou a ser integrada na estrutura das Forças Armadas, cujo pessoal incluía mercenários, adeptos de ideias extremistas e terroristas de várias partes do mundo.

Zelensky aderiu e alimentou a fantasia, promovida pelos ultranacionalistas, de um estado mono étnico, monocultural e centralizado. A aprovação na Rada da lei racista e xenófoba sobre os povos indígenas” (13 de dezembro 2022) foi uma materialização desse desígnio. Inserido neste projeto, assiste-se a um movimento de revisionismo histórico com laivos fantasiosos e caricatos. Igor Tsar, autor do livro “Ucrânia – a pátria ancestral da humanidade”, vencedor do Prémio Stepan Bandera, publicado em Lvov alerta-nos para uma imensidão de “factos históricos” desconhecidos (foram as tribos arianas da Ucrânia que fundaram o Irão no 4º milénio a.C. e colonizaram a Palestina. A língua inglesa é proveniente da Ucrânia. Até Jesus era ucraniano).

Nesta análise sobre o regime ucraniano sob a tutela de Zelensky, não podíamos deixar de referir o envolvimento de Zelensky na corrupção que grassa no país, que se encontra devidamente documentada. No outono de 2021, o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação publicou os chamados Pandora Papers, onde se incluíam dados das contas offshore de 35 líderes mundiais. Zelensky e os seus parceiros do estúdio Cartel 95 estavam entre eles.

Entre 2012 e 2016, foram transferidos 41 milhões de dólares para a empresa offshore de Zelensky. Num país normal teria sido preso. Uma das múltiplas mansões que tem por esse mundo fora encontrava-se na Crimeia, um erro que lhe custou caro. Foi expropriado e a mansão vendida em hasta pública, tendo o resultado da venda revertido para um fundo de ajuda a combatentes russos.

No Ocidente passou a ser pecado falar de neonazis na Ucrânia, dando-se início à maior campanha de branqueamento de um regime político realizada até hoje. O “Guardian”, entre outros órgãos de referência da comunicação social, que antes do início da guerra em 2022 escrevia “bem-vindo à Ucrânia, o país mais corrupto da Europa”, passou depois a considerar que “A luta pela Ucrânia é a luta pelos ideais liberais.” A corajosa reportagem de Mariana Van Zeller sobre grupos neonazis na Ucrânia foi censurada e retirada do canal Disney. Quem desmonta esta e outras falácias (o tema está longe de se esgotar neste artigo) foi acusado de ser propagandista do Kremlin.

O branqueamento do regime instaurado em 2014 é feito com base em dois argumentos: se o regime tivesse a filiação ideológica de que é acusado não teria um presidente judeu; os neonazis não têm expressão eleitoral significativa, por isso o regime é democrático. As questões devem, no entanto, ser colocadas de outro modo. Seria insuportável para as democracias europeias admitirem que estão a apoiar um regime que permite a proliferação da ideologia nazi e protege organizações neonazis.

Por outro lado, omite-se o facto de que muitos desses partidos/grupos ultranacionalistas não concorreram às eleições, e menospreza-se deliberadamente a sua influência na sociedade, sobretudo nas forças militares e de segurança, consolidada no rescaldo do golpe de Maidan. O facto da Ucrânia ter servido de tirocínio de combate a vários grupos neonazis europeus está superlativamente documentado em língua portuguesa (aqui (cap.IV) e aqui).

A farsa completa-se quando Zelensky participou nas comemorações do 80º aniversário da libertação do campo de extermínio nazi de Auschwitz, ou se ajoelha no memorial de Babyn Yar, em Kiev, não obstante a sua adesão incondicional à exaltação histórica dos bandeiristas, os mesmos que perpetraram o massacre lembrado por aquele memorial.

Não podemos deixar de nos questionar sobre a complacência e promiscuidade do Ocidente com as forças neonazis que proliferam na Ucrânia, porque é que se omitiu essa realidade e se tornou um tabu a partir de fevereiro de 2024, apesar de denunciada antes, com o conluio da comunicação social. Os exemplos são gritantes, e são muitos. Os aplausos em pé no parlamento canadiano a Yaroslav Hunka, que durante a Segunda Guerra Mundial serviu na 14ª Divisão de Granadeiros da Waffen-SS, considerado um “herói” durante a visita do Presidente Zelensky. Por terem sido vítimas da brutalidade destes grupos, os polacos são uma exceção a este unanimismo.
  
Pelo exposto, pode concluir-se que Donald Trump não anda afinal muito longe da verdade. Pelo andamento da carruagem, não se admire o leitor se um dia acordar e perceber que andou três anos a ser enganado. A possibilidade de isso acontecer já esteve mais distante.

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