sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Um ano de completa impunidade

 Manuel Loff  

Até ontem, os países NATO, um após o outro, exortavam Israel a não invadir o Líbano e enviavam a este país aviões... para recolher o seu pessoal diplomático e os cidadãos que queiram e, num país onde um milhão de pessoas (uma em cada cinco) tiveram de fugir de casa, consigam sair. Mas não enviaram aviões de combate para reforçar as Forças Armadas libanesas contra o invasor israelita, como fizeram com a Ucrânia. O que vale para a Ucrânia não vale para o Líbano. Num ano inteiro não valeu para Gaza, a Cisjordânia, territórios invadidos não há dois, mas há 67 anos. Num ano morreram incomparavelmente mais civis em Gaza do que em mais de dois anos e meio na Ucrânia — e Biden e Von der Leyen pedem aos países árabes a mesma desescalada e diplomacia cujo oposto praticam intensamente há anos na Ucrânia.

É insólito este medo de uma guerra generalizada na boca de quem governa deste lado do mundo. Ontem mesmo, Biden deu as ordens necessárias para comprometer (mais ainda) os EUA nas guerras de agressão israelitas. Depois de terem justificado a chuva de mísseis sobre Beirute como uma merecida punição do Hezbollah, os EUA substituíram-se aos israelitas na interceção dos mísseis iranianos para proteger Netanyahu e os genocidas que o acompanham. E disponibilizam para a guerra os 43 mil soldados que, por vezes contra a vontade dos respetivos governos, têm na região. E assim se procura “evitar a guerra”...

A discussão da dualidade de critérios não é apenas moral. Ela tem implicações diretas nas vidas de milhões de pessoas. A dualidade mata. Em Gaza, na Cisjordânia, Israel comporta-se como um dos ocupantes mais sinistros da história, perpetrando represálias sobre a população civil em termos que reproduzem as represálias nazis sobre as populações dos países ocupados na II Guerra Mundial, ou as dos norte-americanos no Vietname, dos franceses na Argélia. Neste momento, com o fluxo imparável de material bélico ocidental, Israel dispara (e mata) em todas as direções: Irão, Síria, Iémen, e agora, sobretudo o Líbano. Por enquanto ordena deslocações de populações; depois passará diretamente às deportações, seguindo o exemplo de Gaza. Bombardeia cidades e campos de refugiados – dos milhões de palestinianos que na Nakba de 1948 expulsaram das suas casas, dos sírios que procuraram fugir da guerra que o Estado Islâmico e as guerrilhas que a Turquia (membro da NATO) e os EUA armaram em 2011.

Os EUA e Israel são há muito aquilo que no glossário imperial se tem chamado “Estados párias”: sequestros em prisões ilegais, tortura sistemática, assassinatos contrariando qualquer forma de direito, nacional ou internacional. Israel é o Estado do planeta que mais resoluções da ONU incumpre, o seu chefe de governo tem um mandado de captura internacional, ataca estruturas e instalações das agências da ONU e assassina os seus funcionários (e médicos, e jornalistas, e crianças...). E, contudo, aí estão os governos UE a proibir por “antissemitas” manifestações de solidariedade com as vítimas palestinianas e exigindo boicote e sanções a Israel.

Somos um mundo de impunidade e de desigualdade, lembrou há dias Guterres, onde muitos governos “podem invadir outro país, devastar sociedades inteiras ou ignorar totalmente o bem-estar do seu próprio povo” e passar por cima de “decisões dos tribunais internacionais”. Não vale a pena é imaginar que a impunidade imperial dos nossos dias é nova. O que é nova é a coerência desta “necropolítica”, deste exercício do poder de “ditar quem pode e não pode viver” como “expressão máxima de soberania” (Achille Mbembe), com esta narrativa tipicamente fascista e colonial que nos fazem das guerras expansionistas de Israel. Não somente tratando os povos árabes da região como “animais humanos”, mas contando tudo nos mesmos termos socialmilitaristas com que no Brasil se narra a entrada da polícia militar numa favela ou como na imprensa nazi se falava da “bestialidade” dos ciganos, dos judeus e dos eslavos que “ameaçavam a existência da Alemanha”.

As guerras israelitas, a sua necropolítica genocida, as décadas de ocupação impune, aplaudida, justificada, dizem tudo do que é hoje o Ocidente. A nossa posição perante elas diz tudo de cada um de nós.


2 de Outubro de 2020

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Carlos Coutinho - artigo de opinião

 * Carlos Coutinho

2024 10 03

ASSIM se vê a força da TV, isto é, a força das imagens que ontem fez um milagre na página 8 do “Público”, escarrapachando a opinião de dois historiadores, personalidades muito informadas, mas simétricas, que sentiram necessidade de convergir publicamente, já que as guerras nos estão a sair a todos muito caras e ninguém sabe como elas vão acabar. Ao fim da tarde, já noite em Beirute, vimos os clarões róseos e brancos do fogo no centro de Beirute, em direto, instantes depois de mais um bombardeamento ao centro da capital libanesa.

   Eis o que escreve o académico e ex-ministro da Administração Interna, num governo do PS, Nuno Severiano Teixeira”:

   “O Médio Oriente está a ferro e fogo. Gaza está arrasada e o Líbano em convulsão. Israel ébrio de vitórias táticas e o Irão condicionado por um dilema estratégico- Os Estados Unidos apelam à paz e Netaniahu faz a guerra. Sob a vertigem do dos acontecimentos e a ameaça de um conflito em larga escala, é difícil ver claro. Mas há duas perguntas fundamentais: como é que tudo começou? E como é que vai acabar?

   “Começou há mais de um século. É um conflito que atravessou várias fases e diferentes configurações. Entre as duas guerras, ainda sob o mandato britânico da Sociedade das Nações, assumiu a forma de uma guerra civil. Nos anos 30, os palestinianos revoltaram-se contra a instalação de judeus em Israel e contra os britânicos que a facilitaram.

   “Depois da fundação do Estado de Israel, entre 1948 e 1973, o conflito assume a forma de um conflito clássico interestatal. Os palestinianos desapareceram da equação e as grandes resoluções do Conselho de Segurança da ONU nem sequer os mencionam. O conflito é entre exércitos regulares de Israel e dos estados árabes. É tempo da chamada ‘guerra israelo-árabe’. E das grandes vitórias israelitas: 1948, 1956 e, sobretudo, a Guerra dos Seis Dias, em 1967, e do Yom Kippur, em 1973. A partir de então, o conflito muda uma vez mais de configuração e aproxima-se de uma guerra assimétrica entre as forças palestinianas e o Estado de Israel. Este processo é acompanhado por uma ampla dinâmica: de desarabização do conflito e apropriação palestiniana da sua causa. Desde os acordos de paz de Camp David, em1978, que, primeiro o Egito, depois os outros estados árabes se vão afastando do conflito. Em 1993, nos acordos de Oslo, são os próprios palestinianos, através da OLP, que assinam, a paz com Israel.
 
  “Em casa, enquanto Israel vai consolidando o seu poderio militar, os palestinianos vão alimentando a sua revolta nas sucessivas intifadas 1987-1993, e 2000-2005. Uma coisa é certa: a desarabização do conflito e reapropriação palestiniana é acompanhada pelo desenvolvimento da guerra assimétrica. E é a retirada dos estados árabes que permite a entrada do Irão. Em 1988, depois da guerra Irão-Iraque, o Irão decide substituir os estados árabes no apoio à causa palestiniana e construir uma rede de influência regional de atores não esttais, explorando, precisamente, a guerra assimétrica: o Hamas, ;o Hezbollah; a Jihad Islâmica e os houtis. 

   “Agora, como é que tudo isto voa acabar?”

   O professor da Nova não sabe e eu também não. Sei que, capciosamente o Nuno Severiano finge desconhecer que Israel financiou o Hamas, porque era a forma de atacar por dento a OLP. Arafat acabou por morrer envenenado E Telavive até já tem ogivas nucleares… Adiante.

   Eis agora o que escreve o académico o ex-deputado do PCP Manuel Loff:

   “Até ontem, os países da NATO, um após outro, exortavam Israel a não invadir o Líbano e enviavam a este país aviões… para recolher o seu pessoal diplomático eos cidadãos que queiram e, num país onde um milhão de pessoas (uma em cada cinco) tiveram de fugir de casa, se conseguiam sair. Mas não enviaram aviões de combate para reforçar as Forças Armadas libanesas contra o invasor israelita, como fizeram com a Ucrânia. O que vale para a Ucrânia não vale. Num ano inteiro não valeu para Gaza, a Cisjordânia, territórios invadidos não há dois mas há 67 anos. Num ano morreram incomparavelmente mais civis em Gaza do que em mais de dois anos e meio na Ucrânia – e Biden e Von der Leyen pedem aos países árabes a mesma desescalada e diplomacia cujo oposto praticam intensamente há anos na Ucrânia. 

   “É insólito este medo de uma guerra generalizada na boca de quem governa deste lado do mundo. Ontem mesmo, Biden deu as ordens necessárias para comprometer (mais inda) os EUA nas guerras de agressão israelitas. Depois de terem justificado a chuva de mísseis sobre Beirute como uma merecida punição do Hezbollah, os EUA substituíram-se aos israelitas na interceção dos mísseis iranianos para proteger Netanyahu e os genocidas que o acompanham. E disponibilizam para a guerra os c43 mil soldados que, por vezes contra a vontade dos respetivos governos, têm na região. E assim se procura ‘evitar a guerra’.

   “A discussão da dualidade de critérios não é apenas moral. Ela tem implicações diretas nas vidas de milhões de pessoas. A dualidade mata. Em Gaza, na Cisjordânia, Israel comporta-se como um dos ocupantes mais sinistros da história, perpetrando represálias sobre população a população civil em termos que reproduzem as represálias nazis sobre as populações dos países ocupados na II Guerra Mundial, ou as dos norte-americanos no Vietname, dos franceses na Argélia. Neste momento, com o fluxo imparável de material bélico ocidental, Israel dispara (e mata) em todas as direções: Irão, Síria, I énen e agora, sobretudo o Líbano. Por enquanto ordena deslocações de populações; depois passará diretamente às deportações, seguindo o exemplo de Gaza. Bombardeia cidades ed campos de refugiados - dois milhões de palestinianos que na Nakba de 1948 expulsaram das suas casas, dos sírios que procuraram fugir da guerra que o Estado Islâmico e as guerrilhas que a Turquia (membro da NATO) e os EUA armaram em 2011.
   “Os EUA e Israel são há muito aquilo que no glossário imperial se tem chamado ‘Estados párias’: sequestros em prisões ilegais, tortura sistemática, assassinatos contrariando qualquer forma de direito nacional ou internacional. Israel é o Estado do planeta que mais resoluções da ONU incumpre, o seu chefe de governo tem um mandado de captura internacional, ataca estruturas e instalações das agências da ONU e assassina os seus funcionários (e médicos e jornalistas. E crianças…). E, contudo, aí estão os governos da EU a proibir por ‘antissemitas’ manifestações de solidariedade com as vítimas palestinianas e exigindo boicote e sanções a Israel. (…) As guerras israelitas, a sua necropolítica genocida, as décadas de ocupação impune, aplaudida, justificada, dizem tudo o que é hoje o Ocidente. A nossa posição perante elas diz tudo de cada um de nós.”

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Carlos Coutinho - [o Povo eleito por Deus}




* Carlos Coutinho

2024 10 03 
 
BARACK Obama é um providencial norte-americano cedo sentiu a necessidade de o demonstrar isso mesmo, a todo o momento, já que não é branco e, ainda por cima, nasceu em Honolulu, no Havai. 

   Caso contrário, nem candidato poderia ser e, se o fosse, estava sujeito a um fim semelhante ao de Luther King. E, se por qualquer confusão dentro do eleitorado, fosse para a Casa Branca, o que o podia esperar era um fim semelhante ao dos irmãos Kennedy.  Daí que uma das suas mais significativas cautelas enquanto presidente fosse uma arenga hipernacionalista na Academia de West Point, em 2014, enaltecendo o ”excecionalismo  americano” segundo o qual “os EUA têm direito de governar o mundo”, direito adquirido com a Guerra Fria.  

   Na sua versão, explicitada aos futuros oficiais das forças armadas do Tio Sam, “os EUA são e continuarão a ser a única nação indispensável”, que levou, anos depois, um coronel português notável enquanto escritor e historiador, Carlos Matos Gomes, a considerar (in Medium.com) que, na Palestina ocupada, essa política é uma continuada guerra de extermínio”, um “lento genocídio” que alimenta o projeto de Israel num estado judaico , um estado racialmente puro, só para os judeus, os arianos da região. 

   Como eu não podia estar mais de acordo, também não vejo diferenças na política norte-americana praticada no Médio Oriente e noutras partes de mundo, com ou sem a NATO servi-la.

A verdade, porém, é que o moreninho Barack, cristão protestante como tantos caçadores de índios de origem europeia, nem sempre se comportou como o mais nacionalista dos norte-americanos e até se dotou de um vice-presidente católico romano, Joe Biden, bem conhecido pela teia de interesses em que se meteu, sobretudo na Ucrânia, tal como Hunter, seu filho, encarregando-os de coordenar a política da Casa Branca para essas partes do planeta mergulhadas em guerras longas. 

   Confortado com esta realidade, o primeiro ministro Netanyahu, com a justiça à perna por vigarices várias e exibindo o seu desprezo pela ONU, a pontos de agora até declarar o seu secretário-geral, António Guterres, “persona non grata”, proibindo-o de entrar em Israel, e marimbando-se para o Direito Internacional, afirmou na cerimónia de posse do seu novo governo que “o povo de Israel tem o direito exclusivo e incondicional a todas partes das terras de Israel”  - incluindo os Montes Golã (da Síria), bem como a Judeia e a Samaria (territórios da Cisjordânia palestiniana) – e garantiu que continuaria a instalar colonatos e terra palestiniana.

   Também ao apresentar publicamente o último relatório submetido ao Conselho dos Direitos Humanos da ONU, reunido em Genebra, a relatora especial da ONU Francesca Albanese acusou Israel de haver “transformado os territórios palestinianos ocupados numa prisão a céu aberto, na qual os seus habitantes são permanentemente confinados, vigiados e punidos (…), considerados culpados de crimes não provados”, num processo de “encarceramento em massa”, além de submetidos a “bloqueios, muros, infraestruturas segregadas, postos de controlo e colonatos que cercam as suas cidades e vilas, centenas de autorizações burocráticas e uma teia de vigilância digital que empurram cada vez mais os palestinianos para uma continuidade carcerária, através de enclaves controlados”.

   O que eles aprenderam com Hitler…  E como gosram de o imitar!

   Talvez seja de recordar que os EUA de Obama estão na Europa, na América Latina, no Médio Oriente e na Ásia com bases militares que servem para impor as suas “regras”, sendo que os dois partidos alternantes no poder dependem dos fundos provenientes da indústria bélica para financiarem as suas campanas eleitorais. 

   E são pressionados pelos fabricantes de armamento, sabendo Obama, tal como os seus antecessores e sucessores, que desafiar o a economia de gurra permanente significa ser-se rotulado de antipatriota.
   Manda o tal “complexo militar industrial” e o resto são cantigas. 

Contou o monstruoso e insigne Brzezinski, um governante americano ex-polaco, que os EUA investiram cinco a seis milhões de dólares a empurrar a URSS para o Afeganistão, revelando que o grande democrata James Carter assinou a primeira diretiva para ajuda secreta aos oponentes do governo de esquerda do Afeganistão, organizando, armando, doutrinando e financiado os talibãs e outros grupos terroristas formados em diversos países. 

   O resultado foi mais de um milhão de mortos e o hediondo retrocesso civilizacional a que estamos a assistir. Neste momento as mulheres já são proibidas de aprender a ler e escrever.

   O prof. Daniel Bessener (Universidade da Washington) estudou os feitos mais marcantes do “século americano” e apurou que os EUA, durante a Guerra Fria, os EUA impuseram “modificações de regime no Irão, Guatemala, República Democrática do Congo, Guiana Britânica, Vietname do Sul, Bolívia, Brasil, Panamá, Indonésia, Síria e Chile, matando Lumumba e Allende.  

   Gabriel  Rockhill, por sua vez, afirma que os EUA são o único país que, nos tempos recentes, “se esforçou para derrubar mais de 50 governos estrangeiros; estabeleceu uma agência de inteligência que matou pelo menos 6 milhões de pessoas nos primeiros 40 anos a sua existência; desenvolveu uma draconiana rede policial-vigilante para destruir quaisquer movimentos políticos domésticos que desafiassem o deu domínio; construiu um sistema de encarceramento em massa que tem detida uma percentagem da população maior do que qualquer outro país do mundo e que está inserido numa rede global de prisões secretas e regime de tortura.”

   O historiador Paul Thomas Chamberlain calcula que pelo menos 20 milhões de indivíduos morreram em conflitos da Guerra Fria, o equivalente a 1 200 de mortes por dia, durante 45 anos”, cita o prof. António Avelãs Nunes em “Este É o Tempo dos Monstros”

Acho que cega de estatísticas v e notícias de necrotério. 

   Fiquemos por aqui.

“O Massacre dos Inocentes”, segundo Rubens. Ordenado por quem? Por Herodes, um rei judeu ao serviço do Império Romano. Hoje, o que era mais certo era que ele se chamasse Netanyahu, visto que é o Sacro Império Romano-Americano que o atual mostrengo judeu está a servir. Embora nem sempre pareça…

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terça-feira, 24 de setembro de 2024

João Vasconcelos-Costa -- SEMÂNTICA?

 * João Vasconcelos-Costa

2024 09 24
 
Num grupo de amigos que ainda teimam em refletir sobre coisas antigas e esquecidas, falava-se deste ciclo comemorativo do cinquentenário do 25 de Abril. Há meses, foi celebrado o dia memorável, o que, na minha idade, me faz dizer que valeu a pena viver na nuvem de tempo que passou também por essa data. Mas o processo foi complexo e envolveu outras datas que não podemos esquecer, até para o mais importante: tirar lições para hoje e amanhã.
Já passou entretanto uma efeméride muito importante: 27 de julho, um dia de fel e vinagre para Spínola, obrigado a vir perante as câmaras anunciar a lei da descolonização e o reconhecimento por Portugal do direito à autodeterminação, com todas as suas consequências, incluindo a aceitação da independência das colónias.
Daqui a quatro dias, o 28 de Setembro (o dia em que regressei a Portugal, depois de um ano de estadia na Suíça e em que muitos soldados simpáticos, nas barricadas, tiveram pena de mim e me dispensaram da revista ao carro, atulhado de bagagem). Foi a data da primeira tentativa de regresso ao salazar-fascismo, cavalgada por Spínola. Não me consta que vá ter comemoração oficial, mas a Associação 25 de Abril vai fazer uma sessão evocativa.
Para o ano, o 11 de Março, as eleições de 25 de abril para a Constituinte, as independências das colónias e, finalmente, a data mais controversa, o 25 de Novembro.
Não é um simples acontecimento do passado. Ainda estão vivos muitos dos que, empenhados a fundo no processo revolucionário, vieram a sofrer, com prisão ou graves prejuízos de carreira, as consequências desse acontecimento. Mas, ao mesmo tempo, também já se passou tempo para fechar feridas, refazer entendimentos ancorados em Abril, reconhecer – mesmo os vencedores do dia – que se falhou em coisas essenciais, a manutenção da unidade no MFA e na sua ligação ao movimento popular e que (sem discutir a honestidade das motivações e dos princípios democráticos convencionais do campo vencedor) houve cedências muito graves e perigosas a forças reacionárias e a ingerências estrangeiras, bem como na resistência ao revanchismo da hierarquia em relação aos militares revolucionários.
E não são só os militares, os que no campo da esquerda militar (esquerda não esquerdista) sofreram as consequências, que provaram o sabor amargo da derrota. A minha geração civil também se dividiu. Muitos consideram o 25 de Novembro como positivo. Não ponho no mesmo saco os reacionários saudosistas do fascismo e aqueles que discordavam de um processo que ia contra as suas posições antifascistas muito moderadas, que não eram as minhas mas que respeito – o sentimento democrático mas espartilhado pela conceção formal, liberal, da democracia, a justiça social mas no quadro do sistema capitalista. Para mim, que tenho uma visão revolucionária da História, foi um dia amargo, que interrompeu um processo aliciante. Mas também, devo admiti-lo, um processo histórico (no sentido de incontrolável à escala humana) com muito do que costumo chamar o "sindroma chileno", as perversões perigosas derivadas do esquerdismo, do sectarismo, do voluntarismo irrealista. Como talvez tenha acontecido com muitos revolucionários no Terror ou depois de Outubro, por vezes perguntava-me se, na sociedade que se construiria naquela via, eu que não escondia as minhas críticas ao que considerava como erros perigosos (e, à Talleyrand, um erro é pior do que um crime) não viria a ser preso político ou, noutros tempos, guilhotinado?
O que é hoje importante é enquadrar esse acontecimento num processo global, para extrair ensinamentos, porventura ainda importantes para a situação atual.
Isto tem a ver com o título desta nota. Na tal conversa, veio à tona, por natural lapso de língua, a expressão "comemorar (ou celebrar) o 25 de Novembro". Retorqui que não devíamos dizer isso, mas sim "evocar", um termo neutro, situado no domínio cognitivo, sem a carga emotiva de "comemorar". Creio que pode ter ficado a ideia de esta minha observação ser um preciosismo, uma mera questão semântica.
Como até Eanes disse uma vez, as datas divisivas não se comemoram. Já basta o que se tem visto e se vai ver ainda mais, até daqui a dois meses, como tentativa reacionária para oficializar, até a nível parlamentar, a celebração do 25 de Novembro, quase que a par do 25 de Abril.
Aproveitemos a data para refletir serenamente e pensar, lembrando a metáfora pitoresca de Cunhal, que, no processo histórico, há sempre curvas muito apertadas no caminho. O verão de 1975 e o que se lhe sucedeu até 25 de Novembro foi um caso desses, assim como hoje, não só em Portugal, vivemos tempos escuros de contradição, perigo, perplexidade e até, sem que isto seja delírio catastrofista, a ameaça de uma tragédia final, de guerra nuclear.
Muitos anos depois do 25 de Novembro, os militares souberam reencontrar-se e relembrarem o essencial do que os unia, e isto sem cedências de convicções, de parte a parte. A Associação 25 de Abril é hoje um símbolo dessa unidade no essencial, que ainda não tem equivalente na área civil, política e social. Pela lei da vida, este importante símbolo, corre o risco de falecimento, tanto quanto os seus membros ativos. Um papel mais ativo da A25A neste ciclo de comemorações e evocações pode contribuir para a passagem de testemunho para as gerações seguintes. Já estamos a viver tempos que justificam a formalização de um movimento antifascista. Passa por entendimentos institucionais, entre partidos, mas também pela ação da sociedade civil. Que não se desperdice um instrumento já existente e com enorme valor simbólico, a A25A. Eu sou sócio. E tu?

https://www.facebook.com/jvascosta/posts/pfbid0

domingo, 22 de setembro de 2024

José Gameiro - Os pais não são amigos dos filhos

* José Gameiro

Psiquiatra e piloto

Seria impensável há poucas gerações que os filhos comentassem opções amorosas ou de outro tipo, dos pais
 
19 setembro 2024 

Otítulo pode parecer chocante, para os que pensam que o papel e a responsabilidade dos pais é serem solidários, compreensivos, educadores, cuidadores dos seus filhos. Sem dúvida que quase todos somos, fazemos tudo por eles, sofremos quando eles sofrem, apoiamos quando mais ninguém é capaz de o fazer.

Mas a relação dos pais com os filhos tem evoluído. Na infância nada de muito substancial terá mudado, a mais significativa alteração é a muito maior responsabilização dos homens. Os estereótipos clássicos, figura afetuosa e figura de autoridade, tendem a esbater-se, de uma forma em que os dois papéis se confundem e são solidários entre si.

O papel da família enquanto fonte de modelos relacionais, de transmissão de valores, até de endogamia social, tem vindo a sofrer uma notável mudança, em que outros atores podem ser de grande importância. Quantas vezes queremos falar com os filhos sobre questões mais sensíveis, como a questão sexual, e ouvimos, já sei tudo. Relações sexuais, cuidados a ter, preservativos, pílula do dia seguinte e outras tretas, como eles, por vezes, nos dizem.

Posso estar a ser injusto ou exagerado, mas instalou-se, nalgumas famílias, um novo paradigma. Os pais e os filhos são amigos. Esta relação pressupõe que são iguais, falam de igual para igual, tentando que desapareça, não a autoridade, que naturalmente na vida adulta dos filhos já quase não existe, mas que seja uma relação em que nos aceitamos uns aos outros, tal como os amigos fazem, sem críticas, sem remoques, com total abertura de todas as confidências.

Seria impensável há poucas gerações que os filhos comentassem opções amorosas ou de outro tipo, dos pais. Atualmente, qualquer comentário sobre um genro ou uma nora, feito discretamente, a casa vem abaixo. A própria relação dos avós com os netos é frequentemente condicionada e vigiada. No entanto, os filhos permitem-se opinar sobre estilos de vida e outras formas de estar dos pais, como se estivessem numa roda de amigos e dissessem, mas tu és parvo ou quê?

Há pais que vão atrás disto. Engolem sapos, em nome da paz familiar, encostando-se cada vez mais às tábuas, desculpem-me a imagem tauromáquica. Os que o fazem, ou decidem que passaram a ser amigos dos filhos, ou foram obrigados a prescindir de um valor secular, a responsabilidade, até à morte, de mostrarem os valores que têm, mesmo que aceitem que tudo mudou e nada era como dantes. É esta confusão entre culturas geracionais e desrespeito por uma autoridade, sempre discutível, mas necessária, que tem feito com que, por vezes, vemos famílias em que não conseguimos reconhecer os laços de sangue. Exagerado, com certeza.  

Quando num casal acontece um divórcio e a constituição de uma nova relação, o receio de alguns dos futuros “nubentes” acerca da reação dos filhos pode ser assustadora, como se os filhos tivessem qualquer direito de opinar sobre as escolhas amorosas dos pais. Se numa roda de amigos, podemos dizer, eh pá, vais viver com essa gaja ou com esse gajo, que disparate, fazer o mesmo em relação aos pais é considerar que o à vontade, à vontadinha, como agora se diz, é completo.

Podem pensar e bem, que isto é conversa de velho. Mas não é só. Confundir filhos adultos, com direito à sua vida e as suas opções, com amigos, pode ser mais prático e calmo do que manter a hierarquia, mas não se esqueçam que eles são nossos filhos e que, em situações limite, não nos querem como amigos, querem-nos como pais.

https://expresso.pt/opiniao/2024-09-19-os-pais-nao-sao-amigos-dos-filhos-2b013641

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

1832 – Publicação de «Da Guerra», de Clausewitz




O ge­neral prus­siano Carl von Clau­sewitz (1780-1831), para muitos «o mais pro­e­mi­nente es­tra­te­gista mi­litar e po­lí­tico da guerra li­mi­tada nos tempos mo­dernos», é uma fi­gura con­tro­versa que des­pertou o in­te­resse de per­so­na­li­dades tão dis­tintas como Lé­nine, Mao, Ei­se­nhower ou Henry Kis­singer. A sua obra-prima, Da Guerra (Vom Kriege, em alemão), es­tu­dada à época pelos mi­li­tares prus­si­anos, con­tinua a constar do pro­grama das aca­de­mias mi­li­tares dos EUA. Es­crito entre 1816 e 1830, o tra­tado sobre guerra e es­tra­tégia mi­litar ainda pro­voca po­lé­mica, sendo visto por uns como a favor da “guerra total”, e por ou­tros como en­si­nando a su­bor­dinar a guerra à po­lí­tica e aos con­flitos so­ciais. Equi­pa­rado a Tu­cí­dides, o ge­neral e his­to­ri­ador ate­ni­ense autor da ví­vida obra sobre a Guerra do Pe­lo­po­neso, Clau­sewitz tanto é apon­tado como a maior re­fe­rência his­tó­rica do pen­sa­mento es­tra­té­gico como acu­sado de ter aberto a porta às guerras to­tais do sé­culo XX. «A guerra é a mera con­ti­nu­ação da po­lí­tica por ou­tros meios», uma das frases mais fa­mosas do nosso tempo, é da sua au­toria. Ins­pi­rado no pen­sa­mento de Ma­qui­avel, Mon­tes­quieu, Kant e Fi­chte, Clau­sewitz ba­seia a sua obra, se­gundo al­guns ana­listas, num mé­todo se­me­lhante à di­a­léc­tica ló­gica de Hegel e Marx.

https://www.avante.pt/pt/2651/memoria/176998/1832-%E2%80%93-Publica%C3%A7%C3%A3o-de-%C2%ABDa-Guerra%C2%BB-de-Clausewitz.htm

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Amílcar Cabral ~ Morreu Lumumba, para que África viva!



* Amílcar Cabral

Fevereiro de 1961
Fonte: Buala.

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.

O original deste documento encontra-se nos arquivos de Amílcar Cabral na Casa Comum da Fundação Mário Soares em Lisboa, incluído no dossier intitulado Correspondência e documentos dactilografados assinados por Amílcar Cabral 1960. Encontra-se na pasta n.º 04616.076.024. A sua reprodução foi possível através da generosa autorização da Casa Comum / Fundação Mário Soares. A transcrição, onde se procedeu à correcção de gralhas e à actualização da ortografia sem jamais truncar o sentido do texto, é da responsabilidade da editora FALAS AFRIKANAS. O documento fac-similado encontra-se Falas Afrikanas.

Na tarde de 13 fevereiro de 1961, um comunicado proveniente do Katanga anunciou ao mundo a morte de PATRÍCIO LUMUMBA, primeiro ministro do Congo e dos seus companheiros de prisão, os ministros OKITO e M’POLO.

Esta notícia foi geralmente acolhida com espanto, horror e repulsa. Para a África que quer ser VERDADEIRAMENTE livre, é uma notícia de LUTO.

Nos dias seguintes, soube-se que, na realidade, LUMUMBA e seus companheiros tinham sido ASSASSINADOS pelos militares belgas havia já várias semanas, aquando da sua transferência da prisão de Thysville para o Katanga. Esta revelação veio ainda aumentar a indignação internacional.

As reacções a esse bárbaro e cobarde assassinato se fizeram imediatamente sentir, e continuam a manifestar-se no dia-a-dia: em quase todas as capitais e principais cidades do mundo as embaixadas da Bélgica e também as dos Estados Unidos foram atacadas pelo povo; diversas manifestações produzem-se todos os dias, não somente contra aqueles países mas também contra a Organização das Nações Unidas e principalmente contra o seu Secretário-Geral, Dag Hamarskjoeld, que é justamente acusado de principal responsável do assassinato de Lumumba e dos seus companheiros, como veremos mais adiante.

Na República da Guiné, o 14 de fevereiro foi decretado dia de luto nacional; após um meeting, o Governo tomou as seguintes decisões: 1.º: Mandar um enérgico telegrama às Nações Unidas, acusando essa Organização da responsabilidade desse odioso crime, e exigindo a imediata demissão do Secretário-Geral DAG HAMARSKJOELD; 2.º: Reconhecer o Governo do senhor Gizenga (sucessor legal de Lumumba), como único Governo legal do Congo, prometendo-lhe todo o seu apoio na sua luta para desembaraçar o Congo dos colonialistas e imperialistas; 3.º: Condecorar Patrício LUMUMBA, a título póstumo, com o grande cordão da Ordem da Fidelidade ao Povo (a Guiné já tinha agraciado LUMUMBA com o colar de COMPANHEIRO DA INDEPENDÊNCIA AFRICANA).


O Gana, o Mali, Marrocos, Indonésia, Cuba, Jugoslávia, Albânia, Polónia, Alemanha Oriental e a República Árabe Unida, também decretaram luto nacional, acusaram as Nações Unidas desse crime, exigiram a demissão de Hamarskjoeld, e reconheceram o Governo de GIZENGA, a quem estão dispostos a ajudar.

A União Soviética, não somente exigiu a demissão de Hamarskjoeld, mas declarou que, DESDE JÁ, deixava de o reconhecer como Secretário-Geral das Nações Unidas, e que vai ajudar a luta do Povo Congolês contra os imperialistas e seus lacaios.

Estamos certos que outros países que ainda não se pronunciaram, virão engrossar a lista de protesto contra esse bárbaro e selvagem assassinato.

Nenhuma dúvida subsiste em como o assassinato de Patrício LUMUMBA foi friamente tramado pelos imperialistas com a cumplicidade das Nações Unidas e do seu Secretário-Geral DAG HAMARSKJOELD, cuja atitude desde o início da questão congolesa foi mais que suspeita e por várias severamente criticado.

A opinião internacional está cada vez mais revoltada contra esse odioso assassinato, e é ainda muito cedo para prever as consequências de um tal barbarismo.

Mas, porque foi friamente tramado e executado esse bárbaro assassinato?

Porque quando o Colonialismo é forçado a retirar, ele deixa em seu lugar o neocolonialismo e o Imperialismo, tanto ou mais perigosos que o primeiro.

Porque no Congo os imperialistas tinham os seus dias contados enquanto vivesse Lumumba.

Porque LUMUMBA era um verdadeiro AFRICANO que não se deixava COMPRAR ou ser comandado pelos imperialistas.

Porque LUMUMBA era um patriota que lutava pela unidade dos povos do Congo e uma verdadeira INDEPENDÊNCIA DO SEU PAÍS.

Porque LUMUMBA lutava por um CONGO LIVRE, no seio de uma ÁFRICA LIVRE, sem obediência a quaisquer estrangeiros.

Porque LUMUMBA nunca cedeu às manobras dos imperialistas.

Porque LUMUMBA teve a coragem de lhes dizer publicamente: COLONIALISTAS E IMPERIALISTAS, FORA DE ÁFRICA! BASTA DE EXPLORAÇÃO DAS NOSSAS TERRAS!

Porque LUMUMBA foi sempre FIEL AO POVO que confiava nele, como o único que os poderia libertar do colonialismo, do neocolonialismo e do imperialismo.

Há 80 anos que o Congo, um país de 1.500.000 quilómetros quadrados (como França, Grã-Bretanha, Espanha, Portugal e Bélgica reunidos), com uma população de 14 milhões de habitantes, foi ocupado pelos belgas, um minúsculo povo europeu que, como todos os outros colonialistas, arrogaram-se da sagrada missão de trazer a África os “benefícios” dessa famosa civilização que ninguém encomendou, e que de resto não “espalharam”; como também todos os outros colonialistas, o que lhes interessava eram as imensas riquezas desse enorme país, cheio de recursos, terra de promissão para os famélicos belgas e fonte de receita para a insignificante Bélgica. Por isso, eles fizeram tudo para não perder o Congo, que nunca contavam abandonar (nem daqui a cinquenta anos)!

Para tal, o objectivo número um consistia em manter o povo na ignorância o mais longamente possível, o que se resume na célebre frase do General Janssens: “SEM ELITES, NÃO HÁ ABORRECIMENTOS”. E isso foi levado a cabo de tal maneira que hoje, após OITENTA ANOS da “presença civilizadora” dos belgas, somente seis congoleses obtiveram um diploma universitário, e isto à custa d’enormes sacrifícios das suas famílias. Apenas uns milhares sabem “ler e escrever”.

Essa revoltante política de ignorantismo e escravidão foi confiada às várias missões religiosas, subvencionadas pelos Belgas, que desempenharam com afinco a sua missão. Segundo as numerosas brochuras publicadas pelas missões, o catecismo dos congoleses, que eram tratados como “crianças crescidas”, consistia unicamente no RESPEITO E SUBMISSÃO AO BRANCO. Numa delas lê-se: O CONGOLÊS DEVE PREFERIR O CHICOTE DOS BELGAS À FOICE COMUNISTA. (Como se sabe, hoje em dia quando um povo aspira à sua liberdade é imediatamente acusado pelos colonialistas de “comunista” ou então dirigido por “comunistas”, pagos por Moscovo, como se nenhum povo quer ser livre sem ser comunista. Mas isto é já conversa fiada…).

Na já conhecida política de “dividir para reinar”, os colonialistas belgas atiçavam as rivalidades tribais, fomentando sangrentas lutas fratricidas entre as diversas raças do Congo.

E enquanto os congoleses se matavam entre eles, na miséria, na ignorância, na fome, e na escravidão, “sob o chicote dos Belgas”, esses novos “donos” da terra, com os seus amigos imperialistas esgotavam as riquezas do país, enriqueciam-se sem o menor esforço enquanto o povo morria de fome. O Congo pertencia aos grandes “trusts” internacionais. Só um banco, a “Sociedade Geral” possuía CINQUENTA empresas, entre as quais TRÊS companhias de Caminho-de-ferro!

Trinta mil Belgas ganhavam mais do que UM MILHÃO de Africanos!

Nunca uma “Colónia” rendeu tanto!

Foi então que apareceu PATRÍCIO LUMUMBA.

Filho do povo que sofreu todas as misérias e opressões do regime colonialista, esse originário de uma das menos importantes tribos do Congo, os Batetelàs, Patrício LUMUMBA conseguiu elevar-se entre os seus compatriotas pela sua firmeza de carácter, sua incorruptibilidade, sua decisão firme e inabalável de UNIR OS CONGOLESES e LIQUIDAR O COLONIALISMO.

Em 1958, numa época de plena euforia colonialista belga, época em que no Congo só existiam “associações” tribais ou regionalistas consentidas pelos colonialistas e que pelas suas rivalidades e lutas constantes enfraqueciam o país e só favoreciam os colonialistas, nesse ano, Patrício LUMUMBA formou o MOVIMENTO NACIONAL CONGOLÊS, verdadeira organização política, sem distinções de raças, origens ou religiões, que tinha como principal objectivo a UNIDADE do país e a LUTA pela sua Independência.

Em menos de dois anos, apesar das repressões colonialistas e dos ataques das “associações” raciais e regionalistas, o MOVIMENTO NACIONAL CONGOLÊS tornou-se a maior organização política do país, e a única que lutava ferozmente pela independência do Congo. E a sua luta ininterrupta foi tão renhida e tão bem dirigida que em princípios de 1960, os Belgas, que não esperavam largar o Congo nem daqui a cinquenta anos, manifestaram a sua intenção de negociar uma “autonomia”, que foi aceite pelos outros partidos. Mas imediatamente viu-se que nada se poderia levar a efeito no Congo sem o MOVIMENTO NACIONAL CONGOLÊS. Então LUMUMBA, que se encontrava encarcerado, foi libertado e conduzido a Bruxelas para fazer parte da “mesa redonda”, onde se negociava o futuro do Congo.

Durante essas negociações, os belgas disseram: vocês não sabem nada, não estão preparados, de maneira que devem contentar-se com uma pequena liberdade, uma semi-autonomia sob a nossa protecção. LUMUMBA respondeu aos Belgas: NÓS QUEREMOS A NOSSA INDEPENDÊNCIA! NÃO QUEREMOS MAIS FICAR SOB A DOMINAÇÃO ESTRANGEIRA!

E perante essa atitude inabalável e intransigente de Lumumba, os Belgas tiveram que ceder. Mas cederam na intenção de continuar na mesma a explorar o Congo como dantes por meio de acordos, tratados, etc., pois ainda consideravam os africanos como “crianças crescidas” que eles poderiam facilmente continuar a dirigir em seu proveito. Mas foram depressa desenganados. Imediatamente após a proclamação da independência, os Belgas e seus aliados imperialistas, que tinham interesses no Congo mais do que a própria Bélgica, viram que com LUMUMBA no Governo do Congo, findava-se a exploração do Congo e que o Congo passaria a pertencer inteiramente aos congoleses. Então os imperialistas utilizaram todos os meios para se desembaraçarem de LUMUMBA: os Belgas invadiram o Congo com tropas vindas da Europa, e além disso, fizeram com que TCHOMBÉ traísse LUMUMBA, declarando a secessão do Katanga, principal fonte de riquezas dos colonialistas e imperialistas no CONGO. O país, que apenas há alguns dias tinha adquirido a sua independência, não estava suficientemente organizado para castigar o traidor TCHOMBÉ e ao mesmo tempo resistir à agressão estrangeira.

Então, LUMUMBA fez apelo à Organização das Nações Unidas para o envio de tropas que o ajudasse a correr com os invasores Belgas e restabelecer a paz no país.

Pela acção das suas tropas e do seu Secretário-Geral Hamarskjoeld no Congo, as Nações Unidas revelaram ao Mundo e especialmente aos povos africanos que lutam pela sua liberdade que essa organização é um simples instrumento dos imperialistas. Com efeito, em vez de ajudar LUMUMBA, as Nações Unidas, pelo seu Secretário-Geral HAMARSKJOELD fizeram tudo para destituir LUMUMBA e colocar na chefia do Governo um homem de palha de sua devoção. Proibiu Lumumba de utilizar a rádio do seu país, não permitiu a reunião do Parlamento, que se manteve sempre fiel a LUMUMBA. Por fim, vendo que não havia maneira de destituir LUMUMBA pelas vias legais, as Nações Unidas e alguns países imperialistas procederam à obra de divisão, pela CORRUPÇÃO, do povo congolês. Foi assim que os imperialistas, por intermédio das Nações Unidas forneceram dinheiro, armas e munições ao coronel MOBUTU, chefe de estado-maior, homem de confiança de LUMUMBA, e fecharam os olhos à acção deste ignóbil INDIVÍDUO que TRAIU seu protector, TRAIU seu país, e TRAIU todo o Povo Africano, pois o caso do Congo é o caso de toda a África.

Finalmente, com conhecimento de HAMARSKJOELD e sem a menor reacção das suas tropas, as forças do TRAIDOR Mobutu, armadas e pagas pelas Nações Unidas, prenderam, maltrataram, espancaram até morrer, o grande patriota africano PATRÍCIO LUMUMBA, que só queria desembaraçar o Congo e a África dos Colonialistas e dos Imperialistas.

Vê-se, pois, que o principal responsável do maior crime da História Africana é o Secretário-Geral DAG HAMARSKJOELD que, para servir os interesses imperialistas, TRAIU Lumumba, que o chamou em seu socorro, TRAIU o conselho de Segurança que lhe tinha dado instruções precisas para ajudar LUMUMBA a pacificar o país, e TRAIU também todas as Nações que aspiram à LIBERDADE, e que até aqui depositavam inteira confiança nele.

Portanto DAG HAMARSKJOELD deve-se demitir, para que os povos que lutam pela liberdade possam enfim obter a sua independência.

LUMUMBA morreu, mas o “LUMUMBISMO” continua; mais vivo do que dantes. O “Lumumbismo” é hoje em dia a incarnação da luta de todos os povos pela sua liberdade, sua independência, pela liquidação completa do COLONIALISMO e do IMPERIALISMO.

LUMUMBA MORREU, PARA QUE A ÁFRICA VIVA, LIVRE, INDEPENDENTE E UNIDA.

POVOS DA GUINÉ E CABO VERDE:

Este longo relato sobre o que se passa no Congo, é muito interessante para nós. Leiam atentivamente este artigo, e encontrarão as mesmas semelhanças com o nosso caso, com o que se passou, com o que se passa nas nossas terras, desde a nossa situação de miséria, ignorância e escravidão, até aos nosso actuais problemas de UNIDADE para a LUTA. Porque a principal condição de LUTA é a UNIDADE.

Patrício LUMUMBA foi assassinado, porque os imperialistas COMPRARAM alguns traidores que provocaram a DIVISÃO do povo congolês. Ele não poderia ser assassinado se o povo continuasse UNIDO. 

Também nas nossas terras, onde sofremos a miséria, a fome, a escravidão, as nossas riquezas são exploradas pelos colonialistas e pelos “trusts” imperialistas. Apesar da bárbara repressão colonialista, conseguimos formar o PARTIDO AFRICANO DA INDEPENDÊNCIA, que é o único partido que não faz distinção de raças, origens, etc. O PARTIDO AFRICANO DA INDEPENDÊNCIA procura a UNIDADE dos nossos povos para a LUTA contra o colonialismo e contra o imperialismo. No interior como no exterior, nós somos cada vez mais fortes, a nossa luta cada vez mais renhida; temos a ajuda de todos os povos do mundo; agora a nossa vitória é certa, e já não está longe.

Mas, tomem cuidado! Deveremos agora ser mais vigilantes que NUNCA! Os colonialistas fizeram e fazem tudo para entravar a nossa luta: prisões, perseguições, desemprego, fome, etc. tudo SEM RESULTADO!

Agora, como eles vêem que estamos quase a correr com eles, os colonialistas e imperialistas começam a utilizar esta outra arma, mais perigosa, que é a DIVISÃO.

Eles estão a COMPRAR alguns dos nossos irmãos, para TRAÍREM a nossa causa, fomentando a discórdia entre os nossos povos com questões de raças, origens, religiões, etc.

Alguns desses traidores vendidos aos colonialistas, já começaram a sua nefasta campanha de DIVISÃO, procurando assim entravar a nossa LUTA.

Esses lacaios dos colonialistas que só procuram seus interesses pessoais, sabem conscientemente que estão a TRAIR os nossos povos, e que estão a SERVIR os COLONIALISTAS.

Portanto, esses indignos africanos SÃO TRAIDORES À CAUSA AFRICANA, e como TRAIDORES devem ser tratados.

Povos da Guiné e Cabo Verde! Vejam o caso do Congo:

O único partido que lutou e conseguiu a independência, é o partido que não fazia questões de raças, de origens, etc. O Nosso Partido Africano da Independência, que é o ÚNICO que LUTA pela independência das nossas terras, é também o ÚNICO que não faz questões de raças, origens, etc. O lema do nosso Partido É UNIDADE e LUTA. UNIDADE de todos para a LUTA contra o nosso inimigo: O COLONIALISMO E O IMPERIALISMO.

Irmãos da Guiné e Cabo Verde! Continuemos sempre UNIDOS.

NÓS NÃO QUEREMOS AUTONOMIA. NÓS QUEREMOS A NOSSA INDEPENDÊNCIA COMPLETA!

Nas nossas terras não haverá TRAIDORES como TCHOMBÉ, MOBUTU e OUTROS.

Nas nossas terras haverá UNIDADE, PROSPERIDADE E BEM ESTAR.

Irmãos, PORTUGUÊS, é o europeu que nasceu em Portugal.

Qualquer africano que disser: EU SOU PORTUGUÊS, é um lacaio dos colonialistas, é um TRAIDOR, que deve ser LIQUIDADO de qualquer maneira.

E também o africano que disser que o Fula não é igual ao Bijagó, que os guineenses não devem dar-se com os caboverdianos, etc. etc. esse africano é também UM TRAIDOR, que deve ser ELIMINADO.

Todos os africanos que disserem que são portugueses ou que tentam dividir-nos com questões de raças, origens, etc. são traidores à causa africana, pagos pelos colonialistas para retardarem a liberdade e a independência dos povos africanos.

Esses traidores devem morrer!

Conacry, fevereiro de 1961.

https://www.marxists.org/portugues/cabral/1961/02/40.htm

Amilcar Cabral - Lénine e a luta de libertação nacional



Uma luz fecunda ilumina o caminho da luta

*  Amilcar Cabral

Abril de 1970

Observação: Retomamos, nesta pequena brochura, editada pela Comissão de Informações do Partido, parte dos temas abordados no nosso discurso improvisado no Symposium d'Alma-Ata - República Socialista Soviética do Cazaquistão, em Abril de 1970.

Fonte: http://www.didinho.org/Arquivo/umaluzfecundailuminaocaminh.html

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.

 O valor e o carácter transcendente do pensamento e da obra humana, política, científica, cultural — histórica— de Vladimir llitch Lénine são há muito já um facto universalmente reconhecido. Mesmo os mais ferozes adversários das suas ideias tiveram de reconhecer em Lénine um revolucionário consequente, que soube dedicar-se totalmente à causa da revolução e fazê-la, um filósofo e um sábio cuja grandeza só é comparável à dos maiores pensadores da humanidade. 

Actualmente, não é raro ouvir políticos—mesmo os mais anti-socialistas — citar Lénine ou gabar-se de ter lido as suas obras. É evidente que não podemos acreditá-los à letra, mas isso dá bem a medida da importância (mesmo da necessidade) do pensamento de Lénine e da vastidão das consequências práticas da sua acção no contexto histórico actual. 

Para os movimentos de libertação nacional, cuja tarefa é fazer a revolução, modificando radicalmente, pelas vias mais adequadas, a situação económica, política, social e cultural dos seus povos, o pensamento e a acção de Lénine têm um interesse especial. 

Mas Lénine não deixou apenas a sua obra. Foi e continua a ser um exemplo vivo de combatente pela causa da humanidade, pela libertação económica e portanto nacional, social e cultural do homem. A sua vida e o seu comportamento como personalidade humana contêm lições e exemplos úteis para todos os combatentes da libertação nacional. Entre essas lições, as que nos parecem ser da maior acuidade para os movimentos de libertação referem-se ao comportamento moral, à acção política, à estratégia e à prática revolucionárias. 

No âmbito geral do movimento de libertação nacional, especialmente em condições como as nossas, o comportamento moral do combatente, em particular dos dirigentes, é um factor primordial que pode influenciar significativamente o êxito ou o fracasso do movimento. É evidente que a luta é essencialmente política, mas as circunstancias políticas, económicas e sociais —históricas—, em que se estrutura e desenvolve o movimento, conferem aos problemas de natureza moral uma particular importância, devido principalmente às fraquezas próprias do movimento nacional de libertação nas colónias, ao oportunismo ou às possibilidades de oportunismo que o caracterizam, às pressões e manhas utilizadas pelo inimigo imperialista, assim como à dificuldade, mesmo a impossibilidade de um controle do movimento e dos seus chefes pelas massas populares nacionalistas.

 No movimento de libertação, como em qualquer outro empreendimento humano — e sejam quais forem os factores materiais e sociais que condicionem a sua evolução —, o homem (a sua mentalidade, o seu comportamento) é o elemento essencial e determinante. 

Lénine foi um exemplo de coerência consigo mesmo e de coerência entre as palavras e os actos. Soube, através de toda a evolução característica da sua personalidade, permanecer igual a si mesmo na verticalidade das suas opções e dos seus actos. Estes sempre corresponderam às suas palavras, pois soube rejeitar o verbalismo fácil, a adulação e a demagogia. 

Lénine foi um exemplo de honestidade, de probidade, de sinceridade e de coragem. Sempre colocou acima de todas as suas conveniências a necessidade de observar rigorosamente os deveres da moral e da justiça, recusar a mentira e praticar a verdade, sejam quais forem as consequências ou os problemas que possa criar. 

Como um ser humano integral, soube amar e odiar. Amar a causa da libertação do homem de qualquer espécie de opressão, a aventura maravilhosa que é a vida humana, tudo o que há de belo e construtivo no planeta. Odiar os inimigos do progresso e da felicidade do homem, o inimigo de classe, os oportunistas, a cobardia, a mentira, todos os factores de aviltamento da consciência social e moral do homem. Sempre considerou o homem como o valor supremo do Universo. A sua dedicação às crianças tornou-se lendária pois, para ele, esses seres delicados e tantas vezes incompreendidos, vítimas inocentes da exploração do homem pelo homem, são as flores da humanidade, a esperança e a certeza do triunfo de uma vida de justiça.

A luta de libertação nacional é, como já dissemos, uma luta política que pode revestir diversas formas, de acordo com as circunstâncias específicas em que se desenvolve. No nosso caso concreto, esgotámos todos os meios pacíficos ao nosso alcance para levar os colonialistas portugueses a uma modificação radical da sua política no sentido da libertação e do progresso do nosso povo. Só encontrámos repressão e crimes. Decidimos então pegar em armas para nos batermos contra a tentativa de genocídio do nosso povo, decidido a ser livre e senhor do seu próprio destino. 

O facto de travarmos uma luta armada de libertação em nada modifica o carácter essencialmente político do nosso combate. Pelo contrário, acentua-o. Ora, não há, não pode haver acção política, seja qual for a sua forma, sem princípios bem definidos, quer sejam bons ou maus. 

No plano político, Lénine foi um exemplo de fidelidade aos princípios. Soube fazer concessões sobre a forma de reivindicações, de acções, mas nunca sobre os princípios, principalmente quando se tratava de defender os interesses da classe e da nação que representava, assim como na prática consequente de um internacionalismo desprovido de reservas, de timidez ou de condicionalismos.

É igualmente uma lição de realismo, de noção clara da possibilidade e da oportunidade política, que encontra a sua expressão máxima na decisão de desencadear a insurreição de Outubro de 1917, apesar das enormes dificuldades para vencer as hesitações e as oposições mais ou menos fundamentadas. 

Uma lição de firmeza na via determinada para conduzir a acção política, ilustrada pelo combate sem tréguas que moveu a todos os desvios «de direita» ou «de esquerda» e que tantos inimigos lhe criou.

 Ultrapassando a concepção vulgar, segundo a qual a política é a arte do possível, Lénine demonstrou que é antes a arte de transformar o que é aparentemente impossível em possível (tornar possível o impossível), rejeitando categoricamente o oportunismo. Assim definida, a acção política implica uma criatividade permanente. Para ela, como para a arte, criar não é inventar. 

A acção de Lénine é caracterizada por uma grande flexibilidade construtiva. Em cada problema, em cada facto da luta, mesmo no mais negativo, soube discernir o lado positivo para dele extrair todas as vantagens e fazer avançar a luta. Nesse âmbito, como noutros, demonstrou uma perseverança a toda a prova. 

Ele, que considerava que «os factos são teimosos», era teimoso como os factos. Confiando na opinião dos outros, apesar disso, certo de que todo o combatente tem necessidade dos outros, sempre soube mudar de opinião quando a razão — a verdade científica — não estava do seu lado.

Crítico rigoroso, mesmo violento, tanto dos seus adversários como dos seus companheiros de luta caídos em erro, Lénine soube praticar exemplarmente a autocrítica. Sabia reconhecer os seus erros e elogiar o valor dos outros, mesmo dos seus mais ferozes adversários; mas soube usar de uma severidade sem limites para atacar os que considerava como inimigos de classe e da revolução. 

Lénine sempre demonstrou uma confiança sem limites na capacidade das massas, mas soube no entanto demonstrar claramente que estas nunca deviam agir com anarquia, sem um plano bem concebido, correspondendo às possibilidades concretas de acção. Para ele, as massas nunca devem ser acéfalas. 

No âmbito geral do movimento de libertação nacional, tal como em qualquer confrontação, pacífica ou não, há a necessidade vital de descobrir as leis gerais da luta e agir com base num plano geral concebido e elaborado a partir da realidade concreta do meio e dos factores em presença. Isto quer dizer que qualquer movimento de libertação necessita de uma estratégia.

Na elaboração dessa estratégia é preciso ser capaz de distinguir o essencial do secundário, o permanente do temporário. Sem nunca confundir estratégia e táctica, a acção deve basear-se numa concepção científica da realidade, seja qual for a influência dos factores subjectivos que é necessário enfrentar. 

Também nesse plano Lénine deu uma lição muito útil aos movimentos de libertação, aos combatentes da liberdade. Tinha uma nítida consciência do valor da unidade como meio necessário para a luta, mas não como um fim em si. Para Lénine, não se trata de unir todos em torno da mesma causa, por mais justa que ela seja, de realizar a unidade absoluta, de unir-se não importa com quem. A unidade, como qualquer outra realidade, está sujeita às transformações quantitativas, positivas ou negativas. A questão é descobrir qual é o grau de unidade suficiente que pode permitir o desencadear e garantir o avanço vitorioso da luta. E, posteriormente, preservar essa unidade contra todos os factores de dissolução ou divisão, tanto internos como externos. 

Por outro lado, Lénine tinha uma consciência profunda da necessidade de conhecer o melhor possível, na luta, as forças e as fraquezas do inimigo, tal como as nossas próprias forças e fraquezas. A concepção leninista da estratégia implica que devemos agir no sentido de aumentar as fraquezas do inimigo e transformar as suas forças em fraquezas e, simultaneamente, preservar e reforçar as nossas forças e eliminar as nossas fraquezas ou transformá-las em forças. Isto é possível pela aliança permanente e dinâmica entre a teoria e a prática.

 A vida de Lénine é a aplicação consequente desta máxima dialéctica de Paul Langevin: o pensamento deriva da acção e, no homem consciente, deve regressar à acção. Isso implica que, como Lénine demonstrou através de toda a sua vida, a acção deve basear-se na análise concreta de cada situação concreta. De acordo com Lénine, tanto na luta como em qualquer outro fenómeno em movimento, as transformações qualitativas só se operam a partir de determinado nível de modificações quantitativas, o que significa que o processo da luta evolui por etapas, por fases bem definidas. Nessa base e nesta perspectiva devem ser estabelecidas as tácticas a seguir, que são incompatíveis mesmo com os recuos que, em determinados momentos, podem ser o único meio de fazer progredir a luta.

Qualquer luta é experiência nova, seja qual for a soma de conhecimentos teóricos ou de experiências práticas que lhe dizem respeito. Qualquer luta implica, portanto, um determinado grau de empirismo, mas não é necessário inventar o que já o foi: é sim preciso criar nas condições concretas em que a luta se trava. 

Ainda neste ponto a lição de Lénine é pertinente: ele detestava tanto o empirismo cego como os dogmas. A assimilação crítica (dos conhecimentos ou das experiências dos outros) é tão válida para a vida como para a luta. O pensamento dos outros, filosófico ou científico —por mais lúcido que seja—, é apenas uma base que permite pensar e agir, portanto, criar. Para criar na luta é necessário conduzi-la, desenvolver todos os esforços e aceitar os sacrifícios necessários. A luta não é feita de palavras mas de acção quotidiana, organizada e disciplinada, de todos os elementos válidos. A actividade múltipla desenvolvida por Lénine no decurso de uma longa luta é um exemplo de continuidade e consequência, de esforços e sacrifícios, assim como da capacidade para mobilizar as forças necessárias no tempo e no espaço necessários.

Demonstrando que, numa luta, as dificuldades subjectivas são as mais difíceis de ultrapassar, Lénine tinha consciência desta realidade: a luta é feita de êxitos e fracassos, de vitórias e derrotas, mas avança sempre e as suas fases, mesmo as mais idênticas, nunca se repetem, pois a luta é um processo e não um acidente, uma corrida de fundo e não de velocidade: as derrotas eventuais não podem justificar nem a desmoralização nem a desistência, porque mesmo os insucessos podem ser uma base de partida para novos êxitos. 

Essa ultrapassagem só é possível se extrairmos uma lição de cada erro, de cada experiência positiva ou negativa e partindo do princípio de que, se é certo que a teoria sem prática é uma perda de tempo, não há prática consequente sem teoria. 

Principal artífice da grande Revolução de Outubro, que modificou o destino não apenas do povo russo mas da humanidade; criador do primeiro Estado socialista; dirigente supremo da Revolução nas antigas colónias tsaristas; teórico e prático conhecedor na solução do delicado problema que representava a questão nacional no país dos sovietes; militante catalisador do movimento operário internacional — Lénine marcou o século e o futuro do homem com a sua personalidade de revolucionário, legando às gerações que lhe sucederam uma obra tão singular como cheia de lições. Para os movimentos de libertação, Lénine forneceu mais esta valiosa contribuição: demonstrou, definitivamente, que os povos oprimidos podem libertar-se e ultrapassar todos os obstáculos para a construção de uma vida de justiça, de dignidade e de progresso. 

É desejável que, independentemente das suas tendências ou opções políticas, os autênticos movimentos de libertação possam beber nas lições e no exemplo de Lénine a inspiração necessária para o seu pensamento, para a sua acção e para o comportamento moral e intelectual dos seus dirigentes. No interesse geral da luta contra o imperialismo e se tivermos em consideração algumas contradições que caracterizam as actuais relações entre as outras forças anti-imperialistas e mesmo alguns aspectos da sua acção, não seria justo nem, talvez, objectivo limitar esse desejo unicamente aos movimentos de libertação.

Acontece hoje com a doutrina de Lénine o que já se verificou mais de uma vez na história com as doutrinas dos pensadores revolucionários e dos chefes de classes ou nações oprimidas em luta pela sua libertação. Durante a vida dos grandes revolucionários, as classes opressoras recompensam-nos com incessantes perseguições: acolhem as suas doutrinas com um furor selvagem, com um ódio tenaz, com as mais intensas campanhas de mentiras e calúnias. Depois da sua morte, tentam fazer deles ícones inofensivos, canonizam-nos, por assim dizer, rodeando o seu nome com uma certa auréola a fim de «consolidar» as classes ou as nações oprimidas e de as mistificar; fazendo-o, esvaziam a doutrina revolucionária do seu conteúdo, depreciam-na e destroem-lhe a força revolucionária. 

É nessa forma de «arranjar» o leninismo que hoje coincidem a burguesia e os oportunistas, tanto do movimento operário como do movimento de libertação nacional. Esquecem, amordaçam, alteram o lado revolucionário da doutrina, a sua alma revolucionária. Colocam em primeiro plano e exaltam o que é ou parece ser aceitável, mesmo conveniente, para a burguesia e para o imperialismo.

O leitor deve já ter notado que o que acaba de ler é a paráfrase de parte de uma lapidar afirmação de Lénine referente a Marx. Modificámos os nomes e adaptámos o discurso à realidade essencial da história dos nossos dias: a luta de vida ou de morte contra o imperialismo. Temos de admitir que o discurso se adapta perfeitamente ao próprio Lénine, em especial quando consideramos o que ele escreveu sobre o imperialismo e a luta contra o domínio imperialista. 

Sem ter a pretensão ou a audácia de querer restabelecer a doutrina de Lénine acerca do movimento de libertação nacional, gostaríamos, no entanto, de evocar determinados aspectos que nos parecem importantes —, principalmente para os que lutam pela libertação e o progresso dos seus povos. 

Lénine demonstrou de forma muito clara que o movimento de libertação nacional, que adquiriu força desde o começo do século não é um facto novo na história. Em todos os continentes, em épocas mais ou menos recuadas, houve, não apenas luta de libertação tribal ou étnica mas também movimento de luta de libertação nacional. Os povos da antiga Indochina e de outras regiões da Ásia; do México, da Bolívia e de outros países do continente americano; da Grécia, dos Balcãs em geral, mesmo de Portugal, na Europa; do Egipto, da África Oriental e da África Ocidental — para só citar estes — tiveram, no passado, a sua experiência de luta de libertação nacional. 

Esses movimentos sofreram vitórias ou derrotas, mas existiram e deixaram vestígios indeléveis nos povos que afectaram, no âmbito das coordenadas históricas das sociedades em questão, numa determinada etapa da evolução económica e política da humanidade. 

Não há no entanto lugar para confusões. Lénine demonstrou que o império romano, por exemplo, não é a mesma realidade histórica que o império britânico, embora ambos tenham em comum o que parece ser, até agora, uma necessidade ou uma constante nas relações entre as sociedades humanas: a tentativa ou o êxito do domínio político e da exploração económica de certos povos ou nações por Estados estrangeiros ou, o que vem a dar no mesmo, por classes dirigentes estrangeiras.

É evidente que Carlos Magno não foi nem podia ser César ou Átila, mas é ainda mais evidente que qualquer chefe de Estado imperialista não é, nem poder ser, o Gana do império africano que tem o seu nome, nem um imperador da família dos Ming, nem um Cortez, conquistador das Américas, nem o tsar das Rússias. Da mesma maneira e pelas mesmas razões, os bancos e os monopólios imperialistas não são as antigas associações dos comerciantes de Veneza ou a Liga Hanseática. 

Lénine demonstrou que a luta de libertação contra o domínio de uma aristocracia militar (tribal ou étnica), contra o domínio feudal e mesmo contra o domínio capitalista estrangeiro do tempo do capitalismo de livre concorrência não é a mesma realidade histórica que a luta de libertação nacional contra o imperialismo, contra o domínio económico e político dos monopólios, do capitalismo financeiro, actuando sob a forma do colonialismo, do neocolonialismo. Tomou-se e deve ser evidente para todos hoje que o aparecimento do imperialismo operou uma transformação profunda e irreversível no movimento de libertação nacional, definindo-se este como a resistência natural e necessária ao domínio imperialista.

Definindo as características internas e externas do imperialismo — estado supremo do capitalismo, resultado da concentração do capital financeiro em algumas empresas de uma meia dúzia de países, domínio insaciável dos monopólios —, Lénine caracterizou simultaneamente as transformações irreversíveis operadas no conteúdo e na forma do movimento de libertação nacional, do qual previu, cientificamente, a linha geral de evolução. 

Cabe a Lénine o mérito de ter revelado, e mesmo previsto, as realidades essenciais da luta dos nossos dias, pois foi até ao fundo na análise do facto imperialista e da luta geral contra o imperialismo.

 Na sua crítica genial, Lénine esclareceu o carácter essencialmente económico do imperialismo, estudou as suas características internas e externas e as suas implicações económicas, políticas e sociais, tanto dentro como fora do mundo capitalista. Pôs em relevo as forças e as fraquezas dessa nova realidade que é o imperialismo (quase da sua idade), que abriu novas perspectivas à evolução da humanidade.

  Situando geograficamente o fenómeno imperialista no interior de uma parte bem definida do mundo; distinguindo o factor económico das suas implicações políticas ou político-sociais, sem esquecer as relações de dependência dinâmica entre esses dois aspectos de um mesmo fenómeno; e caracterizando as relações do imperialismo com o resto do mundo, Lénine situou objectivamente tanto o imperialismo como a luta de libertação nacional nas suas verdadeiras coordenadas históricas. Estabeleceu assim, de forma definitiva, a diferença e as ligações fundamentais entre o imperialismo e o domínio imperialista. 

A análise de Lénine revela-se desta forma como um encorajamento realista e uma arma poderosa para o desenvolvimento ulterior e multilateral do movimento nacional libertador. É necessário, no entanto, notar que esta análise vai ainda mais longe na contribuição que fornece à evolução desse mesmo movimento. 

Com efeito, se podemos dizer que Marx, principalmente na sua obra principal — O Capital —, procedeu à anatomia ou à anatomia patológica do capitalismo, a obra de Lénine referente ao imperialismo pode ser considerada como a pré-autópsia do capitalismo moribundo. Não é exagerado afirmar que, para ele, a partir do momento em que o domínio económico e político do capital financeiro (os monopólios) se consolidou em alguns países e se concretizou no exterior desses países pelo movimento de partilha do mundo, especialmente em África, com o monopólio das colónias—o capitalismo, tal como se definira anteriormente, transformou-se num corpo em putrefacção. 

Um estudo, mesmo superficial, da história económica contemporânea dos principais países capitalistas (talvez mesmo dos menos importantes), revela que a luta tenaz entre o capital financeiro (representado pelos monopólios e os bancos) e o capital de livre concorrência se salda geralmente pela vitória do primeiro, isto é, do imperialismo.

Temos pois de verificar que Lénine tinha razão: o capitalismo criou o imperialismo e criou simultaneamente os elementos propícios à sua destruição. O imperialismo matou e continua a matar o capitalismo. Com efeito, as transformações profundas realizadas nas relações de forças no âmbito da livre concorrência levaram aos monopólios, à acumulação gigantesca do capital financeiro privado no interior de certos países e, como consequência disso, ao domínio político destes pelos monopólios, o que os transformou em países imperialistas. Esta nova situação está na origem de uma confrontação permanente, aberta ou não, «pacífica» ou não, entre os países imperialistas que procuram novos equilíbrios na relação de forças, em função do grau relativo de desenvolvimento das forças produtivas e da necessidade crescente tanto de obter matérias-primas como de conquistar mercados, isto é, da realização insaciável de mais-valia ou de rendimento para o capital financeiro.

Com base numa análise tão lúcida e realista, era normal que Lénine extraísse conclusões importantes para o desenvolvimento ulterior da luta contra o imperialismo. 

Entre essas conclusões, estas parecem-nos extremamente ricas em consequências: 

A acumulação desenfreada do capital financeiro e a vitória dos monopólios como fase última da apropriação privada dos meios de produção—com o agravamento da contradição entre essa apropriação e o carácter social do trabalho produtivo—criaram as condições propícias à revolução, que progressivamente acabará com o regime capitalista, actualmente representado pelo imperialismo. 

É possível, necessário e urgente fazer a revolução, se não em vários países, pelo menos num, principalmente no momento em que a agressividade característica do imperialismo se manifesta numa guerra entre os países capitalistas para uma nova partilha do mundo (Primeira Guerra Mundial). 

A criação de um Estado socialista desferirá um golpe decisivo no imperialismo e abrirá novas perspectivas ao desenvolvimento do movimento operário internacional e do movimento de libertação nacional.

É possível uma nova confrontação armada entre os Estados imperialistas-capitalistas, pois a hipótese do ultra-imperialismo ou superimperialismo, que resolveria as contradições entre os Estados imperialistas «é tão utópica como a da ultra-agricultura». Essa confrontação enfraquecerá inevitavelmente o imperialismo (Segunda Guerra Mundial). Criar-se-ão assim condições mais favoráveis para o desenvolvimento das forças cujo destino histórico é destruir o imperialismo: instalação do poder socialista em novos países, reforço do movimento operário internacional e do movimento de libertação nacional. 

Os povos oprimidos da África, da Ásia e da América Latina são necessariamente chamados a desempenhar um papel decisivo na luta pela liquidação do sistema imperialista mundial, de que são as principais vítimas. 

Estas conclusões de Lénine, explícita ou implicitamente contidas na sua obra consagrada ao imperialismo e confirmadas pelos actos da história contemporânea, são mais uma notável contribuição para o pensamento e para a acção do movimento de libertação. 

Sendo marxista ou não, leninista ou não, é difícil a alguém não reconhecer a validade, mesmo o carácter genial da análise e das conclusões de Lénine, que se revelam de um alcance histórico imenso, iluminando com uma claridade fecunda o caminho

quantas vezes espinhoso e mesmo sombrio dos povos que se batem pela sua libertação total do domínio imperialista.

https://www.marxists.org/portugues/cabral/1970/04/40.htm

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Crónica de Carlos Coutinho: PODE o ponto de vista explicar tudo, evidentemente

* Carlos Coutinho

PODE o ponto de vista explicar tudo, evidentemente. Homero, que não escreveu nem um único verso da “Odisseia”, embora o culpem disso há três milénios, é citado como havendo deixado para a posteridade os versos que a contemplação do mar lhe inspirava, neles pondo a sua ideia de humanidade: “Os homens são como as ondas /Quando uma geração floresce, a outra declina.”

   Virgílio, logo a seguir, no seu latim puríssimo, também cedeu à inspiração produzida pelas imagens: “Enquanto os rios correrem para o mar, os montes fizerem sombra aos vales e as estrelas fulgirem no firmamento, deve durar a recordação do benefício recebido na mente do homem reconhecido."

   Petrarca, o italiano inventor do soneto como poema de 14 versos, definia-o como “a forma perfeita” da poesia. E escreveu:   “Amor, comigo noutro tempo estavas / Entre estas margens do pensar amigas / E p'ra saldar nossas razões antigas / Comigo e o rio arrazoando andavas: / Floras, frondes, sombras, ondas, antros, cavas.” 

   Também Gil Vicente pôs por escrito: "Vi venir serrana, gentil, graciosa, cheguei-me per'ela com grã cortesia.”

   Já o Zé Gomes Ferreira confessava: “Do que sou /ao que penso /paira um voo / suspenso… // Mas tão subtil /que nem ata / o pântano vil / à nuvem de prata. // (Homem: não tenhas vergonha / de ser pântano como eu. / o pântano é que sonha / a nuvem do céu).”   

   Ora, o velho Casc, numa das suas crónicas mais citadas, confessa que se ajoelhou maravilhado e frisa: “Nem um único exemplar da curial pilosidade púbica se contorcia nas proximidades da grande ranhura erótica, embora o suave cômoro venusino iniciasse curialmente, com absoluto langor imaginário, a maciíssima planura abdominal que uma cratera apagada vesuvianamente definia lá longe.” 

  Nas artes plásticas a coisa também não difere muito. Botticelli, por exemplo, quase enlouqueceu enquanto pintava “O Nascimento de Vénus”, porque o corpo da deusa ia ficando excessivamente perfeito, e Picasso, para esquartejar um cavalo e um toiro na “Guernica”, teve de os acompanhar de outros fragmentos vivos. Até de humanos gritantes.

2024 09 09

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DOS múltiplos e interessantíssimos efeitos nunca bem explicados que são produzidos pelas imagens, como aleguei no meu apontamento de anteontem, recordo um fragmento de “A Epopeia de Gilgamesh” na versão de um grande poeta português já falecido, Pedro Tamen, que se serviu da tradução de António Ramos para nos lembrar que, muito antes de Homero e Virgílio, alguém grafou em tabuinhas de barro, 1 500 anos antes da “Ilíada” – ou “Odisseia”, como queiram –  que em Uruk vivia Gilgamesh e que “ninguém prevaleceu contra ele, pois ele é forte como uma estrela do céu". 

   E sentenciou:
   "Vai a Uruk ter com Gilgamesh e exalta a força desse selvagem. Pede-lhe que te dê uma cortesã, uma prostituta do templo do amor; regressa com ela, e o seu poder de mulher dominará esse homem. Quando ele descer para beber nos poços, ela estará nua; e quando ela vier fazer-lhe mal, há-de abraçá-la; e então os animais bravios haverão de rejeitá-lo”. 

   As tabuinhas foram encontradas e traduzidas seguidamente para aramaico, tendo o escriba depositado o seu trabalho no palácio de Assurbanípal, “o Rei do Mundo” que, de facto, só era rei da Assíria, o que dá para pensar que, “quando os deuses criaram Gilgamesh”, o que fizeram foi, afinal, “o último grande rei do império assírio, um temível guerreiro que devastou o Egito e Suso” e que também “juntava livros numa biblioteca fabulosa” com “narrativas históricas sobre o seu tempo, poemas, textos religiosos científicos”, como e os considerava, após ter esquadrinhado “os arquivos das cidades onde essa cultura florescera, como Babilónia, Uruk ou Nippur”, filas e filas de “tabuinhas esbranquiçadas, em forma de pequenas almofadas cobertas de minúsculas incisões, de desenho tão apertado que evocam um formigueiro emaranhado e fervilhante”.

   Ou seja, “quando os deuses criaram Gilgamesh, deram-lhe um corpo perfeito. Shamash, o glorioso Sol, dotou-o de beleza; Adad, o deus da tempestade, dotou-o de coragem; os grandes deuses fizeram perfeita a sua beleza, que ultrapassava todas as outras e que aterrava como um grande touro selvagem. Dois terços o fizeram deus e um terço, humano. Em Uruk ele construiu muralhas, uma grande fortaleza e o bendito templo Eanna, para Anu, o deus do firmamento, e para também para Ishtar, a deusa do amor.”

   Todavia, também diz o supra-referido escriba que “Gilgamesh andou por terras estrangeiras, através do mundo, mas até regressar a Uruk ninguém encontrou que pudesse resistir aos seus braços. Porém, os homens de Uruk murmuravam em suas casas”, que “Gilgamesh toca o sino para se divertir, a sua arrogância não tem limites, nem de dia nem de noite. Nenhum filho é deixado com seu pai, porque Gilgamesh os tira a todos, mesmo às crianças. E, contudo, o rei deveria ser um pastor para o seu povo. O seu desejo não deixa uma só virgem para aquele que ama – nem a filha de um guerreiro, nem a mulher do nobre; contudo, ele é o pastor da cidade, sábio, gracioso e resoluto.”

   Daí que também eu tenha alguns segredos a preservar até não sei quando – por exemplo, não voltarei a certos lugares que foram muito importantes para mim nos últimos anos. 

      Momentos do pastor "dois terços divino e um terço humano"

2024 09 10 

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