terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Nuno Costa Santos - A Mãe Açoriana de Fernando Pessoa



Opinião

* Nuno Costa Santos

Escritor e argumentista

Quando comento com alguém que a mãe de Fernando Pessoa era açoriana abre-se, com frequência, uma expressão de espanto. Não é facto divulgado – nem dentro, nem fora do arquipélago. Alguns dados recolhidos aqui e ali por investigadores. A mãe do poeta, Maria Madalena Pinheiro Nogueira, filha do terceirense Luís António Nogueira e da jorgense Dona Magdalena Amália Xavier Pinheiro, nasceu em Angra do Heroísmo, no ano de 1861, e, em 1865, foi viver para Portugal continental, aquando da nomeação do seu pai, juiz-conselheiro, jurisconsulto, director-geral do Ministério do Reino, para Secretário-Geral do Governo Civil do Porto.

Aos 25 anos, casou-se com Joaquim de Seabra Pessoa, que conciliava o ofício de funcionário do Ministério da Justiça com a vocação de crítico de música. Do casal nasceram dois filhos, Fernando e Jorge, que morreu menos de cinco meses após a morte do pai, por tuberculose. Maria Madalena veio a casar-se uma segunda vez, desta feita por procuração, com o comandante João Miguel dos Santos Rosa. Um mês depois, seguiu para Durban, cidade na qual o marido se tornou cônsul de Portugal, levando consigo Fernando. O casal teve cinco filhos, dois dos quais morreram na infância.

No ano de 1911, Madalena e João Rosa, devido a novas funções do marido, mudaram-se para Pretória. Depois da morte deste, em Outubro de 1919, Madalena voltou com os filhos para Lisboa, numa altura em que se encontrava relativamente debilitada por causa de uma trombose cerebral que sofreu em 1915. Na capital portuguesa, viveu primeiro com os filhos Fernando e Henriqueta na Rua Coelho da Rocha, 16, (a actual Casa Fernando Pessoa) e depois, até à sua morte, em 1925, com Henriqueta e o seu marido.

Richard Zenith, autor de “Pessoa. Uma Biografia”, obra de mais mil páginas, enquanto convidado de uma edição recente do Arquipélago de Escritores, aludiu à importância da mãe na vida criativa do filho. Em entrevista, dada no âmbito do encontro, a Rui Pedro Paiva, no Público, declarou que Pessoa terá começado a imitar o comportamento da mãe, uma mulher letrada, versada em alemão, inglês e francês, que lia e escrevia versos. A primeira quadra de Pessoa, escrita aos sete anos, foi dedicada justamente à mãe, numa altura em que esta ponderou a possibilidade de deixar Fernando ao cuidado de familiares, antes de seguir para a África do Sul. Dividia-se, essa quadra, nos seguintes versos: “Eis-me aqui em Portugal/      Nas terras onde eu nasci./ Por muito que goste delas,/   Ainda gosto mais de ti”.

Sigamos a pista familiar de Pessoa, ajudados, entre outros documentos, por uma investigação feita por Andreia Fernandes, lembrando que os Açores foram para este filho de uma açoriana um dos raros destinos por ele visitados. A estadia, ocorrida entre 7 e 16 de Maio de 1902, aconteceu numa altura em que veio com a mãe, o padrasto e os irmãos, de férias para Portugal, tendo ficado alojado na casa angrense da tia Anica, do tio João e dos primos Mário e Maria. Terá sido importante em termos pessoais para o poeta por ter permitido fortalecer os laços familiares com uma parte da família com a qual, já em Lisboa, teve uma convivência essencial.

No plano criativo também ganhou importância. Foi, durantes esses dias, resguardado em casa por causa de um persistente mau tempo, que, aos treze anos, o autor de “Mensagem” inventou a sua primeira personalidade literária: o Dr. Pancrácio. Além de ter escrito um poema alegadamente inspirado na morte da irmã, “Quando Ela Passa”, assinado com esse nome, criou, com o primo, três números de A Palavra, um jornal humorístico-satírico. Entre os conteúdos, encontrava-se a história ficcional de um naufrágio ocorrido à conta de um ciclone. E notícias divertidas sobre ocorrências domésticas como o hábito de se levantar tarde “da Sr.ª D. Maria Nogueira”. (Não se pode compreender Pessoa sem perceber o seu sentido de humor).

Já regressado a Lisboa, Pessoa publicou um poema com a assinatura Eduardo Lança, referindo que o texto foi escrito na Ilha Terceira. Lança foi a primeira “figura” pessoana para a qual o autor inventou uma biografa – nasceu no Brasil em 1875 e mudou-se em adulto para Portugal.

Junto de quem não conhece esse dado biográfico sobre a ascendência açoriana de Fernando Pessoa, costumo acrescentar outro, também relacionado com literatura, maternidade e Açores. A mãe de outro génio literário mundial, outro cultor maior da língua portuguesa, Machado de Assis, também era açoriana. A mãe de Fernando Pessoa era uma açoriana da ilha Terceira. A mãe de Machado de Assis era uma açoriana da ilha de São Miguel. Agrada-me que os Açores estejam ligados a importantes capítulos da cultura mundial por via materna. Fantasio com um encontro entre as duas mães, Maria Madalena Pinheiro Nogueira e Maria Leopoldina Machado da Câmara. Com uma conversa entre duas Marias sobre as pequenas sumidades, uma de nome Fernando, outra de nome Joaquim, que transportaram organicamente e a quem, para felicidade pessoal e contentamento do mundo, deram, um dia, origem.


12.01.2025
https://diariodalagoa.pt/a-mae-acoriana-de-fernando-pessoa/

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Artur Queiroz - Memória das Matanças de Paris –

 
segunda-feira, 13 de janeiro de 2025


Artur Queiroz*, Luanda

Hoje, dia 12 de Janeiro, faz 80 anos que o Exército Vermelho entrou em Berlim e o alto comando das tropas nazis se rendeu. A Europa foi libertada do III Reich. Hitler e alguns colaboradores suicidaram-se. Os outros foram presos e julgados. Hoje os nazis estão no poder na Casa dos Brancos, em Telavive, em Kiev. A internacional fascista domina a União Europeia e praticamente todo os governos dos países da União Europeia. África vive uma segunda onda de libertação. Angola caminha em sentido contrário!

As matanças de Paris em 2015 foram um horror. No dia 7 de Janeiro desse ano, aconteceu o massacre na Redacção do Charlie Hebdo. Menos de dez anos depois, os nazis de Telavive já mataram 150 jornalistas na Palestina. E o ocidente alargado aplaude. 

Na noite de 13 de Novembro de 2015 aconteceram massacres em vários pontos da cidade de Paris. Os mais graves foram na sala de teatro Bataclan. Dezenas de pessoas foram assassinadas a sangue frio, quando ouviam música, viam um jogo de futebol, bebiam um copo ou jantavam. Os assassinos não conheciam as suas vítimas, mataram por matar, sem piedade, sem uma ponta de humanidade.

Os amantes da paz condenaram aquela fúria assassina. Mas há que distinguir entre os que são contra a guerra e os que ficam em silêncio face à eliminação de civis e refugiados na Palestina ou choram lágrimas de crocodilo enquanto alimentam a fornalha da guerra e a dirigem. No dia 14 de Novembro de 2015, a organização Estado Islâmico reivindicou os massacres de Paris! Hoje os assassinos são apresentados como rebeldes e estão no poder na Síria com o apoio entusiasmado do ocidente alargado.

Em Novembro de 2015 o presidente Hollande fez uma declaração que ilustra bem a suprema hipocrisia dos senhores da guerra no Ocidente. Afirmou que depois da matança de Paris, a França está em Guerra. Disse isto sem corar de vergonha. Porque os mortos de Paris são, em boa parte, da sua responsabilidade e do seu antecessor, Nicolas Sarkozy, que está a ser julgado por corrupção em negócios com o Presidente Kadahfi, assassinado pela OTAN (ou NATO) para os estados membros saquearem o petróleo e os Fundos Soberanos da Líbia.  

Foi a Casa dos Brancos, com o apoio entusiasmado da França e outras potências ocidentais, que levou a morte e a destruição ao Iraque, Tunísia, Egipto, Líbia e Síria. Hollande é responsável por crimes hediondos no Mali. Aviões de guerra e militares franceses mataram milhares de civis em África e no Médio Oriente. Milhões de refugiados que chegam à Europa são causados pelas guerras comandadas pela França, Reino Unido, União Europeia, EUA e todos os países da OTAN (ou NATO). Todos. 

As autoridades portuguesas também têm as mãos manchadas de sangue. Um tal Durão Barroso viu as armas de destruição maciça no Iraque. E Paulo Portas, então no governo de Lisboa, apoiou os hediondos massacres contra o povo do Iraque. Mais de um milhão de mortos. Ocidente transformado num bando de assassinos. Primeiro esclavagistas. Depois colonialistas. A seguir genocidas. Agora são isso tudo mais assassinos de civis indefesos.  

Um hospital dos Médicos Sem Fronteiras no Afeganistão foi bombardeado por aviões dos EUA. Morreram técnicos de saúde e doentes internados. Alguns eram crianças. No dia seguinte a ONU disse que esta acção militar era indesculpável. Depois até falou em crime de guerra. Uma semana mais tarde esse crime, tão hediondo como as matanças de Paris, caiu no esquecimento.

Convivas em festas de casamentos e baptizados foram  bombardeados por forças da OTAN (ou NATO). Milhares de civis morreram. Os aviões da OTAN (ou NATO) bombardearam durante 80 dias a Jugoslávia. A mais sangrenta acção armada na Europa depois da II Guerra Mundial. Até destruíram à bomba a Embaixada da República Popular da China, em Belgrado. Tudo para criarem uma base militar no Kosovo a fim de controlarem os Balcãs!

Os grupos “rebeldes” apoiados pela Casa dos Brancos, Bruxelas, Londres e Paris mataram milhares de pessoas à bomba em Damasco e outras cidades sírias. Na Líbia e no Iraque. Essas vítimas são ignoradas. Quando muito têm direito a uma notícia de segundos. 

Os mortos de Paris valem tanto como os do Mali, da Tunísia, da Líbia, do Egipto. Da Síria e do Iraque. Do Afeganistão. Os náufragos do Mediterrâneo. Mas ninguém lhes dispensa um segundo de respeito. As suas famílias não têm um átomo de solidariedade. Pelo contrário. São desprezadas e ficam vulneráveis a novos assassinatos em massa.

Os xenófobos agora querem muros na Europa. Exigem estados policiais. Mas é tarde. Os autores da matança de Paris são franceses! Hollande tinha razão: A França está em guerra, desde os primeiros ataques ao Iraque, no início dos anos 90. Desde o Afeganistão. Desde o assassinato, pela OTAN (ou NATO), do Presidente Kadhafi, da Líbia. Desde que começou o roubo do petróleo. 

As potências ocidentais apoiam “até onde for preciso” o genocídio na Palestina. Na Faixa de Gaza já nada mais existe para destruir. Tudo porque as populações elegeram o HAMAS para governar o território. Castigo colectivo! Os nazis de Telavive já mataram (números oficiais e confirmados pela ONU) até final de 2024 mais de 45. 000 civis. Mas se incluirmos os desaparecidos, esse número é ainda maior. Os massacres de Paris, há dez anos, são uma ninharia comparados com os que estão a sofrer os palestinos.

Em África, no Médio Oriente, no Afeganistão há seres humanos iguais aos europeus e norte-americanos. Se líderes ocidentais os tratam como animais, depois não podem admirar-se, quando os sobreviventes lhes devolvem o tratamento.

Dentro de dias a Casa dos Brancos vai ser ocupada pelo líder da internacional fascista. Renasce daa cinzas o novo Hitler. Trump já avisou que vai tornar os EUA maiores, ocupando e anexando países. Mais uma vez os russos vão salvar a Europa! Ironia das ironias. O ocidente alargado apoia os nazis de Kiev. Está de cócoras ante os nazis da Casa dos Brancos. Em 12 de Janeiro de 1945 o Exército Vermelho entrou em Berlim e o regime nazi redeu-se. Faz hoje 80 anos. 

As tropas russas são a única força capaz de derrotar a internacional fascista e salvar a Europa do domínio da Casa dos Brancos, onde habita o novo Hitler. Ironia das ironias!

* Jornalista

at janeiro 13, 2025 
https://paginaglobal.blogspot.com/2025/01/memoria-das-matancas-de-paris-artur.html#more

sábado, 11 de janeiro de 2025

Composição – Tema: A família (6.º Ano) – aluna: Diana


(Carlos Esperança, in Facebook, 10/01/2025, revisão da Estátua)

O texto que segue é uma alegoria elucidativa de muitos dos lugares-comuns que povoam o quadro mental de muita gente anónima que apoia a extrema-direita em Portugal. Mas as Dianas e os seus pais, acreditem, existem mesmo por esse país fora. O autor – que conheço pessoalmente e cujas ideias se encontram nos antípodas das do pai da Diana – conseguiu retratar brilhantemente essa triste realidade. Os meus parabéns ao Carlos Esperança.

Estátua de Sal, 11/01/2025)

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Aminha família é composta pelo meu pai, a minha mãe e eu. Quem manda é o meu pai que tem um táxi que não é dele. A minha mãe trabalha em casas de senhoras ricas.

O meu pai é quem fala lá em casa, e manda calar a minha mãe; diz que, quando há um galo, não cantam as galinhas. Ele veio de Coimbra aqui para a Musgueira e trata os clientes e pessoas importantes de quem gosta por doutores. Os clientes gostam – diz o meu pai –, e fala dos doutores, mas às mulheres chama-lhes gajas. Aos homens de que não gosta chama-lhes nomes que a minha mãe diz que não devo dizer nas aulas.

O meu pai diz todos os dias que os políticos são mentirosos e vivem à custa dele, que a política é uma coisa suja, mas quando a minha mãe lhe disse que ele só falava de política, deu-lhe logo uma bofetada e nunca mais foi contrariado.

O meu pai só gosta do Dr. André Ventura; gosta tanto que até diz que o André, só André, sem doutor, vai acabar com os políticos, os ciganos e as eleições. Há um estrangeiro de quem gosta muito, o Dr. Trump, e odeia outro que trata por um nome que não digo, Putin, e chama putinistas aos que não gostam do Dr. Zelenski.

Eu não percebo nada de política, mas oiço o meu pai. Ele agora também passou a gostar do Dr. Elon Musk, creio que é assim que se escreve, eu já o vi na televisão. Deixou de gostar do Dr. Marcelo e passou a chamá-lo só por “o Marcelo, aquele filho de Putin”, mas ao Putin chama-o também filho disso ou coisa parecida.

Não percebo o meu pai; ele diz que as mulheres não podem compreender, quanto mais as garotas. Diz à minha mãe para votar no Chega, e que os partidos deviam ser proibidos. Ele gosta muito do Dr. Mário Machado porque quer acabar com os pretos e os ciganos, e, por bem fazer, às vezes prendem-no. Os juízes ainda são piores do que os políticos.

O meu pai gosta muito do Dr. Trump porque quer expulsar os pretos; o meu pai também não gosta de pretos, e anda desorientado porque o Dr. Trump parece gostar do Putin. Se o Dr. Trump deixar de gostar do Dr. Zelenski o meu pai passa a gostar só do primeiro.

O meu pai anda muito contente porque o Dr. Trump vai ficar com o Canadá e o Canal do Panamá e, se não lhe venderem a Gronelândia, conquista-a. Não é como nós, que não defendemos o nosso Ultramar, infelizmente perdido, e o entregámos aos pretos e aos russos.

O meu pai não gosta da Rússia, diz que a Irmã Lúcia, que agora é santa, disse que todo o mal vem da Rússia e que foi a Senhora de Fátima que lho disse. Portanto, é verdade.


Agora o meu pai anda perdido com a Ucrânia, o Dr. Trump, o Dr. Zelensky, o Dr. Elon Musk e o Putin. Só fala do futuro presidente. Vai votar no Dr. Almirante e ele e o André vão tornar Portugal grande outra vez e acabar com políticos, ciganos, pretos e traidores.

Ele também gosta muito do Dr. Milhazes, do Dr. Rogeiro e do Dr. Botelho Moniz que odeiam o Putin, mas gosta de uma senhora, e é mulher, uma tal Diana Soller, talvez por ter o meu nome, mas como as mulheres não pensam, diz que é o marido que a ensina.

Na próxima composição, esta já vai longa, vou contar outras coisas do meu pai, e tenho de perguntar à minha mãe se as posso dizer aqui na escola da Musgueira.

Diana – 12 anos – Escola C+S da Musgueira.

https://estatuadesal.com/2025/01/11/composicao-tema-a-familia-6-o-ano-aluna-diana/

Isabela Figueiredo - Eu, a funcionária de caixa

Opinião

* Isabela Figueiredo

Escritora, vencedora do Prémio Urbano Tavares Rodrigues

Tenho pactuado com uma ilegítima apropriação do tempo e trabalho do cliente. Quero ser atendida por pessoas verdadeiras

09 janeiro 2025  
Não há burguesa arruinada que não sonhe com pechinchas em saldos. De maneira que lá fui, com pouco tempo, mas cheia de boa vontade. Olho para os carros de roupa pendurada em cabides, onde é necessário passar dezenas de peças até encontrar uma ao meu gosto e tamanho, como olharia para as prateleiras de uma loja de bricabraque ou de velharias e antiguidades. Tanto mundo! A peça solta e única, injustamente rejeitada por causa de uma cor berrante ou de um feitio estrambólico, ou seja, pela sua singularidade, é um brinde e uma vitória.

Estou consciente de que o pronto a vestir barato tem a marca da sociedade de consumo e se tornou politicamente incorreto. Mas uma pessoa, uma vez por ano, tem direito ao seu prazer culposo. Ao gesto vão, superficial, à descida ao povão mais trash. Por favor. Para me desculpar, declaro que a Agustina partilhava este gosto. Encontrei-a nos saldos do Chiado, quando foi diretora artística do Teatro Nacional D. Maria II. Esgaravatava numa caixa de lenços, écharpes e cachecóis, com entusiasmo, absorta nas delícias dos estampados e materiais. Permaneci a uma distância segura para não ser detetada, contemplando o seu prazer de final de tarde. Também imagino a Adília Lopes a perder-se numa loja de saias e casacos de mau gosto, alardeando boa disposição folclórica, mas não creio que gostasse de saldos. Não tinha paciência nem tempo a perder com vulgaridades. A Adília não era vaidosa, não queria parecer coisa alguma.

Visitei o Cortefidel. Comprei umas calças que não estavam em saldo para combinar com duas camisolas que estavam e que as pediam. Segui para a Lanydore e analisei a mercadoria. Muita coisa para senhoras de certa idade, que toda a gente sabe não ser o meu caso. Tudo em bom, mas muita renda, muito veludo sem rasgo de talento. Avancei para a Tara, onde a qualidade varia muito. Mas surpreendem-me alguns cortes, cores e materiais. Comprei umas leggings tcharan, que usarei com camisolas largas e acessórios surpreendentes, para finalmente compreenderem que sou superelegante e descontraída.

Percorri a loja, que é enorme, para chegar à caixa. O que existia em lugar de caixa era um espaço com oito computadores. Fiquei a olhar como um astronauta que não tirou o curso

Mas na Tara aconteceu-me uma surpresa: após escolher, percorri a loja, que é enorme, para chegar à caixa e pagar. Quando a encontrei, ao contrário das lojas anteriores, não havia quem prestasse assistência aos clientes. Não acredito que não existisse uma pessoa, mas não estava visível. O que existia em lugar de caixa era um espaço com oito computadores. Fiquei a olhar para o cenário metálico como um astronauta que não tirou o curso. Procurei ajuda. Só havia clientes e máquinas. Respirei fundo e dispus-me a lidar com a situação. Aproximei-me de um terminal e analisei o dispositivo. Procura perceber para que serviam os orifícios x e y, mais o tanque, que parecia um tanque para lavar roupa. Entretanto, a máquina leu o código de barras das minhas leggings, sem o ter encostado. Atentei no leitor de códigos, um espelho negro, sem compreender. A máquina pediu-me para avançar, o que fiz. Quer fatura-recibo? Clique em “sim”. Qual é o seu número de contribuinte? Digite. Qual é o seu código postal? Digite. Quer saco? Quer grande ou pequeno? Se não quer, avance. Quer pagar assim, assado ou frito e cozido? Se for assim, encoste o cartão de débito ao terminal. Estamos a imprimir a sua fatura. Agora, encaixe o alarme na abertura com o formato da imagem e proceda de forma análoga para o soltar. Soltou? Encaixe no depósito. Obrigada e boa viagem.

Fiquei pasmada. Saí da loja pensando que tinha realizado um trabalho que não me pertencia. Não tenho de digitar o meu número de contribuinte nem de tirar alarmes. Há funcionários para esse serviço que dão pelo nome de funcionários de caixa. Esta loja abusou do meu apetite pelas leggings. Devia ter saído quando vi que os funcionários tinham sido substituídos por terminais automáticos. O mais grave foi naquele momento, foi o meu sentido crítico ter ficado anestesiado pela euforia dos saldos. Fiquei pensativa e zangada. Recuei no tempo e lembrei-me que na Decatone, de desporto, também fui surpreendida por máquinas semelhantes, embora com assistente. Mais: no Le Roi Merlã e no Ocham, há muito tempo que o faço. Quantas vezes passei códigos de barras e lancei dados nas estúpidas máquinas que nos dizem “ponha o produto” e “tire o produto”? Percebi que tenho pactuado com o que penso ser uma ilegítima apropriação do tempo e trabalho do cliente. Tenho validado esse sistema. Não hesito em afirmar que deveríamos abdicar de consumir em lojas que nos pedem, não só que lhes paguemos, mas que trabalhemos para elas. Não nos cabe e a quantidade de postos de trabalho que eliminam é devastadora. Quero ser atendida e fazer perguntas a pessoas verdadeiras, que respondam com a sua natural simpatia, indiferença ou antipatia.

Avancei para a Pull&Fear, sem interesse. Deambulava, pensativa. Ao passar num certo ponto da loja deparo-me com o mesmo cenário: cinco caixas de pagamento automático na qual cada cliente trabalhava aplicadamente. E pensei “que tal boicotarmos estas lojas?” Que tal deixar de frequentar as que não aceitam dinheiro, só cartão ou vice-versa? São inaceitáveis práticas comerciais que desrespeitam o consumidor. Mais importante do que a ação das associações de defesa do consumidor é a nossa. Pensemos nisto a sério.
~
https://expresso.pt/opiniao/

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Vitor Duarte Teodoro - O espírito de Eça de Queirós, incarnado pelo ChatGPT


* Vitor Duarte Teodoro

1 d  · 

O espírito de Eça de Queirós, incarnado pelo ChatGPT, escreve sobre a transladação dos seus restos mortais para o Panteão Nacional...

"Ah, caros amigos, que cena memorável foi a transladação dos meus restos mortais para o tão augusto e marmóreo Panteão Nacional! Um espetáculo de pompa e circunstância, onde as excelências, engravatadas como pavões em dia de gala, desfilavam com uma gravidade cómica, qual procissão de almas perdidas em busca do protagonismo perdido.

Ali estavam os políticos do nosso amado Portugal, disputando entre si o melhor ângulo para a fotografia histórica. Ora, não lhes leveis a mal – o seu zelo não era por mim, pobre cadáver literário, mas pela luz do flash, essa que ilumina mais que o espírito da literatura. Uns com o semblante solene de quem nunca abriu um dos meus livros, outros com discursos decorados à última hora, mal contendo os risos ao citar “Os Maias”, obra que, presumo, pensavam ser sobre horticultura.

E os poderosos, esses senhores que governam com um misto de ignorância e convicção, lá estavam também, como se a minha transladação fosse, de repente, um triunfo da pátria. Falavam de valores e cultura, enquanto um deles, não identificado mas demasiado familiar, consultava apressadamente o telemóvel para verificar a popularidade do evento nas redes sociais.

Ah, e o povo, que maravilha! Algumas almas sinceras, outras apenas curiosas, vinham assistir ao espetáculo como quem vai ao circo – e com razão, pois o circo era grande. Vi rostos admirados a perguntar: “E quem era este Eça, afinal?” Não lhes culpo, pois os meus livros não são tão populares como a bola ou a telenovela, mas ainda assim, confesso, senti um ligeiro desconforto ao ouvir um petiz perguntar se eu era um novo treinador da seleção.

E lá me levaram, como uma espécie de troféu literário, para repousar ao lado dos grandes vultos da nação. Ah, se eles soubessem o quanto critiquei a vaidade, a hipocrisia e o formalismo, talvez tivessem pensado duas vezes antes de me colocar no meio de tão ilustres companhias. Mas, enfim, o Panteão é a última ironia da minha vida – ou da minha morte – e por isso aceito-a com o mesmo sorriso mordaz com que vos retratei a todos.

Que descansem bem, meus senhores. Eu, por cá, ficarei eternamente a observar-vos, do alto do mármore, com a mesma verve que me fez imortal."     

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Vitor Duarte Teodoro

"Ah, mas claro, sejamos mais cáusticos, pois a ocasião merece! Imaginem-me, senhores, um humilde cadáver literário, arrancado ao descanso modesto para ser exibido como um troféu de Estado. Que ironia deliciosa: em vida critiquei as elites com palavras afiadas como navalhas, e agora, morto, sou carregado por elas como se fosse um santo padroeiro dos discursos vazios!

Lá estavam eles, os políticos, empertigados como pavões de feira, a trocarem sorrisos e apertos de mão falsos, como se o momento fosse sobre eles — e, sejamos honestos, era mesmo. No palanque, um deputado ergueu a voz, declamando um trecho do meu trabalho com a mesma paixão com que, provavelmente, lê um contrato de arrendamento. “Eça é nosso!” gritavam, como se o meu pobre esqueleto pudesse ser anexado à lista de patrimónios culturais que nunca leram, mas adoram citar em campanhas.

E os poderosos, ah, esses eram o auge da tragicomédia. Lá vinham, as barrigas inchadas de condecorações e almoços de Estado, proclamando que a minha presença no Panteão era “um triunfo para a cultura nacional”. Cultura essa que, coitada, deve ter soltado uma gargalhada abafada no canto da sala, enquanto alguém perguntava baixinho: “E este Eça, ele escreveu o quê mesmo? Algo sobre amores e colégios, não era?”

Ah, e o povo, a cereja deste bolo podre. Lá estavam, aplaudindo com um entusiasmo digno de quem assiste à final da Taça de Portugal. Alguns, os mais novos, olhavam para o meu retrato nos cartazes e perguntavam aos pais se eu era um influencer do TikTok. Outros, de ar grave, disfarçavam o tédio com as caras sérias que guardam para funerais e debates na Assembleia. Um senhor até exclamou: “Grande Eça, sempre gostei da série dele!” – suponho que confundiu os meus romances com episódios da Netflix.

E, finalmente, lá cheguei ao Panteão, esse mausoléu monumental onde os mortos convivem em silêncio, talvez constrangidos por tanta hipocrisia. Que grupo! Camões, Amália, e agora eu, todos lado a lado, a representar o que o país tem de melhor… ou pelo menos aquilo que dá boas fotografias e discursos fáceis.

Pois que fique então registado: aqui jaz Eça de Queirós, o escritor que denunciou a farsa dos poderosos e, na mais cruel das ironias, foi transformado no seu emblema post-mortem. Riam-se, meus amigos, pois, do mármore frio, eu estou certamente a rir-me de vós."


PM

Vitor Duarte Teodoro É da sua autoria este texto brilhante? O chatgpt diz que não ele que produziu 😀

23 h

Vitor Duarte Teodoro

PM , foi o ChatGpt

23 h


https://www.facebook.com/vitor.d.teodoro/posts

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

João Fraga de Oliveira - Passagem de Ano?



POR JOÃO FRAGA DE OLIVEIRA TERÇA, 07 DE JANEIRO DE 2025

Não será que, afinal, no primeiro dia do ano de cada novo calendário, a vida neste tal ano «novo» vai continuar a ser apenas mais vida (e, infelizmente, para alguns nem isso…), a mesma vida … «velha»?

Uma das instituições sociais de séculos é a «Passagem de Ano».

Saudável pela participação social e partilha mais ou menos genuína da alegria e diversão, subjazem-lhe, no entanto, dois pressupostos cuja racionalidade é duvidosa: um, é o de que no último milionésimo segundo do último dia de cada ano para o primeiro milionésimo de segundo do ano seguinte há uma separação na vida de cada um e da sociedade; o outro pressuposto é o de que, então, há uma «passagem» para um outro tempo «novo» que sempre almejamos melhor («Bom», «Feliz», «Próspero»…) e não só mais tempo, o mesmo tempo.

Se bem que, afinal, quanto à classificação («velho», «novo») e separação dos anos, não surpreende, visto que tendemos a classificar tudo, a separar tudo:

- Separamos o passado do presente e este do futuro, quando sabemos (aprendemos com George Orwell) que o futuro é o passado que fizemos, tal como o presente é o futuro que quisermos;

- Separamos, por «idades», a própria vida em si: a idade da infância da idade da adolescência, esta da maioridade e, por sua vez, esta da idade maior, da velhice. Quando sabemos que, verdadeiramente, não existe na vida separação, mas sim íntima continuidade e interdependência entre estas idades humanas.

- Separamos a vida da morte, quando sabemos que a morte faz parte da vida e mesmo que, quando vimos (como já vimos) uma mãe (clinicamente) morta a dar à luz um bebé, a vida faz parte da morte;

- Separamos a saúde da doença, quando sabemos (aprendemos com a Organização Mundial de Saúde) que «saúde não é só a ausência de doença…»;

- Separamos a vida do trabalho, quando sabemos que a trabalhar, a «ganhar a vida», almejamos também ganhar vida (pela realização e integração profissional, pessoal e social) e não perder (ir perdendo, na doença) vida e, muito menos, num instante, perder (num acidente) a vida;

- Separamos a casa do trabalho, quando sabemos que «levamos» a casa (preocupações, pré-ocupações, pós-ocupações…) para o trabalho, tal como, até literalmente tantas vezes, levamos (o) trabalho para casa;

- Separamos o Homem da Natureza, quando sabemos que a natureza do Homem é fazer parte da Natureza;

- Separamos a Terra da Humanidade, quando sabemos que sem Terra não há Humanidade;

- Separamos e até abolimos, vamos abolindo (nas atitudes, nos comportamentos, nos propósitos, nas decisões e acções individuais ou colectivas e políticas), a humanidade da/na Humanidade, quando sabemos (aprendemos com Teixeira de Pascoaes) que «se eliminarmos a palavra humanidade ficaremos todos cobertos de pêlos num instante»;

- Separamos a economia da sociedade, quando sabemos (por exemplo, por Karl Polanyi e pelo Papa Francisco) que a economia, como ciência social que é – deve ser –, ou também é (para) a sociedade ou deixa de ser economia (para passar a ser mero economicismo);

- Separamos os pobres dos ricos, quando sabemos que «os pobres são pobres, porque os ricos são ricos» (e vice-versa);

- Separamos os negócios da amizade («amigos, amigos, negócios à parte»), quando sabemos que cada vez mais a própria amizade é objecto de negócio e que, assim, até são certas «amizades» que possibilitam grandes negócios (atas);

- Separamos o que dizemos do que fazemos, quando sabemos (aprendemos com Frei Tomás ...) que pouco diz o que dizemos se contraria o que (não) fazemos, tal como sabemos que pouco faz (se é que não desfaz) o que fazemos se contraria o que dizemos;

- Separamos o que somos do que fazemos, quando sabemos (aprendemos com Eduardo Galeano) que «o que somos é o que fazemos para mudar o que somos»;

- Separamos a teoria da prática, quando sabemos que não há melhor teoria do que uma boa prática e vice-versa;

- Separamos o caminhar do caminho, quando sabemos (aprendemos com António Machado) que «o caminho faz-se caminhando».

Separamos isto tudo e então, por esta altura, neste como em todos os anos da nossa vida, também, claro, separamos o «Ano Velho» do «Ano Novo».

Mesmo sabendo que «nada é cindível na vida» (citando uma saudosa primeira-ministra portuguesa, Eng.ª Maria de Lurdes Pintassilgo), mesmo sabendo que, como na canção (Sérgio Godinho) e na poesia (e nada há mais verdadeiro do que a poesia, no caso a de Eduardo Guerra Carneiro), «isto anda tudo ligado».

«Ano Velho» e «Ano Novo». Verdadeiramente, separamo-los?

É que então, se estes anos, o «velho» e o «novo», na realidade são inseparáveis, incindíveis, na nossa vida e na da sociedade, que «passagem» há de um para o outro, senão a de um calendário velho para um calendário novo?

Não será que, afinal, no primeiro dia do ano de cada novo calendário a vida neste tal ano «novo» vai continuar a ser apenas mais vida (e, infelizmente, para alguns nem isso…), a mesma vida… «velha»?

«É que então, se estes anos, o "velho" e o "novo", na realidade são inseparáveis, incindíveis, na nossa vida e na da sociedade, que "passagem" há de um para o outro, senão a de um calendário velho para um calendário novo?»

A não ser que entendamos que tempo não é (como não é) algo não meramente abstracto, que tempo é vida (individual, colectiva, social, …), vivência, que tempo é o que se faz (desfaz, refaz, deixa de se fazer…) com ele.

E, assim, «passagem de ano» poderá então não ser apenas mudar de calendário mas, na realidade, mudar de referências, de objectivos, de práticas. Enfim (José Mário Branco), «mudar de vida». Ao que não pode deixar de subjazer mudar apenas mudar de calendário, mas sim, sobretudo, mudar de ideário.

Um ideário que contemple, por exemplo – que não pode ser mais pertinente, porque actual, premente –, a passagem:

- Das desigualdades para a justiça social;

- Da competição desenfreada para a solidariedade;

- Do egoísmo para o altruísmo;

- Do individualismo para o relacionamento e participação social;

- Da exclusão e racismo para a inclusão;

- Da marginalização para a integração;

- Da pobreza para a dignidade das condições de vida;

- Da degradação das condições de trabalho e salários exíguos para o trabalho digno;

- Da exiguidade das (baixas) pensões para a dignidade da velhice e da invalidez;

- Do neoliberalismo para o Estado Social;

- Da mentira para a Verdade;

- Da guerra para a Paz…

Bem, mas de qualquer modo, à meia-noite em ponto de todos os anos, lá paramos (mesmo que a rodopiar alegremente num baile) todos (ou quase todos…) para «separar» o «Ano Novo» do «Ano Velho», para, na alegria (com)participada – o que é saudável – de umas passas, espumoso, música, fogo de artifício, festejarmos, feéricos, a «Passagem de Ano».

Ainda que no dia seguinte, logo um que tanto a isso agora nos empurra (como Dia Mundial da Paz), nos perguntemos: Passagem de Ano? Mesmo?

https://www.abrilabril.pt/nacional/passagem-de-ano

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Homilia do cardeal Tolentino de Mendonça




Homilia do cardeal  Tolentino de Mendonça na missa de corpo presente de Adília Lopes, na capela do Rato, 2 de janeiro 

Queridos irmãs e irmãos,

Talvez os nossos ouvidos já se tenham habituado, com estes dois mil anos de leitura, pois ouvimos esta página do Evangelho de São Lucas [capítulo 2] e consideramos que ela é normal, quer do ponto de vista narrativo, quer da escolha e construção das personagens ou do modo de apresentar a história. Talvez nos pareça que tudo está correto. E, contudo, este texto como que opera uma viragem brusca, uma rutura na forma de contar, isto é, na maneira de ver, de experimentar e de organizar o mundo.

O filólogo Erich Auerbach, comparando a tradição literária clássica com a tradição bíblica, sublinha que há uma diferença fundamental entre ambas, no sentido de que os textos bíblicos rompem com os cânones clássicos, escolhendo uma linha que hoje diríamos de secularização e de democratização da narrativa. O cânone clássico desenvolve-se fundamentalmente em torno a determinadas elites sociais. A existência dos homens e das mulheres representada na literatura clássica é aquela socialmente ou politicamente qualificada. Os desqualificados da história, aqueles que não têm vez nem voz no percurso do tempo, raramente aparecem como protagonistas. A tradição hebraica faz o contrário: encontramos como protagonistas, cantores e cantoras da história, personagens absolutamente improváveis. E que esta página do Evangelho adote para a narração o ponto de vista dos pastores – que eram anónimos e tidos como massa impura, gente que não contava para nada – constitui uma reviravolta. Narrar a história desse ponto de vista é uma revolução. Representa a emergência de um quadro de civilização novo. A audácia de ver as coisas ao contrário e antecipar um mundo completamente diferente.

A tradição bíblica fez isso. E os grandes criadores, ao longo da inteira história, fazem isso… Hoje já muitos ouvidos se habituaram ao modo de escrever de Adília Lopes. Mas a estranheza que se mantém é porque ela realiza uma deslocação, um gesto disruptivo: constrói o poema a partir de pontos de vista que, política ou culturalmente, temos como secundários, sem interesse, banais, impuros, absolutamente de descartar… Conta, por exemplo, uma casa a partir da osga que está na parede! Conta a história a partir da mulher a dias! Ou narra história a partir da mulher, do que as mulheres vivem, do que experimentam! Trata-se de uma grande transformação!

Aos poetas, o que é que nós devemos? Claro, a Língua deve-lhes tanto: tantos achados de linguagem, uma música que antes não se ouvia (e que Adília colheu e mostrou), uma dimensão de brincadeira e de emaravilhamento. Porém, dizermos que um poeta interessa à Literatura é uma coisa de fazer chorar as pedras… pois um poeta interessa à cidade. Como Adília afirmou, a minha poesia é política – toda a grande poesia é política. Adília Lopes interessa à cidade, é um manifesto exposto à cidade. Ela ajuda-nos a pensar, a ver.  Se a poesia dela é tão desintegrada em relação ao sistema cultural vigente, é porque precisamente ela trabalhou outro modo de ver…

E fez isso à sua maneira, escolhendo como divisa o pouco de São Francisco de Assis – e, como ela explica no prefácio ao livro A Mulher-a-dias, do pouco, quis o pouco… Essa espécie de elogio da frugalidade, da sobriedade com que ela viveu sempre – sempre – é um manifesto, uma maneira de dizer o mundo com outra gramática, indicando paradigmas sociais muito diferentes…

Caminhamos para um futuro onde perceberemos, porventura melhor, a escassez dos modelos de expansão, de crescimento contínuo. O futuro dará mais valor à sobriedade. E considerará como profetas aqueles e aquelas que viveram assim, com essa austeridade, fazendo brilhar o pouco – e tornando-o um motivo de emaravilhamento e de condivisão.

Do convívio com Adília Lopes, há três coisas que guardo no coração – e penso que partilhadas por alguns dos que estão aqui presentes (os amigos, que eram a família que ela elegeu; e os leitores, que são e serão a sua família natural, por gerações):

Primeiro, a sua capacidade de contemplação. Adília Lopes era uma contemplativa – e com uma capacidade de deter-se sobre a realidade com uma inteligência, que era não só uma inteligência agudíssima, mas também uma inteligência de coração. Adília fazia-nos sentir que há um êxtase que nos é devido. Ela viveu de forma extática – e, quando se está no emaravilhamento, tudo é maravilha! Coisas que eram lixo para as outras pessoas, ela dizia: Não, isto é maravilha! Isto é louvor! É louvor! E, nesse sentido, Adília representa a poesia, porque canta! Ela é a mulher que canta!

Depois, um aspeto que a mim me tocava muito era a forma como ela procurava transformar a sua solidão. A solidão nunca foi para Adília uma forma de rutura com os outros. Ela sentia-se sempre em comunhão com os outros. Era essencialmente comunitária.

Ela normalmente comia sozinha, mas dizia que nunca comia sozinha, porque o ato de comer é sempre social – e Adília tinha uma intensa consciência disso. O ato de viver é sempre social; o ato de respirar é sempre social. Ela viveu essa ligação aos outros de uma forma absolutamente precisa, autêntica, consciente, voluntária – a ponto de dizer: eu sou uma obra dos outros e acreditar nisso…

E gostava de ser estimulada pelos outros, de amparar os outros, de receber e fazer circular o dom na forma extraordinária que era a sua. Insistia em transformar a solidão em comunhão, em fraternidade, em comunidade… mesmo quando não era fácil. Via-se como um ser comunitário e defendia sempre a comunidade. A sua preocupação com a democracia era concreta, interessava-se por coisas que para outros são descartáveis detalhes.

E a terceira coisa que recordo é a sua fé – que talvez seja uma dimensão misteriosa, mas muito presente na sua poesia, na mística do quotidiano que ela vivia… Quando ela dizia que era uma poetisa freira barroca, não é só porque era a San Juana de la Cruz portuguesa (ou não é só porque era uma beguina, e a sua casa era um béguinage do século XXI). Era porque assumia aquilo que o seu verso diz: Há milagres, não há só truques!

E ela sabia que não há só truques, há milagres! E essa fé era ajudava-a a subir a estrada… Aquilo que a fazia caminhar não era só o ar, era a certeza de que há milagres!

Dessa certeza hoje todos somos herdeiros. E por muitos anos (por muitos séculos, esperamos!), mulheres e homens como nós talvez se sintam, não apenas órfãos da Adília Lopes… mas também herdeiros da sua obra e do que ela viu. Do que ela viveu.

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Quatro poemas

No final da celebração, o dramaturgo Miguel Castro Caldas leu quatro poemas de Adília Lopes, que se reproduzem a seguir. Todos estão incluídos em Dobra – Poesia Reunida (edição Assírio & Alvim). 

Adília Lopes, poesia

Deus é a nossa mulher-a-dias

Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a vida
porque achamos
que não presta

Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a fé
porque achamos
que é pirosa

O tempo é sagrado

O tempo
é sagrado

O tempo
é templo

 
Textos ensanguentados

Textos
ensanguentados
como feridas
Gralhas
ensanguentadas
Textos
gelados
como árvores
no Inverno
Textos
como árvores
cortadas
aos bocados
Textos
como lenha
Textos
como linho
Textos
brancos
como a noite
Textos
brancos
como a neve
Textos
sagrados
Textos
bifurcados
como ramos
Textos
unos
como troncos
s
e
p
o
l
a
i
l
i
d
a

Nota 4 - Tolentino de Mendonça

Se tu amas por causa da beleza, então não me ames!
Ama o Sol que tem cabelos doirados!
Se tu amas por causa da juventude, então não me ames!
Ama a Primavera que fica nova todos os anos!
Se tu amas por causa dos tesouros, então não me ames!
Ama a Mulher do Mar: ela tem muitas pérolas claras!
Se tu amas por causa da inteligência, então não me ames!
Ama Isaac Newton: ele escreveu os Princípios Matemáticos da 
Filosofia Natural!
Mas se tu amas por causa do amor, então sim, ama-me!
Ama-me sempre: amo-te para sempre!"

domingo, 5 de janeiro de 2025

Gabriel Rockhill - As raízes nazis da NATO




* Gabriel Rockhill ,

 in Observatoriocrisis, 28/12/2024, Trad. da Estátua de Sal)


Que a NATO seja na verdade NAFO, a Organização Fascista do Atlântico Norte, não é brincadeira. É uma realidade mortalmente séria e precisa de ser mudada. A luta contra a NAFO é uma parte essencial da luta contra o fascismo e o imperialismo.



Os historiadores burgueses descrevem frequentemente o nascimento da NATO como uma organização de defesa do Atlântico Norte necessária para conter a chamada ameaça soviética. O que os historiadores burgueses não mencionam é que a ideia de uma aliança militar anticomunista entre a Europa Ocidental e os EUA foi fortemente apoiada por uma figura importante na política alemã e que a NATO tem sido por vezes considerada uma criação sua. Este homem era Heinrich Himmler, famoso pelo seu papel como líder das SS e um dos principais arquitetos do Holocausto nazi.

O coração da Segunda Guerra Mundial estava no Leste, onde Hitler, com o apoio financeiro dos principais capitalistas ocidentais, prometeu destruir o que catorze estados capitalistas não conseguiram erradicar na sequência de 1917: o socialismo realmente existente.

Assim que se tornou claro para Himmler que esta guerra tinha falhado, começando com a Batalha de Estalinegrado em 1943, ele começou a fazer propostas secretas ao Ocidente para formar uma aliança que lhes permitisse, coletivamente, fazer o que os nazis (bem como os fascistas japoneses) eram incapazes de fazer sozinhos.

Esta ideia atraiu sectores da elite ocidental e figuras poderosas dos principais países imperialistas partilharam a opinião de Himmler. Allen Dulles, o futuro diretor da CIA, queixou-se de que o seu país estava a combater o inimigo errado porque os nazis eram cristãos arianos pró-capitalistas, enquanto o verdadeiro adversário era o comunismo ateu.

Dulles, que trabalhava na altura na instituição antecessora da CIA, o Gabinete de Serviços Estratégicos, foi um dos interlocutores de Himmler para a planeada aliança anticomunista do Atlântico Norte. O general Karl Wolff, antigo braço direito de Himmler, ofereceu a Dulles, em troca de uma amnistia pós-guerra, o desenvolvimento, com os seus aliados nazis, de uma rede de inteligência contra Estaline.

Foi exatamente isso que aconteceu, e Dulles integrou muitos outros nazis e fascistas nas fileiras de uma internacional anticomunista. Isto incluiu o chefe dos serviços de inteligência nazis centrados na URSS, Reinhard Gehlen, que foi nomeado pela CIA para chefiar a inteligência da Alemanha Ocidental após a guerra, onde passou a contratar muitos dos seus colaboradores nazis.

Também incluiu, como parte da Operação Italian Dawn, Valerio Borghese, o homem conhecido como o Príncipe Negro e um dos principais líderes do fascismo do pós-guerra, que foi salvo de cair nas mãos soviéticas pelo OSS e mais tarde trabalhou para a CIA.

O oficial japonês que assinou a declaração de guerra contra os Estados Unidos, Nobusuke Kishi, conhecido como o “Diabo de Shōwa” pelo seu governo brutal de uma colónia japonesa no nordeste da China, também foi reabilitado pela infame Agência, que financiou a sua ascensão a Primeiro-ministro do Japão. Contudo, estes exemplos são apenas a ponta do iceberg, uma vez que um número incontável de fascistas foi reabilitado após a Segunda Guerra Mundial, sendo que, pelo menos 10.000 foram trazidos diretamente para os Estados Unidos.

Quando a NATO foi oficialmente criada em 1949, Portugal foi um dos seus membros fundadores. Naquela altura, Portugal era uma ditadura fascista, o que só prova o facto: a NATO foi, desde a sua fundação, uma aliança militar das potências imperialistas (fossem democracias burguesas ou estados fascistas) contra o comunismo, que era precisamente o que Himmler tinha em mente. .

A Grécia aderiu à NATO em 1953, depois de os comunistas, que desempenharam um papel de liderança na libertação do país dos nazis, terem perdido uma guerra brutal contra os novos ocupantes anticomunistas: o Reino Unido e os Estados Unidos. Tendo sido reintegrado o rei pró-fascista e depois estabelecido um governo fantoche de direita, as potências imperialistas ocidentais acolheram a Grécia na NATO assim que esta se tornou num Estado cliente anticomunista fiável. Estes padrões são visíveis ao longo da longa história da NATO, e a Ucrânia é apenas uma das versões mais recentes de um Estado cliente neofascista

A Alemanha Ocidental aderiu à NATO em 1955, o mesmo ano em que o rearmamento da República Federal da Alemanha foi autorizado através dos Acordos de Paris. O governo da Alemanha Ocidental selecionou os voluntários e admitiu 61 generais e almirantes nazis da Wehrmacht no seu novo exército, bem como muitos mais em escalões inferiores.

Entre os oficiais nazis de mais alta patente que se juntaram ao exército da Alemanha Ocidental estavam Hans Speidel e Adolf Heusinger, que foram empossados ​​como os seus dois primeiros tenentes-generais. Speidel tornou-se “chefe do Departamento de Forças Combinadas do Ministério da Defesa” e serviu como um dos principais conselheiros militares do Chanceler Konrad Adenauer (posição posteriormente ocupada por Heusinger). Heusinger, a quem Hitler se referiu como “meu fiel e leal colaborador”, tornou-se o oficial militar de mais alta patente da Alemanha Ocidental, o equivalente ao presidente do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos. Ele também atuou como avaliador-chefe da Organização Gehlen da CIA, desempenhando sua tarefa tão bem que a Agência o “considerou seriamente” para o cargo de Gehlen, de acordo com documentos internos. Heusinger, foi também como agente da CIA, que “continuou a consultar e a confiar nos representantes da CIA”, que relataram que “consideravam que as opiniões políticas de Heusinger favoreciam claramente os interesses dos EUA”. Estes dois líderes nazis foram promovidos e tornaram-se os primeiros generais de quatro estrelas da Alemanha Ocidental.

Ambos aqueles dois altos oficiais nazis desempenharam papéis importantes na NATO. Em 1954, Speidel foi nomeado o principal “negociador sobre a questão da entrada da Alemanha na NATO”. Supervisionou a integração das forças armadas da Alemanha Ocidental na NATO e foi nomeado chefe das Forças Terrestres Aliadas na Europa Central. Isto significava que Speidel era “o comandante operacional sénior de todas as divisões alemãs, americanas, francesas e britânicas atribuídas à Região Central da NATO”. E Heusinger, um oficial nazi de alta patente diretamente envolvido na guerra genocida contra a URSS, teria sido o principal comandante terrestre da NATO se a guerra eclodisse com os países do Pacto de Varsóvia. Esta figura tornou-se “oficial militar superior e principal conselheiro militar do secretário-geral” da NATO, servindo como presidente do Comité Militar da NATO, “o posto mais alto no ramo não civil da organização”.

Speidel e Heusinger, como muitos outros que aderiram à NATO, não eram nazis de baixa patente. Speidel foi promovido a tenente-general em janeiro de 1944 e condecorado com a Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro pelos seus serviços na guerra de eliminação antissoviética.

De acordo com um folheto informativo de 1961 do senador Wayne Morse, Heusinger tornou-se “chefe de operações do estado-maior de Hitler” em 1941 e foi “responsável pelo planeamento militar de todas as invasões nazis depois disso”. Ele chefiou os esquadrões especiais de extermínio (Einsatzgruppen) que tinham a tarefa de liquidar “todos os judeus e outros grupos”.

Heusinger explicou a sua opinião sobre estas questões com notável franqueza: “Sempre foi minha opinião pessoal que o tratamento da população civil e os métodos de guerra anti partidária (extermínio) apresentavam aos líderes políticos e militares uma oportunidade de levar a cabo os seus planos, nomeadamente, o extermínio sistemático do eslavismo e do judaísmo.”

Speidel e Heusinger não foram os únicos alemães a seguir o caminho dos nazis rumo à NATO, mas as suas posições de liderança revelam quão descarada tem sido a NATO no que diz respeito aos seus laços com o fascismo. Ambos também estiveram envolvidos na criação de exércitos “restantes”, que eram milícias fascistas secretas cujo suposto propósito original era servir como forças militares que permaneceriam atrás das linhas inimigas para realizar atos de sabotagem, espionagem, no caso de uma invasão soviética.

Na Alemanha, o coronel nazi Albert Schnez criou uma rede de cerca de 2.000 oficiais nazis e 10.000 soldados, alegando ser capaz de mobilizar 40.000 combatentes em caso de guerra. Eles tinham apoio financeiro do mundo dos negócios e compartilhavam regularmente informações com a Organização Gehlen. O próprio Gehlen era “o pai espiritual do Stay Behind na Alemanha”. A organização de Schnez também tinha contactos com duas outras redes nazis, ambas financiadas secretamente pelos EUA: o Technischer Dienst (Serviço Técnico) e a Liga da Juventude Alemã.

Os exércitos de retaguarda que estes líderes nazis estabeleceram na Alemanha Ocidental faziam parte de uma rede da Europa Ocidental de milícias fascistas secretas criadas pela CIA, MI6 e NATO.

Estas organizações recrutaram nazis, fascistas e outros anticomunistas de extrema-direita, forneceram-lhes armas e munições e equiparam-nos totalmente para travar a guerra. Foram ativados para cometer ataques terroristas de bandeira falsa contra a população civil, que foram atribuídos aos comunistas para justificar a repressão e obter apoio para os chamados governos da lei e da ordem.

Esta estratégia anticomunista de tensão foi extremamente letal: matou centenas de pessoas e feriu milhares. A NATO esteve por detrás destes ataques terroristas de bandeira falsa e os nazis da NATO estiveram, no mínimo, envolvidos na criação das organizações que os cometeram.

A conhecida piada de que a NATO é na verdade NAFO, a Organização Fascista do Atlântico Norte, não é brincadeira. É uma realidade mortalmente séria e precisa de ser mudada. A luta contra a NAFO é uma parte essencial da luta contra o fascismo e o imperialismo.

(*) O autor é professor de Filosofia na Universidade de Vilanova.

Fonte aqui.  https://observatoriocrisis.com/2024/12/28/las-raices-nazis-de-la-otan-2/

https://estatuadesal.com/2025/01/04/as-raizes-nazis-da-nato/

Miguel Esteves Cardoso - A Festa do «Avante!» chateia…

* Miguel Esteves Cardoso


 A Festa do «Avante!» é a maior iniciativa político-cultural do país. Ela é, como se sabe, o resultado do trabalho voluntário de milhares e milhares de militantes e simpatizantes comunistas. A forma como é tratada pela comunicação social dominante é um exemplo, dos mais evidentes, do silenciamento a é submetida nos jornais, revistas, rádios e televisões, toda a actividade do PCP. Uma actividade que, sublinhe-se, é maior do que a soma das actividades de todos os restantes partidos.

Quando não é o silêncio é a inverdade. Dizem-se muitas mentiras acerca da Festa do «Avante!»: que é irrelevante; que é um anacronismo; que é decadente; que é um grande negócio disfarçado de festa; que já perdeu o conteúdo político; que hoje é só comes e bebes.

As festas do «Avante!», por muito que custe aos anticomunistas reconhecê-lo, são magníficas. É espantoso ver o que se alcança com um bocadinho de colaboração. Não só no sentido verdadeiro, de trabalhar com os outros, como no nobre, que é trabalhar de graça. Mas não basta trabalhar: também é preciso querer mudar o mundo. E querer só por si, não chega. É preciso ter a certeza que se vai mudá-lo. Por isso o conceito do PCP de «colectivo partidário» parece provocar indisposições a muito comentador de serviço.

Porque os comunistas não se limitam a acreditar que a história lhes dará razão: acreditam que são a razão da própria história. É por isso que não podem parar; que aguentam todas as derrotas e todos os revezes; que são dotados de uma avassaladora e paradoxalmente energética paciência; porque acreditam que são a última barreira entre a civilização e a selvajaria.

Por isso sobre a construção da Festa cai um silêncio ensurdecedor.

Não há psicologias de multidões para ninguém: são mais que muitos, mas cada um está na sua. Isto é muito importante. Ninguém ali está a ser levado ou foi trazido ou está só por estar. Nada é forçado. Não há chamarizes nem compulsões. Vale tudo até o aborrecimento. Ou seja: é o contrário do que se pensa quando se pensa num comício ou numa festa obrigatória. Muito menos comunista. Todos os portugueses haviam de ir de cinco em cinco anos a uma Festa do «Avante!», só para enxotar estereótipos e baralhar ideias. Por isso, a Festa é um «perigo» que há que exterminar.

Assim se chega a outro preconceito conveniente. Dava jeito que a festa do PCP fosse partidária, sectária e ideologicamente estrangeirada. Na verdade, não podia ser mais portuguesa e saudavelmente nacionalista. Sem a orientação e o financiamento de Moscovo, o PCP deveria ter também fenecido e finado. Mas não: ei-lo. Grande chatice.

A teimosia comunista é culturalmente valiosa porque é a nossa própria cultura que é teimosa. A diferença às modas e às tendências dos comunistas não é uma atitude: é um dos resultados daquela persistência dos nossos hábitos. Não é uma defesa ideológica: é uma prática que reforça e eterniza só por ser praticada.

Enquanto os outros partidos puxam dos bolsos para oferecer concertos de borla, a que assistem apenas familiares e transeuntes, a Festa do «Avante!» enche-se de entusiásticos pagadores de bilhetes.

E porquê? Porque é a festa de todos eles. Eles não só querem lá estar como gostam de lá estar. Não há a distinção entre «nós» dirigentes e «eles» militantes, que impera nos outros partidos. Há um tu-cá-tu-lá quase de festa de finalistas. Por isso, ao Programa da Festa, anunciado em conferências de imprensa, são concedidas meia dúzia de linhas ou de segundos.

Ser-se comunista é uma coisa inteira e não se pode estar a partir aos bocados. A força dos comunistas não é o sonho nem a saudade: é o dia-a- dia; é o trabalho; é o ir fazendo; e resistindo, nas festas como nas lutas. Por isso a dimensão e o êxito da Festa chateiam. Põem em causa as desculpas correntes da apatia.

2006.09.03

In jornal "Público" - Edição de 3 de Setembro de 2010

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Domingos Lobo - Os Lusíadas – Antologia temática e texto crítico, de António Borges Coelho, com ilustrações de Manuel Sam Payo



* Domingos Lobo

Camões não é a voz da reacção e do colonialismo. Camões é a voz do nosso povo, dos lusíadas, a voz da insubmissão ante os privilégios, a voz do progresso social e científico, a voz da nação portuguesa, num elevado sentido humanista», disse Álvaro Cunhal na Festa do Avante! de 1979. É este Camões que brigava contra nobres e burgueses ao lado da plebe, que sofreu injúrias, fome e prisões, que denunciou honrarias e faustos da corte enquanto o povo mourejava de sol a sol por uma côdea dura, ou se esforçava nas naus da Índia morrendo de febres, de peste e de escorbuto, submetido e explorado, esse ilustre peito lu­si­tano, que percorre os 10 cantos de Os Lu­síadas e que António Borges Coelho, com a vera sabedoria crítica do historiador, do poeta e homem de cultura, neste livro encena como questão central: Que im­por­tância têm afinal Ca­mões e Os Lu­síadas; para que serve a po­esia? A resposta de Borges Coelho é imediata e plena de contundência: para tornar mais forte a nossa “fraca humanidade”.

Que “fraca hu­ma­ni­dade”, como povo, te­ríamos, que me­mória co­lec­tiva nos fi­xaria a este chão solar e ma­drasto, que iden­ti­dade, que língua fa­la­ríamos sem os po­etas que can­taram e cantam os nossos gestos mais fe­cundos e justos, as an­danças pelo mundo em busca de pão menos suado; as pe­lejas pelas rotas tran­so­ceâ­nicas, ori­entes, oce­a­nias, áfricas, gran­je­ando es­cassa for­tuna e muito sangue der­ra­mado; as lutas pela in­de­pen­dência desde a fun­dação até 1383, que Fernão Lopes des­creveu na Cró­nica de D. João I, mo­delar es­cultor da pri­meva língua, pas­sando pelo li­rismo ar­re­ba­tado de Ber­nardim Ri­beiro, pelas alu­ci­nadas vi­a­gens de Fernão Mendes Pinto; pelo supra-Ca­mões que Pessoa quis ser, pela de­núncia da bar­bárie fas­cista que se ins­creve na pena co­ra­josa dos nossos poeta ne­or­re­a­listas, de Ma­nuel da Fon­seca a Carlos de Oli­veira, de Jo­a­quim Na­mo­rado a Ar­mindo Ro­dri­gues; o 25 de Abril de Ary dos Santos, de Ma­nuel Gusmão, de Sophia, de Jorge de Sena. An­tónio Borges Co­elho dá-nos a res­posta nesta abor­dagem cri­te­riosa e no diá­logo que ao longo do en­saio es­ta­be­lece com as mais im­pres­sivas pas­sa­gens da épica ca­mo­niana, a co­meçar nesse longo e mo­delar poema, que nos in­ter­roga: «Quem pode ser no mundo tão quieto», cons­truído em oi­tavas, ins­cre­vendo no poema a feição de mo­der­ni­dade dis­cur­siva, a agu­deza sin­gular, as vir­tu­a­li­dades do idioma, na forma como Ca­mões o uti­liza para de­nun­ciar o alhe­a­mento das classes do­mi­nantes pe­rante o des­con­certo do mundo: Quem pode ser no mundo tão quieto,/​ou quem terá tão livre o pen­sa­mento,/​quem tão ex­pe­ri­men­tado e tão dis­creto,/​tão fora, enfim, de hu­mano en­ten­di­mento/​que, ou com pú­blico efeito, ou com se­creto,/​lhe não re­volva e es­pante o sen­ti­mento,/​dei­xando-lhe o juízo quase in­certo,/​ver e notar do mundo o des­con­certo?

Borges Co­elho faz uma lei­tura nova e ac­tu­ante de Os Lu­síadas, in­ves­tindo e so­bre­le­vando as es­trofes so­ci­al­mente com­pro­me­tidas da nossa obra maior e uni­versal. É o Ca­mões hu­mano, de­fensor do povo miúdo, que tinha es­pe­rança que o país in­qui­sidor, beato e mi­se­rável mu­dasse e com ele as von­tades, To­mando sempre novas qua­li­dades. Um país de todos e pos­sível, que não apenas de um pu­nhado de no­bres, se­nhores de la­ti­fún­dios feu­dais, vi­vendo de pre­bendas da Corte e da ex­plo­ração es­crava, à tripa forra, sub­me­tendo sem cui­dados o povo miúdo à sua am­bição de poder, à ga­nância e à vã co­biça.

Ca­mões, mesmo acos­sado pela In­qui­sição, so­bre­le­vando os seus mé­todos com subtil en­genho e arte, não deixou de cri­ticar, em­bora de forma ve­lada, al­guns dos que pri­vavam na Corte de D. Se­bas­tião: Vê que esses que fre­quentam os reais/​Paços, por ver­da­deira e sã dou­trina/​Vendem adu­lação, que mal con­sente/​Mondar-se o novo trigo flo­res­cente, e não deixou também, nesse in­có­modo Canto IX, que muito boa gente ainda olha de sos­laio, de de­nun­ciar, nas es­trofes 27 e 28, a re­lação cí­nica entre no­breza e povo, pen­dendo as leis sempre para o Rei, dei­xando o povo à míngua e à mercê de todos os ul­trajes: Vê que aqueles que devem à po­breza/​Amor di­vino, e ao povo ca­ri­dade,/​Amam so­mente mandos e ri­queza,/​Si­mu­lando jus­tiça e in­te­gri­dade;/​Da feia ti­rania e de as­pe­reza/​Fazem di­reito e vã se­ve­ri­dade;/​Leis em favor do Rei se es­ta­be­lecem,/​As em favor do povo só pe­recem.

No Texto Crí­tico, que acom­panha cada pe­ríodo em aná­lise de Os Lu­síadas, es­creve An­tónio Borges Co­elho: «O verso ca­mo­niano louva e fus­tiga. Louva a co­ragem, os chefes que pre­vêem os pe­rigos, os ex­pertos peitos, os que sobem ao mando quase for­çados. E fus­tiga: reis, no­bres ineptos, fi­lhos-fa­mília, pa­dres am­bi­ci­osos e ti­râ­nicos.»

Que falta ainda nos faz este vigor, esta su­pe­rior forma de afir­mação da língua e da jus­tiça, a cla­reza e a co­ragem deste verbo. Para os que ques­ti­onam a im­por­tância de ler hoje Os Lu­síadas, a in­ter­pre­tação crí­tica que dele nos dá Borges Co­elho é ade­quada res­posta.

https://www.avante.pt/pt/2666/argumentos/178047/Os-Lus%C3%ADadas-%E2%80%93-Antologia-tem%C3%A1tica-e-texto-cr%C3%ADtico-de-Ant%C3%B3nio-Borges-Coelho-com-ilustra%C3%A7%C3%B5es-de-Manuel-Sam-Payo.htm

sábado, 28 de dezembro de 2024

Crônicas Históricas · - Dados perturbadores da Idade Média

Ao visitar o Palácio de Versalhes em Paris, Nota-se que o sumptuoso palácio não tem banheiros. Na Idade Média, não havia escovas de dentes, perfumes, desodorizantes, e muito menos papel higiênico. Os excrementos humanos eram jogados pelas janelas do palácio. Em um feriado, a cozinha do palácio conseguiu preparar um banquete para 1500 pessoas. sem a mínima higiene.

Nos filmes atuais vemos as pessoas dessa época abanar ou abanar... A explicação não está no calor, mas no mau cheiro que eles emitiam sob as saias (que foram feitas de propósito para conter o cheiro das partes íntimas, pois não havia higiene). Também não era costume tomar banho devido ao frio e quase inexistência de água corrente. Só os nobres tinham lacaios para abaná-los. para dissipar o mau cheiro que o corpo e a boca expiravam, além de afugentar os insetos.

Aqueles que estiveram em Versalhes admiraram os enormes e belos jardins que, naquele momento, não só eram contemplados, mas usados como sanita nas famosas baladas promovidas pela monarquia, porque não havia banheiros.

Na Idade Média, a maioria dos casamentos ocorreram em junho (para eles, o início do verão). A razão é simples: o primeiro banho do ano era tomado em maio; então, em junho, o cheiro das pessoas ainda era tolerável. No entanto, como alguns cheiros já começaram a incomodar, as noivas levavam buquês de flores perto dos corpos para cobrir o fedor. Daí a explicação da origem do buquê de noiva.

Os banheiros eram tomados em uma banheira enorme cheia de água quente. O chefe da família teve o privilégio do primeiro banho em água limpa. Depois, sem trocar a água, chegavam os outros na casa, por ordem de idade, mulheres, também por idade e, finalmente, crianças. Os bebês eram os últimos a tomar banho. Quando chegava a sua vez, a água na banheira estava tão suja que era possível matar um bebê lá dentro.

Os telhados das casas não tinham céu e as vigas de madeira que os seguravam eram o melhor lugar para os animais: cães, gatos, ratos e escaravelhos mantivessem-se aquecidos. Quando chovia, as fugas obrigaram os animais a saltar para o chão.

Os que tinham dinheiro tinham pratos de lata. Certos tipos de alimentos oxidaram o material, fazendo com que muitas pessoas morram por envenenamento. Lembremos que os hábitos higiênicos da época eram terríveis. Os tomates, sendo ácidos, foram considerados venenosos por muito tempo, as xícaras de lata eram usadas para beber cerveja ou whisky; essa combinação, por vezes, deixava o indivíduo "no chão" (numa espécie de narcolepsia induzida pela mistura de bebida alcoólica com óxido de estanho).

Alguém que passasse na rua pensaria que ele estava morto, então eles recolhiam o corpo e preparavam-se para o funeral. Depois colocou o corpo na mesa da cozinha por alguns dias e a família ficava olhando, comendo, bebendo e esperando para ver se o morto acordava ou não. Daí que os mortos são velados (velatório ou velório), que é a vigília ao lado do caixão.  Inglaterra é um país pequeno, onde nem sempre havia lugar para enterrar todos os mortos. Depois abriam-se os caixões, removiam-se ossos, colocavam-se em ossários e o túmulo era usado para outro cadáver.

Às vezes, ao abrir os caixões, notava-se que havia arranhões nas tampas do interior, o que indicava que o homem morto tinha sido enterrado vivo. Assim, ao fechar o caixão, surgiu a ideia de amarrar uma tira do pulso do falecido, passar por um buraco feito no caixão e amarrá-la a um sino. Depois do enterro, alguém ficava de serviço perto do túmulo por alguns dias. Se o indivíduo acordasse, o movimento do seu braço tocaria o sino. E seria "salvo pela campanha", uma expressão usada por nós até hoje.

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quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Pai Natal foi à guerra

Pai Natal foi à guerra  // O uso da imagem do Pai Natal desde a Guerra Civil Americana até à Segunda Guerra Mundial


 
A imagem moderna do Pai Natal, ícone da paz e da boa vontade, realmente foi forjada durante os dias mais negros da América, quando ele apareceu numa ilustração da Guerra Civil, e não foi a última vez que o alegre St. Nick foi convocado para apoiar esforços de guerra na frente de guerra.
 
Apesar de "paz na terra" nunca ter parecido mais evasiva do que durante a Guerra Civil, os anos mais sangrentos da América na realidade produziram a nossa imagem popular de Pai Natal. Clement Clarke Moore havia introduzido o Pai Natal na psique americana com seu poema de 1823 "A Visit from St. Nicholas" (mais popularmente conhecido como "The Night Before Christmas"), mas foi quatro décadas mais tarde, quando a figura moderna de St. Nick saía da caneta do notável ilustrador Thomas Nast.
 
O humorista político, que mais tarde ganhou fama parodiando ambos os partidos políticos, desenhando um elefante como um símbolo para os republicanos e um burro para os democratas, juntou-se à equipa do semanário Harper, um dos mais lidos jornais durante a Guerra Civil Americana, no verão de 1862. Um fervoroso apoiante da causa da União, Nast tinha considerável experiência de ilustrar Abraham Lincoln, mas outra figura de barba, Pai Natal, era o seu tema para a capa de 3 de Janeiro da revista de 1863.
 
Nast, que tinha emigrado da Alemanha com a sua família quando ele tinha seis anos de idade, recorreu às suas memórias de infância de St. Nicholas para esboçar um Pai Natal com um trenó puxado por renas, longa barba branca e chapéu forrado de pele e pelagem a visitar um acampamento do exército da União. O Pai Natal de Nast não é decorado de vermelho, mas sim com uma roupa cheia de estrelas, com calças listradas de vermelho e branco e uma jaqueta azul com estrelas brancas. Nast aumenta a configuração patriótica pondo soldados no desenho a disparar uma salva de artilharia, as estrelas e riscas agitadas orgulhosamente na brisa e um arco triunfal decorado com sempre-vivas que diz: "Bem-vindo Pai Natal."
 
Sentando-se sobre seu trenó, Pai Natal distribui presentes. Pai Natal não está claramente a desejar boa vontade de todos, no entanto, nas suas mãos está um fantoche a dançar do presidente confederado Jefferson Davis com uma corda amarrada no pescoço que faz parecer como se ele está sendo linchado por St. Nick. "Pai Natal está a entreter os soldados, mostrando-lhes o futuro de Jeff Davis," expôs o semanário Harper. "Ele está amarrando uma corda muito firmemente à volta do seu pescoço, e Jeff parece estar chutando muito em tal destino."



 
 
Nast desenhou representações menos beligerantes de Pai Natal numa mesma edição do semanário Harper. Uma ilustração pródiga retrata um solitário soldado da União na véspera de Natal 1862 sentado perto de uma fogueira bruxuleante olhando para fotografias de sua família, enquanto em casa está a sua esposa ajoelhada com as mãos em oração desejando para o regresso seguro do seu marido ao mesmo tempo que o luar ilumina os seus filhos angelicais dormindo na cama, sonhando com o Pai Natal. A extensão de duas páginas inclui imagens de campos de batalha e lápides, mas também do Pai Natal a descer uma chaminé e a ser arrastado num acampamento da União pelas suas renas à medida que ele atira presentes fora do seu trenó.
 
O Pai Natal ficou entrelaçado com a Confederação durante a Guerra Civil. A escassez de tempo de guerra trouxe Natais austeros, o que exigiu explicações sobre a ausência do Pai Natal. Alguns pais explicaram que o bloqueio da União tinha impedido o Pai Natal de viajar para o Sul, enquanto um escravo ainda jogou a final Scrooge dizendo a um grupo de crianças na Geórgia que St. Nick tinha sido baleado pelos Yankees. O Richmond Examiner disse mesmo em Virginia, que não havia um Pai Natal. O jornal criticou St. Nick como "um brinquedo-traficante holandês" e "um imigrante da Inglaterra", que não tinha nada a ver "com a genuína hospitalidade da Virginia e enfeites de Natal."
 
Durante as duas décadas seguintes, as primeiras gravuras de Nast do Pai Natal cristalizaram a imagem moderna de um robusto e alegre Kris Kringle com uma longa barba branca e roupa vermelha. No entanto, a guerra civil não seria a última vez que o Pai Natal seria convocado para o esforço de guerra. Durante a Primeira Guerra Mundial, o Pai Natal foi transformado numa figura patriótica ao longo das linhas do Tio Sam com o governo dos EUA a produzir anúncios e obras de arte que mostravam o Pai Natal com as tropas e vendendo títulos de guerra.
 
Quando a Segunda Guerra Mundial chegou aos Estados Unidos com o bombardeio de Pearl Harbor apenas algumas semanas antes do Natal de 1941, o Pai Natal foi novamente implantado para ajudar no esforço de guerra. O Pai Natal pediu aos americanos para comprarem títulos de guerra, conservarem os recursos e manterem silêncio para evitar fugas para o inimigo.
 
Ele também foi envolvido numa iconografia mais militarista. O Conselho de Produção de Guerra produziu um cartaz de um alegre, Pai Natal com uma espingarda sobre o ombro e que diziam "Pai Natal foi à guerra!" Foi-se os familiares fato vermelho e chapéu de St. Nick, substituídos por um monótono uniforme do exército e capacete. Outro cartaz de propaganda da War Production Board mostrou o Pai Natal junto com aviões e munições com o título: "Feliz Natal para Todos e para Todos uma boa luta." Uma carta para o Pai Natal prometeu que as armas seriam entregues aos "Srs. Hitler, Mussolini e Tojo." Foi uma tentativa não tão súbtil de usar o Pai Natal para enquadrar a Segunda Guerra Mundial como um conflito entre o bem e o mal, entre a impertinente e agradável.

Fonte:
History.com

https://pt.worldwar-two.net/outros/pai-natal-foi-a-guerra/