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quarta-feira, 17 de dezembro de 2025
hélder moura - (562) Quando as mentiras passam a ser verdades
- hélder moura
- 17.12.25
A repetição, muitas
vezes sobrevalorizada por se acreditar na capacidade inferior das massas para a
perceber e recordar, é, contudo, importante porque as convence da
consistência ao longo do tempo, H. Arendt.
O termo “lavagem de cérebro”,
apesar de carecer de qualquer fundamentação científica validada, entrou para o
imaginário da nossa sociedade como um conjunto de técnicas científicas.
O nosso problema é que as
pessoas são obedientes quando as prisões estão cheias de pequenos ladrões
enquanto os grandes ladrões comandam o país, H. Zinn.
Não é por acaso que nos EUA (não
só) a chamada e assumida Direita Cristã tem vindo a impor que
o criacionismo, ou o “desígnio inteligente” faça parte dos
programas escolares, a ser ensinado em pé de igualdade científica com o
evolucionismo. Ela sabe que o descrédito das disciplinas racionais, pilares do
Iluminismo, é fundamental para destruir a indagação intelectual honesta e
desapaixonada. A partir daí, os factos passam a poder ser intermutáveis
com as opiniões.
O conhecimento da realidade não
necessita já de ter por base a colheita elaborada de factos e evidências. Só
por si, a ideologia é a verdade. Os factos que se interponham no caminho da
ideologia podem ser mudados. As mentiras passam a ser verdades.
Mais abrangente, Hannah Arendt,
explica-nos nas Origens do Totalitarismo, o comportamento de
aceitação das massas:
“Aquilo que convence as massas
não são os factos, nem mesmo os inventados, mas apenas a consistência do
sistema de que eles presumidamente fazem parte. A repetição, muitas
vezes sobrevalorizada por se acreditar na capacidade inferior das massas para a
perceber e recordar, é, contudo, importante porque as convence da
consistência ao longo do tempo.”
É a 24 de setembro de 1950 que
o Miami News publica um artigo do jornalista americano Edward Hunter em
que pela primeira vez aparece o termo “lavagem de cérebro”
(brain washing), que apesar de carecer de qualquer fundamentação
científica validada, vai entrar para o imaginário da nossa sociedade como o
conjunto de técnicas psicológicas que manipulam ações ou pensamentos contra a
vontade, o desejo ou o conhecimento de uma pessoa, reduzindo-lhe a capacidade
de pensar criticamente ou de forma independente, permitindo a introdução de
novos pensamentos e ideias indesejáveis na sua mente.
Segundo Hunter, combinando a
teoria Pavloviana com a tecnologia moderna, os psicólogos chineses e russos
conseguiram desenvolver técnicas poderosas de manipulação do cérebro das
pessoas. Hunter cunhou o termo após entrevistar ex-prisioneiros chineses que
foram submetidos a um processo de "reeducação”, bem como às técnicas de
interrogatório que o KGB utilizava durante as purgas para extrair confissões de
prisioneiros inocentes e, a partir daí, conseguiram variações - controlo da
mente, alteração da mente, modificação do comportamento e outras.
Um ano depois, Hunter publica a
sua obra base, Brain-Washing
in Red China: The calculated Destruction of Men’s Minds, (Internet
Archive, pdf), como alerta para o que entendia ser um vasto sistema maoísta de
"reeducação" ideológica. A nova terminologia encontrou o seu caminho
de aceitação maioritária na nossa sociedade como provam o mais vendido romance O Candidato da
Manchúria e os filmes com o mesmo nome de 1962 (de
John Franenheimer, com Frank Sinatra) e de 2004 (de
Jonathan Demme, com Denzel Washington e Meryl Streep).
Talvez seja importante notar que
Hunter fez parte de várias organizações de propaganda da
CIA, e durante uma sua deposição perante o Comité
de Atividades Antiamericanas da Câmara dos Representantes dos EUA,
afirmou que os EUA e a NATO perderam a Guerra Fria devido à vantagem dos
comunistas na propaganda e na manipulação psicológica, e que o Ocidente perdera
a Guerra da Coreia por não estar disposto a usar a sua vantagem em bombas
atómicas. Não via qualquer diferença entre os vários países comunistas e
advertiu que tanto a Jugoslávia como a China estavam tão empenhadas na
dominação mundial comunista quanto a União Soviética.
Estava criado o ambiente social e
político para que a partir do início da década de 1950, a Agência Central de
Inteligência (CIA) e o Departamento de Defesa dos EUA realizassem pesquisas
secretas, incluindo o Projeto
MKUltra, para o desenvolvimento de procedimentos e identificação de
drogas que pudessem ser usadas para alterarem o comportamento humano. Estas
experiências incluíram "desde a terapia de eletrochoques,
hipnose, privação
sensorial, isolamento, abuso verbal e sexual a altas
doses de LSD e outras
formas de tortura,
tendo como base experiências em
humanos anteriormente efetuadas pelos nazis.
À frente do projeto (que incluía
mais de 30 instituições e universidades envolvidas no programa de
experimentação de drogas em cidadãos "de todos os níveis sociais, altos e
baixos, nativos americanos e estrangeiros" sem o seu conhecimento, e em
ainda mais de mil militares voluntários e empregados da CIA, e outros fora dos
EUA nos black sites),
Sidney Gottlieb e a sua equipa conseguiram "destruir a mente
existente" de um ser humano utilizando técnicas de tortura; no entanto, o
conseguir a reprogramação, em termos de encontrar "uma forma de inserir
uma nova mente neste vazio resultante", não foi alcançada.
Em 1979, John D. Marks escrevia
no seu livro "The Search for the Manchurian Candidate" que,
até ao encerramento efetivo do programa MKUltra em 1963, os investigadores da
agência não tinham encontrado uma forma fiável de fazer uma lavagem cerebral a
outra pessoa, uma vez que todas as experiências terminaram sempre em amnésia ou
catatonia, tornando impossível qualquer utilização operacional.
Mas algo se aproveitou: um
relatório bipartidário do Comité de Serviços Armados do Senado, divulgado
parcialmente em dezembro de 2008 e na íntegra em abril de 2009, relatou que os
instrutores militares dos EUA que estiveram em Guantánamo em dezembro de 2002,
basearam um curso de interrogatório num gráfico copiado de um estudo da Força
Aérea de 1957 sobre técnicas de lavagem cerebral "comunistas
chinesas" utilizadas para obter falsas confissões de prisioneiros de
guerra americanos durante a Guerra da Coreia. O relatório mostrou ainda como a
autorização do Secretário da Defesa, em 2002, para a utilização destas técnicas
agressivas em Guantánamo, levou à sua utilização no Afeganistão e no Iraque,
incluindo em Abu
Ghraib.
E tão bem foram estas operações
realizadas (servindo apenas para criar a tal “perceção da realidade”),
que hoje acabamos a viver num mundo desejado estranhamente obediente. Eis o
que Howard Zinn conclui:
“Sempre que dizemos que o
problema é a desobediência civil, estamos a dizer que o nosso problema é
a desobediência civil. Esse não é o nosso problema… O
nosso problema é a obediência civil. O nosso problema é o número de pessoas
em todo o mundo que obedeceram às ordens dos líderes dos seus governos e foram
para a guerra, e milhões foram mortos por causa dessa obediência. E o nosso
problema é aquela cena em ‘Nada de Novo na Frente Ocidental’, onde os alunos
marcham obedientemente em fila para a guerra. O nosso problema é que as pessoas
são obedientes em todo o mundo, apesar da pobreza, da fome, da estupidez, da
guerra e da crueldade. O nosso problema é que as pessoas são obedientes
quando as prisões estão cheias de pequenos ladrões enquanto os grandes ladrões
comandam o país. Esse é o nosso problema.”
terça-feira, 16 de dezembro de 2025
Viriato Soromenho Marques - A EUROPA À BEIRA DE UMA GUERRA IRRACIONAL
«A EUROPA À BEIRA DE UMA GUERRA IRRACIONAL! MAS SEREMOS CAPAZES DE A IMPEDIR?»
* Maria João Caetano
2025 12 14
O filósofo Viriato Soromenho Marques aponta o dedo aos EUA e à Europa pela forma como trataram a Rússia e subestimaram Vladimir Putin. E espera que no meio da escalada a que temos vindo a assistir, os líderes políticos de hoje tenham a inteligência que outros tiveram no passado e saibam dar um passo atrás. Até porque, os desafios que a nossa civilização enfrenta vão muito além da possibilidade de uma guerra: "A guerra nuclear será um ataque cardíaco. Por outro lado, a esclerose generalizada, que é um processo de morte, mas mais lento, é a crise ambiental"
~~~~~~ooo0ooo~~~~~~
«Eu fiz as
contas. No dia 12 de janeiro do próximo ano, a guerra na Ucrânia, a tal operação
especial, como dizem os russos, terá mesma duração da guerra da Alemanha com a
Rússia na Segunda Guerra Mundial. São 1.418 dias. De 22 de junho de 1941,
quando Hitler invade a União Soviética até 8 de maio de 1945." No dia 12
de janeiro de 2026, completam-se 1.418 de guerra da Ucrânia. "E não me
parece que neste momento a Rússia esteja esgotada", diz. "Tudo indica
que este esforço de guerra está a acontecer com economia de meios e com
economia de baixas", diz Soromenho Marques. Podemos estar numa escalada
que obrigue a Rússia ou a desistir ou então a passar para a fase seguinte, com
as armas nucleares, antecipa. "A verdade é que não temos nenhum exemplo de
uma guerra nuclear anterior entre potências nucleares. O meu receio é que ninguém
saiba controlar esta escalada».
Foi no passado
dia 12, numa noite de inverno, fria e chuvosa, que um grupo de
"corajosos", como lhe chamou Viriato Soromenho Marques, se juntou no
auditório da Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva para o debate "Guerra
e paz: respostas, causas e soluções de hoje", o último dos três debates do
ciclo "Uma ideia de harmonia", comissariado pela jornalista Alexandra
Carita. Na mesa estava também Tatiana Moura, diretora da plataforma
masculinidades.pt e investigadora do CES - Centro de Estudos Sociais da Universidade
de Coimbra. Mas foi o filósofo e professor da Universidade Nova de Lisboa que,
inegavelmente dominou a conversa.
Em 1983, em
plena Guerra Fria, Viriato Soromenho Marques era um jovem a fazer inter-rail e
passou algum tempo em casa de um amigo em Witten, na Alemanha. A estadia
coincidiu com muitas manifestações pela paz devido à crise dos "euromísseis".
"Nessa altura, a tensão entre o Pacto de Varsóvia e a NATO tinha crescido
de forma exponencial. Novos mísseis estavam a ser colocados, quer no lado do
lado soviético, quer do lado norte-americano e europeu", recorda o filósofo
que tem atualmente tem 68 anos. "Só que nessa altura existia uma literacia
sobre guerra nuclear que hoje está completamente ausente", diz, lembrando,
por exemplo, que a mãe do amigo, que era dona-de-casa, "saía da sua vida e
ia para a rua protestar"; ou ainda que havia uma canção "muito medíocre"
que nesse verão foi um sucesso na Alemanha, intitulada "Besuchen Sie
Europa (solange es noch steht)" - "Visita a Europa enquanto ela ainda
lá está", que falava precisamente dessa ideia de que "isto vai acabar
tudo em breve".
Terá sido esta
vivência que o despertou para o problema da guerra na Europa. Depois dessa
viagem, Viriato começou a pesquisar e a fazer entrevista e, em 1985, publicou o
livro "Europa, o risco do futuro: a incerteza estratégica dos anos
80". O livro foi publicado duas semanas antes de Gorbachev ter tomado
posse, iniciando o caminho para o fim da Guerra Fria.
"Isto que
está a acontecer agora [na Europa], para mim, tem 42 anos. Isto não começou no
dia 24 de fevereiro de 2022", diz, concluindo: "Para mim, isto é um
pesadelo, porque eu, nessa altura, já era ambientalista e olhava para estas
duas grandes ameaças. Por um lado, o ataque cardíaco. A guerra nuclear será um
ataque cardíaco. Por outro, a esclerose generalizada, que é um processo de
morte, mas mais lento, que é a crise ambiental", diz, introduzindo aqui um
tema que é essencial no seu pensamento. Mas já lá vamos. Para entender o que se
passa hoje na Europa o professor recua, precisamente, até à Guerra Fria e ao
modo como esta terminou. E talvez, até, recuar um pouco mais, e perceber porque
é que existem guerras.
AS GUERRAS SÃO
EVITÁVEIS?
"Em toda
guerra existe violência, mas nem toda violência é guerra. Isto é importante
porque a violência pode ser exercida pelo indivíduo, está relacionada,
individualmente, com a agressividade. Mas a condição fundamental para a guerra é
a existência de uma entidade artificial, que é o estado - uma estrutura que é
uma pessoa coletiva, uma estrutura sem paixão, que decide do uso da violência bélica",
explica Viriato Soromenho Marques.
É por isso que
para perceber as guerras é preciso entender o conceito de estado soberano.
"A guerra e a paz entre nações está também associada à teoria do contrato
social, que se parece um pouco com a física atómica", diz. "Temos os
indivíduos que são pequenos átomos e que depois se organizam em moléculas que são
sociedades." Na ordem política e na ordem legal, existe um poder de sanção.
Mas, neste aspeto, "a analogia com a sociedade das nações é imperfeita.
Porque na sociedade das nações não existe esse poder de sanção, é um direito
imperfeito. Isto é, podem existir tribunais internacionais. Há tratados. Há uma
Organização das Nações Unidas. Mas não existe um poder comum capaz de aplicar a
sanção. As grandes potências não são sancionáveis."
Thomas Hobbes,
pensador doa séculos XVI XVII, dizia que "os príncipes e os Estados estão
permanentemente em estado de natureza, ou seja, preparados para a guerra. E não
há nenhum tratado, não há nenhuma lei internacional que leve os príncipes a
dormir descansados. É por isso que têm exércitos permanentes. Porque há uma
desconfiança permanente".
O professor
cita ainda o general prusso Carl von Clausewitz ("uma espécie de Newton da
guerra"), que no século XIX escreveu a obra "Vom Krieg - Da
Guerra", que é, nas suas palavras, "o grande livro contemporâneo
sobre a guerra": "A guerra é uma ação em que a violência é usada como
instrumento de objetivos políticos". Clausovitz diz mais: "A guerra é
a continuação da política por outros meios" - uma frase que já todos
ouviram. O que é que isto significa? "A guerra tem apenas uma gramática, a
política tem a lógica. E deve ser a política que comanda a guerra.
Evidentemente que para fazer a guerra é preciso tecnologia, é preciso treino,
etc. Mas isso é a gramática. E no limite, se fosse possível, atingir esses
objetivos sem a violência, não haveria guerra. Mas sem a violência não há coação.
Agora, o que pode acontecer é que, perante ameaça do uso da força militar, um
Estado pode recuar e conceder. Clausevitz considera que quando a diplomacia
falha é muito improvável que se consiga retomá-la sem o sucesso das
armas."
"Na guerra
existe uma lógica essencialmente de custo-benefício. O pensamento estratégico
militar é um pensamento de custo-benefício. É um pensamento instrumental. A
ideia de uma guerra com as luvas brancas não existe", afirma o filósofo. Não
existe guerra sem danos colaterais e sem crimes de guerra. O que os políticos
que tomam a decisão de iniciar ou entrar numa guerra fazem é tentar avaliar se
vale ou não a pena. Isto, dito assim, pode parecer cruel, mas não é novo.
"Os aliados, que venceram a Alemanha nazi, também cometeram imensos
crimes. Hamburgo foi destruída em julho de 1943 e 40 mil pessoas foram mortas
com bombas de fósforo. Antes das bombas atómicas, que foram crimes de guerra
também, porque visaram populações civis, tivemos 700 mil japoneses que foram vítimas
de bombardeamentos convencionais pela aviação americana. Isso são crimes de
guerra", sublinha.
UMA GUERRA
IRRACIONAL – EM QUE TODOS SAEM DERROTADOS
"Hoje em
dia, a guerra que podemos ter será uma guerra absolutamente irracional",
diz Viriato Soromenho Marques. Porquê? Segundo Clausevitz, a guerra é até 1945,
tinha violência, mas tinha racionalidade. "Ou seja, havia sofrimento, mas
havia a possibilidade da vitória. Os povos perdiam milhões de vidas, mas
atingiam o objetivo e havia vitória. Hoje, é uma das características da guerra
contemporânea, é a possibilidade de uma guerra em que todos saem
derrotados".
Durante os 40
anos da Guerra Fria, houve um consenso entre os dois lados, explica o
professor. A crise dos misseis de Cuba em outubro de 1962, em que o mundo
esteve à beira de uma guerra nuclear, "fez com que tanto Krushov como o
Kennedy percebessem o que seria a irracionalidade da guerra", diz
Soromenho Marques. "O que Kennedy fez a seguir a outubro de 62 foi
fundamentalmente um processo de construção da paz, em colaboração com a União
Soviética: a criação do telefone vermelho, a proibição de testes nucleares e
outras ideias que ele tinha para a frente, de cooperação alargada com a União
Soviética e com os países que estavam no Pacto de Varsóvia e que o assassinato
impediu. No discurso que fez em Washington em 10 de junho de 63, Kennedy dizia
o seguinte: 'Enquanto defendem os seus próprios interesses vitais, as potências
nucleares devem evitar os confrontos que levam o adversário a optar entre uma
retirada humilhante ou uma guerra nuclear. "Adotar esse tipo de atitude,
ou seja, querer insistir numa escalada em potências nucleares, na era nuclear,
seria apenas uma prova da falência da nossa política ou de um desejo coletivo
de morte'."
Ronald Reagan,
que foi presidente dos EUA durante a Guerra Fria, "acolheu positivamente,
com entusiasmo, Gorbachev", diz o professor, contando algo que percebeu ao
ler as memórias do presidente: "Em novembro de 1983, Reagan foi um dos
primeiros americanos a ver até o filme 'The Day After' [filme ficção científica
que imagina o que aconteceria após uma guerra nuclear]. E ele ficou
aterrorizado com o que viu. É interessante que em janeiro de 84 ele faz um
discurso que causou surpresa. Enquanto o discurso do ano anterior tinha sido o
discurso do "Guerra da Estrelas", vamos criar um sistema no espaço, o
discurso de janeiro de 84 dizia que temos de evitar a autodestruição".
O FIM DA UNIÃO
SOVIÉTICA: UMA OPORTUNIDADE DESPERDIÇADA
A Guerra Fria
prolongou-se, com esse jogo de contenção de forças, até à Perestroika. Viriato
Soromenho Marques considera que a transição democrática da União Soviética, com
a "dissolução pacifica do Pacto de Varsóvia", "é o único caso
que temos na História em que um sistema bipolar acaba porque o outro lado
desiste".
Inicialmente,
recorda o filósofo, "houve imensa vontade de estabelecer relações, de
apoiar economicamente a transição da Rússia. O que eles fizeram foi uma coisa
brutal". Mas logo se percebeu que os interesses económicos se iriam
sobrepor aos bem político. Passou-se "de uma economia planificada que não
funcionava, para uma economia de mercado que foi pilhada. O que aconteceu no
tempo do Ieltsin foi uma catástrofe para a Rússia. A Rússia perdeu cinco anos
de esperança de vida. O desemprego galopou. A mortalidade infantil aumentou
imenso. O alcoolismo explodiu. A criminalidade, as mortes violentas. Depois, a
formação dos oligarcas, a privatização com as grandes companhias americanas por
trás. No fundo, a Rússia era um cadáver gigantesco, 17 milhões de quilómetros
quadrados, que estava ali para ser devorado", diz Soromenho Marques.
"Foi uma
tragédia. Não só económica, mas também política." A Europa poderia ter-se
tornado um aliado, um parceiro. "Era preciso criar uma relação de confiança
mútua, e isso não aconteceu. Até porque era preciso ter um inimigo, como é que
nós vendíamos a expansão da Nato se não tivéssemos um papão do lado lá?"
"O
analfabetismo e russofobia é também uma coisa que nos está a envenenar.
Envenena-nos a alma e corrói o pensamento", afirma Soromenho Marques.
QUANDO PUTIN
DEIXOU DE SER UM AMIGO – AS ORIGENS DA GUERRA DA UCRÂNIA
Soromenho
Marques diz que é preciso "admitir o fracasso de todas as políticas que
começaram em 1991, quando os Estados Unidos recusaram integrar a Rússia no
sistema internacional" e decidiram deixar a Rússia de foram da Nato.
"Esta guerra [na Ucrânia] começou porque a Rússia não tinha garantias de
segurança. Pediu primeiramente que a Nato não se alargasse, mas a Nato
alargou-se. Depois pediu para não se alargar para zonas que são estratégicas,
porque as grandes potências têm zonas de segurança, a que se chama zonas de
influência", e, mais uma vez, isso não acontece. Em 2008, em Bucareste, a
Nato ofereceu um convite à Ucrânia. "E Putin, que nessa altura era
convidado a ir às reuniões da Nato, fez um grande discurso a explicar porque é
que isso era uma coisa que não podia ser aceite pela Rússia. Então, Sarkozy e
Merkel falam com Bush e decidem arrastar isso para não arranjar problemas. As
coisas foram-se arrastando assim."
"O ponto
em que as coisas realmente se transformaram foi com a Praça Maidan. Foi aí que
as coisas se tornaram mesmo azedas", diz o filósofo. "Esta guerra
começou aí. A Operação Especial começou na Praça Maidan. O Viktor Yanukovych
foi eleito em eleições reconhecidas por todos os observadores, incluindo os
nossos, da União Europeia, que estiveram lá. A Victoria Nuland, que é a
vice-secretária de Estado, esteve pessoalmente a comandar as operações de
montagem da Praça Maidan. Inclusive ela, no inverno, em dezembro de 2013, faz
uma pequena intervenção, em que chega a dizer que até agora o nosso
investimento na Ucrânia foi de cinco milhões de dólares. Em 2024, o historiador
ucraniano Ivan Katchanovski publicou um livro notável a explicar a Praça
Maidan."
"A
Alemanha foi seduzida pela possibilidade de também tirar algum partido da Ucrânia.
E, além disso, ninguém acreditava que a Rússia tivesse capacidade para fazer
esta guerra. O Biden dizia, em 2017: os russos engolem tudo o que lhe pusermos
pela garganta abaixo", lembra Soromenho Marques. Em 2019, ainda Merkel
estava no poder, e a Ren Corporation, que é o principal think tank da política
externa americana, publica um livro que se chamava "Extending
Russia". Esses analistas diziam que se deviam "criar dificuldades em
muitos pontos à Rússia para que ela se parta. E um dos objetivos do Extending
Russia é impedir a ligação entre a Alemanha e a Rússia. Não só energética.
Avisadamente, eles percebiam que uma boa relação entre a Alemanha e a Rússia ia
causar problemas a quem queria continuar a ser o dono do mundo".
O FIM DO DOMÍNIO
AMERICANO E AS NOVAS RELAÇÕES DE PODER .
"Os
Estados Unidos estão, nesta fase, a passar de interveniente principal, para
algo diferente", afirma Soromenho Marques. "Reconhecem que já não têm
capacidade para aquele pesadelo que foi o unipolarismo. Biden foi o último
representante da ideia tonta de que era possível os Estados Unidos dominarem o
mundo e imporem, com recompensas e com violência e com sanções, o domínio. Hoje
estamos num mundo completamente diferente."
E explica:
"Do ponto de vista económico, os Estados Unidos são uma sombra do que
foram. No auge do poderio americano, no tempo do Truman, 50% do produto interno
bruto era americano. Hoje, os Estados Unidos têm uma percentagem muito menor,
estamos a falar de 20%, 21%. para ser otimista. Por outro lado, do ponto de
vista científico, a situação é absolutamente avassaladora. No ano passado, um
instituto australiano publicou um estudo que era uma análise de 20 anos de
inovação científica no mundo, em 64 tecnologias de ponta. E o contraste é
absolutamente esmagador. Em 2003, os Estados Unidos dominavam 61 das 64. E a
China dominava 3. Em 2023, a China domina 57 das 64. E os Estados Unidos
dominam as outras 7."
"Ou seja,
o que temos hoje é um novo sistema internacional. Estamos numa fase horrível
que é a transição. As transições são sempre terríveis, mesmo na vida dos indivíduos",
diz o professor. Mas há algo positivo nesta situação, que é o facto de os
Estados Unidos "já não considerarem a China como um inimigo com o qual
poderiam entrar em guerra em 15 anos, mas como um competidor. Há uma diferença
entre competidor e inimigo".
Já em relação à
Rússia, na Estratégia de Segurança Nacional (ESN) os EUA assumem o objetivo de
"estabilizar as relações com a Europa, nomeadamente com a Rússia. O que não
parece uma coisa idiota, parece uma coisa até bastante sensata. Não sei como é
que é possível alguém que conheça um pouco da situação atual e da situação histórica
pensar que é possível excluir a Rússia do sistema internacional e do sistema
europeu, para mim é uma ideia completamente absurda", afirma.
E A EUROPA NO
MEIO DE ISTO TUDO?
"Estamos a
viver um desastre do projeto europeu", diz Viriato Soromenho Marques,
lembrando que em 2014 publicou livro sobre a crise do euro que se chamava
"Portugal na queda da Europa". "A tese era que a crise de 2008 não
foi uma crise das dívidas soberanas, como se dizia, foi uma crise do euro. O
euro foi construído sem qualquer mecanismo que o tornasse uma moeda funcional,
não era uma moeda federal. O euro foi criado sem sequer um sistema de prevenção
das crises bancárias, por exemplo. Nada. E os países endividaram-se nessa
altura para socorrer o sistema financeiro, os bancos, que estavam lá soltos. Os
bancos nessa fase inicial faziam o que queriam. Falhámos. O Euro podia ser a
primeira etapa do federalismo europeu, e nós falhámos. Em 2014, a minha
perspetiva era que estávamos a entrar num processo de decadência europeia, de
queda".
"Só que
agora já estamos dentro da queda", admite, dando como exemplo máximo a
forma como a Europa está a conduzir esta guerra na Ucrânia. "Primeiro: não
temos nenhuma providência, nenhum artigo que conceda os poderes que a senhora
von der Leyen se arrogou para funcionar como se fosse a comandante suprema de
uma coisa que não existe, que são as Forças Armadas Europeias. Segundo: existe
uma confusão total entre a União Europeia e a NATO. Chegámos a este ponto.
Confundimos totalmente. Terceiro: o uso de procedimentos, e dia 18 de dezembro
vamos ver se isto vai acontecer ou não, procedimentos que vão conduzir a uma
situação dramática".
Depois de na
passada sexta-feira a União ter aprovado, por maioria e com os votos contra da
Hungria e Eslováquia, uma decisão para manter os ativos russos imobilizados
indefinidamente no espaço comunitário, o tema volta a ser debatido esta semana
pelos ministros europeus dos Negócios Estrangeiros que vão decidir se esse
dinheiro pode ser usado para o empréstimo de reparações à Ucrânia. "Se
isso for roubado à Rússia e entregue à Ucrânia, eu acho que somos nós, os
europeus, que não depositamos mais o nosso dinheiro aqui, são também os
estrangeiros que cá têm dinheiro que vão para outro sítio", antecipa o filósofo.
"A gente do mundo árabe, a gente da África, a gente da América Latina, os
magnatas, etc., vão para outro sítio. E também os portugueses. Vão transformar
esses euros em ienes e vão pô-los na China, ou transformam-nos dólares e põem
nos Estados Unidos."
A ESCALADA
ACTUAL: "NÃO PODEMOS. COMO CIDADÃOS, ACEITAR ESTE DISCURSO DA
INEVITABILIDADE DA GUERRA”
Chegamos,
assim, aos dias de incerteza em que vivemos. Viriato Soromenho Marques
"colecionou" uma série de frases proferidas nos últimos dias por
"altos responsáveis políticos e militares da nossa Europa" e que
mostram bem o estado do mundo:
• 3 de
Novembro: Boris Pistorius, ministro da defesa da Alemanha, falando sobre o
plano de reconstrução armamentista da Alemanha, que está outra vez na corrida
dos armamentos, está a preparar um sistema que permita a rápida passagem para
leste, ou seja, em direção à Rússia de 800 mil soldados da NATO, disse: "Há
quem fale que a guerra vai ser em 2029. Há outros que dizem que vai ser em
2028. Mas há alguns que dizem mesmo que gozámos em 2025 o último verão em
paz".
• 16 de
novembro: o general Fabien Mandon, que era conselheiro do presidente Macron, da
França, diz que "temos de aceitar perder os nossos filhos, sofrer
economicamente".
• 3 de
Dezembro: o almirante Giuseppe Cavo Dragone, chefe do Comité Militar da Nato,
disse ao Financial Times que a NATO deveria considerar a possibilidade de uma ação
preventiva contra a Rússia.
• 11 de
Dezembro: Mark Rutte, secretário-general da NATO, diz que "depois da Ucrânia
nós somos o próximo alvo da revolução. E nós precisamos estar prontos. Devemos
estar preparados para uma guerra da escala dos nossos avós e dos nossos bisavós.
Preparados para a possibilidade de milhões de mortos" e dizendo que, por
isso, nós precisamos gastar 5% do PIB na corrida ao armamento.
• Entretanto,
Vladimir Putin, interrogado numa conferência de imprensa, a seguir às declarações
de Dragone, diz: "Se a Europa começar subitamente, o tal ataque
preventivo, uma guerra contra nós, eu penso que essa guerra acabará
rapidamente. Isso não será a Ucrânia. Com a Ucrânia nós estamos a atuar com
precisão cirúrgica, cuidadosamente, isto não é uma guerra no sentido direto,
moderno da palavra. Se a Europa começar uma guerra contra a Rússia, em breve,
Moscovo não terá ninguém com quem negociar."
•
Perante isto,
Soromenho Marques questiona-se até que ponto é que aquela ideia de Kennedy, que
é fruto do conceito da "destruição mútua assegurada", ainda estará
atualizada. "Na altura de Kennedy existiam 70 mil armas militares. Hoje
existem à volta de 13 mil. Mas 13 mil são suficientes para dar cabo de tudo. E
eu pergunto-vos, será que estas pessoas partilham desta preocupação?",
pergunta.
E ainda, mais
incisivo: "A questão que me parece prioritária é não aceitarmos, como
cidadãos, este discurso da inevitabilidade da guerra", diz.
Na sua
perspetiva, "uma guerra em que fossem usadas armas nucleares representaria
o fim da história". "Mas vamos pensar que haverá ainda alguma sombra
de cuidado com o futuro, e alguma inteligência também, e que não vamos entrar
por aí", diz, recorrendo ao que resta do seu otimismo.
"QUAL A
POSSIBILIDADE QUE TEMOS DE SOBREVIVER A ISTO? (E «ISTO» NÃO É SÓ A GUERRA NA
UCRÂNIA)”
"Este
conflito [na Ucrânia] é o centro do vulcão. Claro que temos conflitos noutros
lugares no mundo, mas a Europa é, mais uma vez, o centro do vulcão e é onde, de
facto, a situação pode ficar completamente fora de controlo. Mas eu pergunto:
será apenas na guerra que estamos fora do controlo? Não me parece."
Viriato Soromenho Marques tem um olhar mais abrangente. "Nós, europeus,
temos muito orgulho na maturidade, com todo o contributo para a ciência e para
a tecnologia moderna, mas realmente os grandes desígnios da modernidade, que
eram a emancipação humana, que era, como no tempo do grefos, vencer um destino,
uma moira, a que estávamos condenados pelos deuses, ou, como dizia depois
Descartes, vencer a vida curta, prolongar a vida humana, impedir as tragédias,
o sofrimento - será que conseguimos isso? A verdade é que nós construímos um
aparato gigantesco para combater esse destino natural, mas temos uma crise
existencial na área do ambiente. Portanto, eu colocaria o nosso debate sobre a
guerra e a paz no quadro de uma interrogação ainda mais penetrante: qual é a
possibilidade que temos de sobreviver a isto? Onde é que erramos? E teremos a
coragem para primeiro identificar as causas fundamentais e depois agir em
consequência? Ou seja, sermos capazes de fazer a renúncia a tanta coisa a que
nos acostumamos a considerar fundamentais?"
A verdade, diz,
"é que estamos numa situação em que, perante os desafios existenciais que
temos, nomeadamente o facto de estarmos a viver num planeta que estamos a
destruir, que estamos a devorar", deveríamos estar preocupados com outros
problemas. "Quando começou a guerra na Ucrânia, surgiu um artigo chamado
'Uma guerra no convés do Titanic'. Nós temos que que fazer o possível para que
ele não afunde. E neste momento não vemos muita gente que esteja preocupada com
isto", lamenta.
Na sua opinião,
seria necessária "uma visão integrada". Em primeiro lugar, deveríamos
"tomar consciência da gravidade da situação. Já não é evitar, não, é de
fazer uma adaptação que permita a continuação da história humana e que permita
uma visão de reconstrução do modo como as nossas instituições, nomeadamente a
nossa economia, que é uma economia primitiva. Nós precisamos de uma economia
ecológica, ou seja, de uma economia que considere que é um subsistema da
ecologia e não o contrário".
Cícero dizia
que «a salvação do povo seja a suprema lei».
«Quando a gente
fala em salvação do povo, está a falar fundamentalmente da vida das pessoas e
da fazenda das pessoas, do que as pessoas têm. A minha preocupação é com a
nossa vida. Porque acho que a fazenda já está perdida».
Wyndham Lewis, «The Waste Land», sobre o poema de T.S. Eliot
https://cnnportugal.iol.pt/guerra/ucrania/nao-podemos-aceitar-este-discurso-da-inevitabilidade-da-guerra-a-europa-esta-a-beira-de-uma-guerra-irracional-mas-seremos-capazes-de-a-impedir/20251215/693fe7afd34e3caad84c62ea
quarta-feira, 10 de dezembro de 2025
Helder Moura - (561) O desvelar das tendências militaristas atuais
O direito, de acordo com o que se passa no mundo, apenas se discute entre os que são igualmente poderosos, porquanto os mais fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que têm de sofrer, Tucídides.
Quando em 1945 os Estados Unidos ocuparam o Japão, não se preocuparam especialmente em desenraizar a cultura do militarismo.
Diversos altos funcionários presos por crimes de guerra, retomaram discretamente os seus cargos no Estado japonês.
Na Alemanha, negar o Holocausto é crime. No Japão, é política de governo.
A revista Time escolheu Hitler para figurar na sua capa, como “homem do ano 1938”, entendendo que devia ser o candidato ao Prémio Nobel da Paz.
Quando apenas um mês depois de ter sido eleita como a 104ª primeira-ministra do Japão (21 de outubro de 2025), Sanae Takaichi, presidente do Partido Liberal Democrático (PLD), logo no seu primeiro discurso no parlamento ter afirmado que o Japão poderia envolver-se militarmente num conflito entre a China e Taiwan (“an attack on Taiwan could trigger the deployment of her country’s self-defence forces if the conflict posed an existential threat to Japan”), alterando radicalmente toda a política externa seguida até então pelo Japão, tal não fez mais que confirmar as tendências militaristas presentes não só no Japão mas que se têm vindo a apoderar das nossas sociedades.
Uma das várias explicações para a emergência destas tendências, tem que ver com o que se passou na Segunda Guerra, particularmente com a forma como o pós-guerra que se lhe seguiu foi resolvido.
Quando em 1945 os Estados Unidos ocuparam o Japão, não se preocuparam especialmente em desenraizar a cultura do militarismo. Washington debateu se deveria destituir o imperador, figura central do projeto imperial, mas, seguindo o conselho da antropóloga Ruth Benedict, optou por manter o imperador e outros símbolos do militarismo. Isto incluía o Santuário Yasukuni, dedicado aos mortos de guerra, fundado em 1869 e que ainda hoje alberga os restos mortais de mais de mil criminosos de guerra condenados.
Diversos altos funcionários presos por crimes de guerra, mas nunca julgados, retomaram discretamente os seus cargos no Estado japonês. Entre eles estavam Yoshida Shigeru, diplomata de alto nível durante a guerra e primeiro-ministro do Japão durante a maior parte do período entre 1946 e 1954; Nobusuke Kishi, burocrata no nordeste da China durante a ocupação, ministro no gabinete de guerra e, mais tarde, primeiro-ministro de 1957 a 1960; Shigemitsu Mamoru, ministro dos Negócios Estrangeiros no gabinete de guerra, julgado como criminoso de guerra de Classe A pelo seu papel na Coreia e preso, e mais tarde ministro dos Negócios Estrangeiros na década de 1950; Okazaki Katsuo, diplomata durante os anos da guerra e mais tarde ministro dos Negócios Estrangeiros de 1952 a 1954; Ikeda Hayato, funcionário do Ministério das Finanças durante os anos da guerra e, mais tarde, primeiro-ministro de 1960 a 1964; e Sato Eisaku, funcionário do Ministério dos Transportes durante os anos da guerra e mais tarde primeiro-ministro de 1964 a 1972. Neste caso, todos eles fizeram parte da chamada "máfia manchu" que liderou a ocupação na China, manteve-se no poder.
Para que conste, Nobusuke Kishi foi o avô de Shinzo Abe, primeiro-ministro do Japão de 2006 a 2007 e novamente de 2012 a 2020. Muitas vezes é omitido o facto de Kishi ter sido o arquiteto da ocupação japonesa do nordeste da China e responsável pelo regime de trabalho forçado na China e na Coreia. Após a guerra, Kishi foi brevemente preso em Sugamo como suspeito de ser um criminoso de guerra de Classe A, sendo libertado sem julgamento em 1948. Esperou alguns anos antes de regressar à política com um objetivo fundamental: rever a Constituição de 1947 para remover o Artigo 9, que impunha restrições à militarização no Japão.
Em 1952, os EUA reabilitaram formalmente muitos oficiais japoneses que serviram durante a guerra, abrindo caminho para que homens como Kishi entrassem na política ativa e pavimentando o terreno para a formação do Partido Liberal Democrático (PLD) em 1955. Este partido é atualmente liderado por Sanae Takaichi, que nasceu em 1961 e que é a atual primeira-ministra do Japão.
Desde que entrou na política, Takaichi tem sido uma figura de destaque na direita chauvinista do Japão, tendo emergido por intermédio do seu mentor, Shinzo Abe. Tal como o avô de Abe, Kishi, Takaichi deseja rever a Constituição japonesa para que o Japão possa reconstruir as suas forças armadas. Em diversas ocasiões, demonstrou reverência pelo período anterior a 1945: visitou o Santuário Yasukuni, defende a conduta do Japão durante a guerra, questiona a natureza coerciva do sistema das "mulheres de conforto" e apoia a ideia de "restauração do orgulho" no passado imperialista. Afirmou que deseja que os manuais japoneses deixem de ser "autodepreciativos" e questionou a veracidade dos crimes de guerra cometidos em Nanquim. As opiniões de Takaichi, que nasceu após a guerra, ilustram que a ocupação americana não só falhou em erradicar a essência do fascismo da sociedade japonesa, como também lhe permitiu florescer.
Segundo o extenso artigo sobre “Os crimes de guerra do Japão”, antes e durante a Segunda Guerra Mundial, o Império do Japão cometeu inúmeros crimes de guerra e crimes contra a humanidade em diversas nações da Ásia-Pacífico, nomeadamente durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa e a Guerra do Pacífico. Estes crimes ocorreram durante o reinado do Imperador Hirohito.
O Exército Imperial Japonês (IJA) e a Marinha Imperial Japonesa (IJN) foram responsáveis por crimes de guerra entre 1927 e 1945, que levaram a 19 milhões a 30 milhões de mortes, desde assassinatos em massa, terrorismo, limpeza étnica, genocídio, escravatura sexual, massacres, experimentação em humanos, tortura, fome e trabalho forçado.
A liderança política e militar japonesa tinha conhecimento dos crimes das suas forças armadas, mas continuou a permiti-los e até a apoiá-los, com a maioria das tropas japonesas estacionadas na Ásia a participar ou a apoiar os assassinatos.
Embora não seja claro se o Imperador Hirohito foi informado da extensão total desses crimes, o irmão mais novo do Imperador, o Príncipe Mikasa, serviu como oficial no Exército Imperial Japonês estacionado na China, escreveu nas suas memórias que os oficiais utilizavam prisioneiros de guerra chineses para o treino com baioneta, a fim de fortalecer a determinação dos soldados japoneses. Além disso, observou que os prisioneiros de guerra eram asfixiados e fuzilados em grande número.
O Serviço Aéreo do Exército Imperial Japonês participou em ataques químicos e biológicos contra civis durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa e a Segunda Guerra Mundial, violando acordos internacionais que o Japão tinha assinado, incluindo as Convenções de Haia, que proibiam o uso de "veneno ou armas envenenadas" nas guerras.
Após a Guerra, foram emitidos inúmeros pedidos de desculpas pelos crimes de guerra por parte de altos funcionários do governo japonês. O Ministério dos Negócios Estrangeiros do Japão reconheceu o papel do país em causar "tremendos danos e sofrimento" antes e durante a Segunda Guerra Mundial, particularmente o massacre e violação de civis em Nanquim pelo Exército Imperial Japonês.
No entanto, a questão continua a estar pronta a ser reaberta, com alguns membros do governo japonês, incluindo os ex-primeiros-ministros Junichiro Koizumi e Shinzō Abe, a terem prestado homenagem no Santuário Yasukuni, que honra todos os mortos de guerra japoneses, incluindo criminosos de guerra de Classe A condenados.
Segundo Shinzö Abe, o Japão aceitou o Tribunal de Tóquio e os seus julgamentos como condição para acabar a guerra, mas as suas sentenças não têm qualquer relação com as leis do Japão: assim, os condenados em crimes de guerra não são criminosos segundo a lei japonesa.
Além disso, alguns manuais de história japoneses fornecem apenas breves referências aos crimes de guerra, e certos membros do Partido Liberal Democrático negaram algumas das atrocidades, como o envolvimento do governo no rapto de mulheres para servirem como "mulheres de conforto", um eufemismo para escravas sexuais.
Quanto a assassinatos em massa, o historiador britânico Mark Felton afirma que foram mortas até 30 milhões de pessoas, a maioria civis:
“Os japoneses assassinaram 30 milhões de civis enquanto "libertavam" do domínio colonial aquilo a que chamavam a Esfera de Coprosperidade da Grande Ásia Oriental. Cerca de 23 milhões destas pessoas eram de etnia chinesa. É um crime que, em números absolutos, é muito maior do que o Holocausto nazi. Na Alemanha, negar o Holocausto é crime. No Japão, é política de governo.”
Quanto a experimentação em humanos e guerra biológica, unidades militares especiais japonesas realizaram experiências em civis e prisioneiros de guerra na China. O objetivo da experimentação era desenvolver armas biológicas que pudessem ser utilizadas para a guerra. Agentes biológicos e gases desenvolvidos a partir destas experiências foram utilizados contra o Exército Chinês e a população civil. Isto incluiu a Unidade 731 sob o comando de Shirō Ishii. As vítimas foram submetidas a experiências que incluíram, entre outras, vivissecção, amputações sem anestesia, testes de armas biológicas, transfusões de sangue de cavalo e injeção de sangue animal nos seus cadáveres. A anestesia não era utilizada porque se acreditava que os anestésicos afetariam adversamente os resultados das experiências:
“Para determinar o tratamento da hipotermia, os prisioneiros eram levados para o exterior com um tempo gelado e deixados com os braços expostos, sendo periodicamente encharcados com água até congelarem completamente. O braço era posteriormente amputado; o médico repetia o processo na parte superior do braço da vítima até ao ombro. Depois de ambos os braços serem amputados, os médicos passavam para as pernas até que restassem apenas a cabeça e o tronco. A vítima era então utilizada para experiências com peste e agentes patogénicos”.
Do artigo referido, consta uma listagem que pode ser consultada respeitante a definições dos crimes de guerra japoneses, a lei internacional e a japonesa, o militarismo, nacionalismo , imperialismo e racismo japonês, armas de destruição massiva, tortura de prisioneiros de guerra, os julgamentos de Tóquio, lista dos maiores crimes e massacres, dos crimes de guerra, e outros.
É no blog de 27 de setembro de 2017, “Os ovos da serpente”, que podem ler:
“[…] Ainda antes do fim da II Guerra já centenas de milhar de prisioneiros dos exércitos nazis capturados e para os quais não havia campos de internamento em quantidade suficiente, foram colocados nos navios de carga que regressavam vazios aos EUA depois de terem descarregado todo o material na Europa. E por lá ficaram.
É sempre bom recordar que em 1939 os nazis contavam com mais de duzentos mil seguidores e simpatizantes nos EUA, que a revista Time escolheu Hitler para figurar na sua capa, como “homem do ano 1938”, entendendo que devia ser o candidato ao Prémio Nobel da Paz, e que entre os seus admiradores se encontravam o magnate automobilístico Henry Ford e o aviador Charles Lindbergh.
E que na Grã-Bretanha, a abdicação em 1936 do rei Eduardo VIII, Duque de Windsor, ficou certamente mais a dever-se às suas simpatias para com Hitler e o regime nazi do que com o facto de se pretender casar com uma divorciada americana. Eram notórias as simpatias da classe alta e dos aristocratas britânicos para com o regime nazi, o que talvez tenha levado Hitler a cometer o erro estratégico de acreditar que a implantação do seu regime na Grã-Bretanha seria relativamente fácil, não se preocupando muito em dificultar a retirada do exército britânico de Dunquerque.
Na destruição e na confusão que se seguiu após o fim da II Guerra, a necessidade de se manter a funcionar um mínimo de administração pública nos países derrotados, e até na dificuldade de separar nazis de não nazis fez com que, intencionalmente ou não, muitos deles passassem despercebidos. Vamos acreditar que foram essas as razões e que não foi intencional.
Na realidade, os aliados que ocuparam a República Federal da Alemanha (Estados Unidos, Reino Unido e França) condenaram apenas 6650 ex-nazis, o que só por si era uma pequena parte do total dos membros do partido. E, as elites alemãs da época fizeram o resto.
Um recente estudo denominado “Projeto Rosemburg” apresentado publicamente por Heiko Maas, atual ministro da Justiça alemão, vem confirmar que em 1957, 77% dos funcionários com cargos de responsabilidade no Ministério da Justiça alemão (ou seja, três em cada quatro) eram antigos membros do partido nazi. O que não deixa de ser até curioso, porquanto essa percentagem em 1957 era mais alta do que durante o Terceiro Reich (http://www.dn.pt/mundo/interior/sistema-de-justica-alemao-do-pos-guerra-estava-dominado-por-ex-nazis-5434041.html) […]”.
E por lá estão.
E no blog de 1 de fevereiro de 2023, “Crimes de guerra e guerra sem crimes”, poderão ler sobre o Tribunal de Nuremberga e o Tribunal de Tóquio::
“[..]A primeira sessão, sob a presidência do representante soviético, Gen. I.T. Nikitchenko, realizou-se a 18 de outubro de 1945, em Berlim. Foram acusados 24 ex-líderes nazis por perpetuarem crimes de guerra, e ainda vários grupos (como a Gestapo, a polícia secreta nazi) acusados por terem carácter criminoso. A partir de 20 de novembro de 1945, todas as sessões do tribunal passaram a ser realizadas no Palácio da Justiça em Nuremberga.
Após 216 sessões, a 1 de outubro de 1946, foi proferido o veredicto de 22 dos 24 réus originais (Robert Ley cometeu suicídio enquanto estava na prisão, e as condições físicas e mentais de Gustav Krupp von Bohlen und Halbach impediram que ele fosse julgado). Três dos réus foram absolvidos: Hjalmar Schacht, Franz von Papen e Hans Fritzsche. Quatro foram condenados a penas de prisão que variaram de 10 a 20 anos: Karl Dönitz, Baldur von Schirach, Albert Speer e Konstantin von Neurath. Três foram condenados à prisão perpétua: Rudolf Hess, Walther Funk e Erich Raeder. Doze dos réus foram condenados à morte por enforcamento. Dez deles - Hans Frank, Wilhelm Frick, Julius Streicher, Alfred Rosenberg, Ernst Kaltenbrunner, Joachim von Ribbentrop, Fritz Sauckel, Alfred Jodl, Wilhelm Keitel e Arthur Seyss-Inquart - foram enforcados a 16 de outubro de 1946. Martin Bormann foi julgado e condenado à morte à revelia, e Hermann Göring suicidou-se antes de poder ser executado.
Para além deste tribunal, foram ainda constituídos logo de seguida, entre dezembro de 1946 e abril de 1949, outros 12 subsequentes tribunais militares para julgar crimes de guerra cometidos por chefias do partido nazi, médicos, industriais, juízes, ministros e outros elementos de organizações nazis. Dos 3.887 casos, 3.400 foram abandonados, tendo sido presentes a tribunal 489, com 1.672 acusados, dos quais 1.416 foram condenados (200 foram executados, 279 condenados a prisão perpétua – embora em 1950 quase todos acabassem por serem soltos ao abrigo de uma amnistia).
Particular interesse tem também o caso do tribunal para julgar os crimes dos nazis japoneses (Tribunal de Tóquio) instaurado pelo General Douglas MacArthur, onde, devido ao encobrimento feito pelo próprio governo americano, os principais responsáveis pelos crimes horrendos da Unidade 731 (experiências com armas biológicas e químicas em humanos) não foram presentes à justiça, e onde devido aos então recentes bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasáqui se invocou que os pilotos japoneses não podiam ser punidos por bombardearem cidades dado os pilotos americanos terem feito o mesmo […]”
Na História da Guerra do Peloponeso, começada a escrever já lá vão 2.400 anos (431 a. C.), Tucídides pôs os poderosos Atenienses a explicar aos derrotados e impotentes melitanos, a razão para o genocídio que se lhe seguiu:
“o direito, de acordo com o que se passa no mundo, apenas se discute entre os que são igualmente poderosos, porquanto os mais fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que têm de sofrer”, (capítulo XVII, Décimo sexto Ano da Guerra, A Conferência Melitana, O Destino de Melos).



