domingo, 21 de outubro de 2007

O mundo literário de José Saramago

Literatura y Lingüítica N° 17, págs: 65-82







Literatura: artículos y monografías











O mundo literário de José Saramago











Rosemary Conceição dos Santos
Brasileira,
Universidade de São Paulo, Brasil
rcs@netsite.com.br

















Resumen:






Este trabajo aborda características de la escritura de José Saramago. Discute la presencia de la historia, de elementos maravillosos, nuevo lenguaje, metáforas y alegorías en su narración.






Palabras clave: Saramago, metáfora, alegoría, maravilloso, narración






Abstract:






This work analyses characteristics of the Saramago’s narrative. To reach this purpose were used concepts such as metaphor, allegory, wonderful and new speech.






Keywords: Saramago, metaphor, allegory, wonderful, narrative.

















1. Introducción




No Memorial do Convento, o mundo literário de José Saramago é constituído, entre outros, por quatro elementos que consideramos fundamentais, os quais são: a interrogação do passado a partir do presente, a introdução de elementos maravilhosos na narrativa, a tentativa de uma linguagem que altera sua expressão gráfica e pontual e a construção de excertos metafóricos que nos permitem vislumbrar possíveis significados alegóricos.




2. A interrogação do passado a partir do presente




Considerando Aristóteles (Aristóteles, 2000), sabemos que o poeta, ao construir o seu texto literário, não narra, necessariamente, o quê aconteceu e sim busca representar o que poderia ter acontecido, valendo-se da verossimilhança e da necessidade do que ele quer narrar. Por sua vez, no contexto da História Tradicional, o historiador se difere do poeta por narrar as coisas como elas aconteceram e não como ele imagina que elas aconteceram. Para tanto esse historiador se vale de documentos escritos oficialmente, os quais, espera-se, reproduzam exatamente a situação social que se procura conhecer.




A obra Memorial do Convento, mesclando ficção e história, busca reconstruir, de forma imaginativa, figuras e fatos importantes da cultura portuguesa. No decurso dessa reconstrução, a combinação ficção e história permite ao autor abordar valores acerca da raça, língua, costumes, religião e folclore que, entre outros elementos, constituíam a sociedade portuguesa do século XVIII.




Relendo, imaginariamente, fatos e situações acontecidos, de modo a cobrir lacunas deixadas pelos documentos históricos oficiais, o autor, através da revisão do passado, questiona o presente. Isto ressalta uma das qualidades mais luminosas da obra, ou seja, a presentificação do relato.




Saramago recria o real, até onde este é possível de ser conhecido, através do filtro da subjectividade. O produto filtrado, ou seja, a obra final, podendo ser entendida como uma leitura crítica e inventiva da realidade oitocentista, mostra uma mente do século XX, consciente do que o século XX considera como erros e acertos oitocentistas, interrogando os fatos que deixaram de ser contados, consciente ou inconscientemente, pelos historiadores da época em estudo.




Com o Memorial do Convento, o autor propõe uma nova dimensão para a narrativa histórica, reconstituindo um vasto quadro de Portugal durante a primeira metade do século XVIII e revelando este período remoto através do olho, magicamente crítico, da atualidade.




Logo nas primeiras linhas, um relato do ambiente da corte portuguesa no reinado de D. João V, no século XVIII. Neste, o rei, preocupado com a continuidade de sua dinastia, ameaçada pela possível esterilidade da rainha Maria Josefa, e influenciado pela profecia dita pelos religiosos que o cercavam, ordena que seja construído um convento para que Deus lhe permita a sucessão.




Segundo o autor, a construção desse convento, tramada pelo astuto e ardiloso personagem frei António de São José que, por ser confessor da rainha, tomara conhecimento antecipadamente de que ela já estaria grávida, era, na verdade, a concretização de um antigo desejo dos franciscanos, alimentado desde quando Portugal estivera dominado pela Espanha (1580-1640).




Através do relato da construção desse convento, o leitor toma conhecimento do farto calendário de festas religiosas da época que, muitas vezes, por estimular a luxúria e a liberação dos instintos carnais, assumiam aspecto profano, distanciando-se, na realidade, das abstinências e penitências preconizadas pela igreja para estas ocasiões.




Até mesmo as procissões, com suas cenas de autoflagelação, transformavam-se em rituais do diabo, visto a narrativa dos penitentes carregando pesados grilhões como crucifixos ou açoitando-se com chicotes adornados com cacos de vidro, sem falar nas mulheres, muitas delas freiras, deliciando-se com o sofrimento alheio.




Desta forma o cotidiano da vida religiosa no século XVIII era pontuado pela degradação moral, ressaltando a perseguição aos hereges ( judeus, cristãos-novos, bruxas, feiticeiros, alquimistas e sodomitas ) que, aos domingos, eram processados e condenados pela Inquisição a morrer nas fogueiras armadas no Terreiro do Paço. Para completar este "lazer dominical", cumpre lembrar que existiam, também, as touradas.




Por outro lado, ao passo que reconstrói o Real, Saramago, valendo-se de sua leitura pessoal do Barroco Português e dos registros oficiais da construção de Mafra, confere forma e identidade à minoria esquecida dos registros consultados, os "sem-história", os pequenos, humilhados, banidos, condenados:






Daqueles homens que conhecemos no outro dia, vão na viagem José Pequeno e Baltasar, conduzindo cada qual sua junta, e entre o pessoal peão, só para as forças chamado...vão outros Josés, e Franciscos, e Manuéis, serão menos Baltasares, e haverá Joões, Álvaros, Antónios e Joaquins...todos representados...enquanto não se acabar quem trabalhe, não se acabarão os trabalhos... (Saramago, 1999, p. 233)




Valendo-se da memória dos fatos históricos lidos e associando a essa memória sua própria imaginação, o autor infere possíveis inquietações que teriam atormentado personagens históricas como Padre Bartolomeu, por exemplo:






Tenho sido a risada da corte e dos poetas, um deles, Tomás Pinto Brandão, chamou ao meu invento coisa de vento que se há-de acabar cedo, se não fosse a protecção de el-rei não sei o que seria de mim, mal el-rei acreditou na minha máquina e tem consentido que, na Quinta do duque de Aveiro, a S. Sebastião da Pedreira, eu faça os meus experimentos, enfim já me deixam respirar um pouco os maldizentes, que chegaram ao ponto de desejar que eu partisse as pernas quando me lançasse do castelo, sendo certo que nunca eu tal coisa prometera, e que a minha arte tinha mais que ver com a jurisdição do Santo Ofício que com a geometria." (Saramago, 1999, p.61)




Ou, valendo-se de digressões, presentificando seu relato ao discutir a imagem que o referido padre projetava nos meios em que vivia:






Três, se não quatro, vidas diferentes tem o padre Bartolomeu Lourenço, e uma só apenas quando dorme, que mesmo no sonho foi o padre que sobe ao altar e diz canonicamente a missa, se o académico tão estimado que vai incógnito el-rei ouvir-lhe a oração por trás do reposteiro, no vão da porta, se o inventor da máquina de voar ou dos vários modos esgotar sem gente as naus que fazem água, se esse outro homem conjunto, mordido de sustos e dúvidas, que é pregador na igreja, erudito na academia, cortesão no paço, visionário e irmão de gente mecânica e plebeia em S. Sebastião da Pedreira, e que torna ansiosamente ao sonho para reconstruir uma frágil, precária unidade, estilhaçada mal os olhos se lhe abrem, nem precisa estar em jejum como Blimunda. (Saramago, 1999, p.163)




Reinventando as almas dos antigos, nota-se o empenho do autor em reviver determinados acontecimentos, inseridos e discutidos em sua narrativa. Sua intervenção literária, com a inserção de episódios ficcionais em contextos históricos efetivos, ao mesmo tempo que resgata a memória do passado, viabiliza a discussão desse mesmo passado no espaço narrativo, coloca o leitor diante de um acontecimento dinâmico, que lhe permite vivenciar intensamente o dramático cotidiano das personagens.




Logo, o projeto literário de Saramago nos parece consistir em fornecer uma visão do passado sob uma nova perspectiva, iluminada por um realismo crítico e social, que se fundamenta na ideologia marxista. Este processo de dessacralização do passado torna-se literário pela expressão de recursos expressivos como a ironia e a paródia, que, associados a elementos míticos e oníricos, conferem à obra uma dimensão artística que ultrapassa os limites da história e da ideologia. Fundamentalmente, a ironia dá ao romance a possibilidade de questionar o passado, enfim, a história real.




Um exemplo da dessacralização do passado, através do recurso da ironia pode ser evidenciado quando, na obra, Saramago, coloca D. João V brincando de armar uma miniatura de São Pedro de Roma, sem nenhum esforço físico, " El-rei tem na sua tribuna uma cópia da Basílica de São Pedro de Roma que ontem armou na minha presença". Com esta imagem, o autor ironiza a figura do rei e questiona o fato de D. João V ter entrado para a História como o construtor do convento de Mafra.




Além disso, Saramago ridiculariza a figura da rainha D. Maria Ana ao apresentá-la ocupante de uma cama infestada por percevejos, "Em noites que vem el-rei, os percevejos começam a atormentar mais tarde por via da agitação dos colchões...lá na cama do rei estão outros à espera do seu quinhão de sangue...".




Logo, é a combinação de todos estes elementos que permite a Saramago instaurar esse modelo de romance histórico na Literatura Portuguesa.




Tematicamente, o romance recupera um traço fundamental do espírito barroco, ou seja, a noção de dualidade, que se estabelece no contraste entre os corruptos universos da Corte e da Igreja e o sofrido povo português. É possível encontrar, no Memorial, a elevada consciência com que o povo percebe as injustiças sociais que sofre.




A tensão entre os conteúdos, resultado da dualidade barroca, é uma característica passível de ser encontrada em confrontos como o da passarola e a pedra gigantesca que centenas de homens arrastam para a construção do convento, orientando oposições de leveza, vôo, sonho, liberdade, transcendência, humanização, êxtase, música e revolução, respectivamente, a peso, imobilidade, realidade, escravidão, materialismo, embrutecimento, sofrimento, doença e repressão que caracterizam os bastidores da construção do convento.




Assim consideradas as oposições, da leitura do Memorial nos fica a impressão de que a estória relatada pelo romance seja mais digna que a história de Portugal do século XVIII, ou seja, que as oposições eufóricas funcionem como uma tentativa de vitória, ou seja, de superação dos conceitos e valores das oposições disfóricas.




Aos romances contemporâneos em que a presença e a elaboração do tema histórico ocupam o centro da narrativa, como é o caso do Memorial do Convento, Linda Hutcheon (Hutcheon, 1991) convencionou chamar de metaficção historiográfica.




Sob a perspectiva da metaficção historiográfica o romance pós-moderno não se afasta, nem nega ou destrói a história, e sim a revisita de uma maneira consciente e, às vezes, irônica.




Em Memorial do Convento, trabalhando a auto-referencialidade, ou seja, o constante referir-se à situação discursiva, Saramago expõe sua ficção a uma leitura atenta e subjetiva. Aliado a isso, o caráter reflexivo que o autor confere à abordagem temática da história, implicando um distanciamento crítico, e não somente um simples reviver sentimental e pitoresco de certos momentos da história, justificam a aproximação do Memorial da metaficção historiográfica.




Reformulando o padrão tradicional do romance histórico com a valorização do homem e da sua obra, com a introdução de elementos maravilhosos e com a paródia de textos considerados "sagrados" ou ideologicamente comprometidos, Saramago, no Memorial, propõe uma recriação histórica num nível desconhecido ao romance histórico tradicional. E nesse nível a estrutura de sua narrativa não se resume a descrever e evocar o passado e sim a trabalhar cuidadosamente o ponto de vista narrativo, problematizando, discutindo e questionando os próprios elementos descritivos.




Por sua vez, a construção realista de ambientes e acontecimentos históricos pode ser entendida como outra característica que evoca a questão do romance histórico na metaficção historiográfica de José Saramago. No Memorial essa reconstrução realista, de exatidão histórica e valorização de pormenores, assim como os quadros de costumes, a suntuosidade e o excesso barroco, presente na adjetivação rebuscada e nas longas enumerações, são um exemplo disso.




Logo, ao lado dos elementos tradicionais que remetem ao modelo clássico dos romances históricos, os quais apresentam uma realista descrição histórico-social, o Memorial apresenta elementos inovadores que contestam esse modelo, como, por exemplo, a explícita consciência do uso da linguagem barroca e a auto-referencialidade da narrativa:






Como se mostram variadas as obras das mãos do homem, são de som as minhas, Fala das mãos, Falo das obras, tão cedo nascem logo morrem, Fala das obras, Falo das mãos, que seria delas se lhes faltasse a memória e o papel em que as escrevo, Fala das mãos, falo das obras ... Parece apenas um gracioso jogo de palavras, um brincar com os sentidos que elas têm, como nesta época se usa, sem que extremamente importe o entendimento ou propositadamente o escurecendo."(Saramago, 1999, p. 160)




trabalhando a História como um discurso, um texto, uma narrativa.




Sendo a auto-referencialidade um dos elementos da narrativa em que a metaficção historiográfica difere mais explicitamente do romance histórico, dois outros desses mesmos elementos a serem considerados em nosso estudo do Memorial são a personagem e a adoção do maravilhoso na construção textual saramaguiana.




3. A introdução de elementos maravilhosos na narrativa




De acordo com Kaufman (1991, p. 129), o romance histórico tradicional introduz em sua narrativa dois tipos de protagonistas, a saber, protagonistas-tipo e figuras de autenticidade histórica.




A presença dos protagonistas-tipo se justificaria pela necessidade de existir representantes de um dado meio ou classe social em cujos destinos ficcionais se refletiriam tendências importantes e mudanças históricas. Por outro lado, as figuras históricas tanto confeririam autoridade histórica quanto encarnariam os aspectos do movimento social ou da mudança histórica em que se encontram inseridas.




Um corpus de personagens do Memorial, composto por Blimunda, Baltasar, Padre Gusmão, Domênico Scarlatti, a passarola e o Convento de Mafra, se considerado, em um primeiro momento, composto por protagonistas-tipo, vincular-se-ia aos tipos sociais da bruxa, soldado, cientista e artista barrocos que Rosário Villari (Villari, 1991) tão bem explicitou em seu O homem barroco, consideradas as devidas semelhanças e variações. Por outro lado, se considerados enquanto figuras históricas, teríamos Padre Bartolomeu e Domênico Scarlatti entrando diretamente na ação e inter-relacionando-se com os personagens inventados Blimunda e Baltasar, dentro dos limites do possível, combinando o realismo de um protagonista histórico com o maravilhoso de um personagem ficcional.




Padre Bartolomeu, figura histórica, é um dos vértices do triângulo formado pelos personagens centrais do romance. Orador sacro de raro talento, "ao ponto de o terem comparado ao padre Vieira, que Deus haja e o Santo Ofício houve", o Padre Bartolomeu destacou-se também como um grande lingüista. Lente de Matemática em Coimbra, este brasileiro de Santos muito se destacou na corte de D. João V. Graças à proteção do rei, o padre Bartolomeu pôde dedicar-se com entusiasmo à construção da passarola, ou, no seu dizer, sua "máquina aerostática". Com explicações extremamente pedagógicas, o padre convence Baltasar a participar do projeto de confecção da passarola e dá à Blimunda condições para aplicar o dom de magia de que ela era possuidora na construção da mesma. Por ser liberal, o padre foi perseguido pela Inquisição, sob a alegação de que nutria simpatia por cristãos-novos. Para não ser preso, apressou a estréia de seu invento, provando sua eficácia ao voar até as proximidades de Mafra; a seguir fugiu para a Espanha, onde teria morrido num asilo de loucos.




Com Padre Bartolomeu introduzimos os personagens históricos, representados no romance, também, pelo rei D. João V, a rainha e Domênico Scarlatti.




Domênico Scarlatti, outra figura histórica, foi compositor italiano, considerado um "estrangeirado" que circulava na corte portuguesa do século XVIII, foi contratado para ensinar música à infanta Maria Bárbara, cujo nascimento se transformara em voto para a construção do convento de Mafra. Com a música de seu doce cravo, Scarlatti, pelas mãos de Saramago, consegue curar Blimunda de uma enigmática doença, possibilitando que ela continuasse a dar sua imprescindível contribuição ao projeto da passarola.




Assim considerados, entendemos que, no Memorial, Padre Bartolomeu e Domênico Scarlatti configuram um diálogo de elementos do romance histórico tradicional com um novo modelo da ficção histórica, ou seja, a metaficção historiográfica, que contém elementos desses dois modelos.




Por sua vez, o termo maravilhoso utilizado neste estudo pode ser definido como a presença de fatos, personagens, objetos e ações constituídos por elementos que não se enquadram no padrão do real em que estamos habituados a conviver e considerar normais.




De acordo com o glossário preparado por Augusto Magne (Magne, 1994), "maravilha" quer dizer "cousa de causar pasmo ou espanto" porque são as "grandes puridades que Nosso Senhor nom quis outorgar que homem as achasse que houvesse em pecado mortal". Quanto a "puridades", diz o glossário que, "no plural, são cousas ocultas e misteriosas".




Uma vez que no Memorial a personagem Blimunda é dotada da virtude insólita da vidência, "Eu posso olhar por dentro das pessoas", assim como a personagem Baltasar dá mostras de rápidas referências a seres incomuns, presentes em crendices populares, como, por exemplo, nos seguintes excertos, extraídos do Memorial, "podiam aparecer avantesmas e lobisomens, almas penadas e luzeiros, com o espigão os arredaria"; "Pensou em lobisomens, em avantesmas de feitio e porte vário, se andariam por ali almas penadas, acreditou firmemente que o padre tinha sido levado pelo demónio em pessoa", entendemos que a obra saramaguiana aqui estudada faz uso do maravilhoso na confecção narrativa.




Além das características físicas de Blimunda, de seus pensamentos e dos de Baltasar, considerando o maravilhoso imaginário medieval proposto por Le Goff (Lê Goff, 1989), os portadores de defeitos físicos, assim como os desprezados e perseguidos, ainda que integrados à sociedade, são considerados como criaturas excluídas da sociedade, alvo de desprezo e vistas como "diferentes" e "estranhas". Nestes casos entendemos enquadrarem-se, respectivamente, Baltasar, pela perda da mão esquerda, e Padre Bartolomeu por muitos outros motivos, como, por exemplo, ter nascido no Brasil e continuar sua família vivendo no mesmo, ter voado, quando "só o podem fazer os anjos e o Diabo", ser amigo da mãe de Blimunda, condenada pelo Santo Ofício etc.




Mutilado na guerra pela sucessão do trono espanhol, em um conflito que não tinha nada a ver com Portugal, Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, é um camponês que encarna o protótipo do pária social. Participa da sociedade apenas enquanto serve como instrumento de manipulação de uma elite inconseqüente. Sua marginalidade manifesta-se tanto na condição de ex-soldado como na de "boeiro", único ofício que sua limitação física permitia desempenhar, conduzindo carros-de-boi durante a construção do convento de Mafra. Nos intervalos, Baltasar integrava o grupo que construiu a passarola, desempenhando com habilidade e competência a função que lhe fora atribuída pelo padre Bartolomeu.




O fato de ser maneta confere-lhe uma outra dimensão, pois coloca-o fora do tempo. Uma vez que o verbete "maneta" indica a falta de um braço ou de uma mão, Chevalier (Chevalier, 1989) nos esclarece que tal caracterização o "faz participar de uma outra ordem, que é a da imparidade ou do sagrado, seja essa imparidade esquerda, feitiçaria, ou direita, vidência.




Sob nosso ponto de vista, Baltasar, por não possuir a mão esquerda, tem sua deficiência anulada com a aproximação de Blimunda, que vê além do que todos comumente vêem.




O gancho, ao permitir que Baltasar ate as velas e os arames da passarola, nos remete novamente a Chevalier que, no mesmo verbete, nos informa que o maneta não está fora do tempo definitivamente, podendo ser reintegrado ao mesmo "através de uma nova utilização de suas mãos e de seus braços".




A condição de maneta também é discutida por Padre Bartolomeu que, no Memorial, iguala, hereticamente, Baltasar a Deus, quando argumenta que:






...maneta é Deus, e fez o universo ... que está a dizer, padre Bartolomeu Lourenço, onde é que se escreveu que Deus é maneta, Ninguém escreveu, não está escrito, só eu digo que Deus não tem a mão esquerda, porque é à sua direita, à sua mão direita, que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mão esquerda de Deus, nem as Sagradas Escrituras, nem os Doutores da Igreja, à esquerda de Deus não se senta ninguém , é o vazio, o nada, a ausência, portanto Deus é maneta. Respirou fundo o padre, e concluiu, da mão esquerda. (Saramago, 1999, p.65)




Além disso, ter uma única mão significa também "poder", pois, é assim que se representa a Justiça. O trabalho de Baltasar na construção da passarola permite que ele resgate plena e profundamente sua condição de homem. Seu martírio na fogueira da Inquisição conota uma espécie de sagração, de verdadeira elevação espiritual, bem diferente da festa profana que simultaneamente se realiza com a inauguração da basílica de Mafra. O sofrimento e a dor de sua morte física são como um estágio necessário para consolidar a ascensão espiritual de um homem assinalado.




Sendo assim, fazendo dos elementos extraordinários, ou seja, maravilhosos, protagonistas de seus romances, Saramago contrapõe esses mesmos elementos aos ditos seres normais, espelhando em sua ficção um equilíbrio instável, que pode se alterar a qualquer instante, conferindo a imprevisibilidade da vida real à vida virtual. Com a introdução do maravilhoso em sua narrativa, Saramago garante uma coexistência harmoniosa entre o insólito e o real, conseguindo que a passagem de um estado para o outro ocorra quase que imperceptivelmente.




Por sua vez, considerados os elementos maravilhosos na narrativa, o Memorial do Convento também apresenta uma tentativa de "revolucionar" o português contemporâneo, aproximando a linguagem coloquial de expressões seiscentistas. A esta tentativa chamaremos, em nosso trabalho, a elaboração de uma novo estilo lingüístico.




4. A elaboração de uma nova linguagem




A leitura primeira do Memorial nos insere em uma narrativa de ritmo caudaloso, cadenciado por frases longas, repletas de ditos populares e de expressões que concentram uma sabedoria que nos parece adquirida na experiência de vida cotidiana, a saber, "Pela casca não se conhece o fruto, se lhe não tivermos metido o dente"; "Se o pão fosse comido pelos que o semeiam, o mundo seria outro"; "Quando Deus fez os coelhos, foi para divertimento e panela dos senhores"; "Um homem precisa fazer sua provisão de sonhos"; "O mundo de cada um é os olhos que tem"; "Um homem, se tem filhos, também se alimenta de ver a cara deles", ou então "Tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas".




Causando a falsa impressão de discurso aparentemente desorganizado, suas frases, assim trabalhadas, produzem um efeito de circularidade, ou seja, iniciando-se com um registro de oralidade, próprio do português contemporâneo, incorpora, a seguir, vocábulos arcaicos e, no final, retoma o tom coloquial.




Essa frase circular vem, muitas vezes, recheada de arcaísmos, os quais, entendemos, pretendem revitalizar a língua, dotando-as de uma oralidade que lembra as antigas epopéias.




Outro aspecto relevante na escrita de Saramago é o (des)uso da pontuação normativa, ou seja, substituindo pela vírgula e ponto-final todos os outros sinais de pontuação, o autor consegue "destravar" o texto e permitir ao leitor uma maior participação na leitura à medida que este se vê, a todo momento, colocando travessões, pontos de interrogação e de exclamação, aspas e todo o mais que incorra a uma melhor intelecção do que está sendo lido.




Intercalando no relato digressões sobre o comportamento dos personagens, Saramago também comenta o próprio texto, utilizando-se de metalinguagem e humor:






Dizem que o reino anda mal governado, que nele está de menos a justiça, e não reparam que ela está como deve estar, com sua venda nos olhos, sua balança e sua espada, que mais queríamos nós, era o que faltava, sermos os tecelões da faixa, os aferidores dos pesos e os alfagemes do cutelo, constantemente remendando os buracos, restituindo as quebras, amolando os fios, e enfim perguntando ao justiçado se vai contente com a justiça que se lhe faz, ganhado ou perdido o pleito.(Saramago, 1999, p. 182)




Logo, é possível verificar no Memorial que o trabalho conferido à linguagem é utilizado não para alcançar simplesmente efeitos ornamentais, mas sim para comprometer o romance com a estética que o orienta.




Aliado a isso temos que, em meio aos fatos narrados, filtrados pela subjetividade do autor, subjetividade esta expressa através de uma linguagem poética, com forte carga metafórica, transcendental e universalizante, muitas das passagens, caracterizações, diálogos e digressões do Memorial nos remetem a excertos fartos de simbologia e segundos ditos, os quais nos condicionam, enquanto leitores, a um processo de decifração das palavras e informações que o autor nos quer delegar. A essas possibilidades de leitura do texto saramaguiano, consideramos aqui chamar de metafóricas e alegorizantes, as quais passamos a discutir a seguir.




5. Os excertos metafóricos e as possibilidades alegóricas




No Memorial do Convento, o narrador, valendo-se de sucessivas comparações e metáforas, invade, poeticamente, o pensamento, a voz e a mente tanto do leitor quanto das personagens. Misturando-se a estas personagens, antecipando ações, rememorando fatos passados, esse narrador consegue estimular a imaginação do leitor e provocar, até mesmo, a visualização das cenas descritas na narrativa:




... o mundo é ele uma nora e são os homens que, andando em cima dele, o puxam e fazem andar. Mesmo já cá não estando Sebastiana Maria de Jesus para ajudar com as suas revelações, é fácil ver que, faltando os homens, o mundo pára. (Saramago, 1999, p.65)




Partindo de uma metáfora generalizada e simbólica, " o mundo é uma nora", e valendo-se da personagem Sebastiana Maria de Jesus para exemplificar um dos "homens" que fazem girar esse mundo, Saramago entrelaça o real no ficcional, concluindo com um silogismo dialético. Neste silogismo dialético, enunciando uma verdade maior, mais abrangente, guardada nas entrelinhas, que envolve a trama, o leitor e o mundo, entendemos estar o autor efetuando uma leitura oblíqua da realidade.




Aliados a estes excertos metafóricos, determinados conteúdos semânticos significativos podem ser depreendidos se considerarmos as possibilidades alegóricas apresentadas pelos mesmos.




Fundamentando nosso conceito de alegoria segundo a definição que Walter Benjamin tem da mesma (Benjamin, 1984, p.184), "...a alegoria não é frívola técnica de ilustração por imagens, mas expressão, como a linguagem e como a escrita, elegemos, para tanto, alguns excertos que consideramos significativos para exemplificarem como o Memorial pode ser entendido como produto final das seqüências de metáforas que estes mesmos excertos encerram.




Partindo desse tipo de apreciação crítica, a alegoria, que encontramos vinculada ao Memorial, se nos apresentou como uma verdade maior, à qual convencionamos chamar de leitura oblíqua do mundo, podendo ser revelada no final da análise da ação narrativa do mesmo.




Como auxílio à leitura, interpretação e aplicação da teoria da alegoria benjaminiana, os estudos de Clifford (Clifford, 1974) acerca das transformações que a alegoria, enquanto expressão, pode sofrer no decurso das várias formas narrativas às quais ela é aplicada, assim como de Fletcher ( Fletcher, 1964), que a entende como um modo simbólico e de Whitman (Whitman, 1987) que, ainda que a considere uma técnica antiga e medieval, concorda com o seu caráter dinâmico e esclarece sua capacidade de personificação de abstrações, mostraram-se adequados para discutirmos as possibilidades alegóricas dos excertos metafóricos em estudo.




No entanto, ainda que não se trate de um estudo sobre o histórico da alegoria, é fundamental esclarecermos, desde o princípio, a origem etimológica do termo, assim como a diferenciação que a alegoria benjaminiana apresenta do conceito de símbolo defendido, entre outros, na filosofia realista empreendida por Lukács.




Etimologicamente, o termo alegoria origina-se do grego allos, que significa "outro" e agourein, que significa "falar". Logo, o termo alegoria significa " falar o outro".




Este "outro" de que fala a alegoria é o sentido. Um sentido não imediatamente compreensível, diverso do sentido literal. Sem o sentido do outro, a caracterização que se quer dar a algo permanece como um aglomerado de coisas separadas e desconexas.




Como exemplo disto podemos citar a alegoria da justiça, concretizada na imagem de uma mulher com os olhos vendados, uma espada em uma mão e uma balança na outra. Recorrendo aos significados universais que a venda, a espada e a balança adquirem no contexto, é possível compreender a mensagem universal que tal alegoria quer expressar. Caso contrário, a venda poderia ser interpretada como cegueira, a espada como guerra e a balança como comércio, enfim, como elementos separados e desconexos.




Portanto, a representação alegórica revela em si o caráter da arbitrariedade, ou seja, de seu poder de montar algo a partir de diversos fragmentos, cuja totalização não se faz a partir dos elementos dados, e sim por meio da referência a um universal, a um elemento transcendente que remete para fora daquilo que é apresentado. No exemplo citado, a idéia de justiça é o que confere sentido às partes venda, balança e espada apresentadas.




Trabalhando artisticamente com a arbitrariedade alegórica, o alegorista benjaminiano retira os objetos de sua localização histórica habitual e lhes confere, no novo contexto, um significado material diverso do originário. O objeto é extraído do seu contexto e esvaziado de sua significação habitual, morrendo para poder renascer.




Através da alegoria benjaminiana, a realidade é desmontada e reduzida a fragmentos e cada um destes fragmentos pode receber uma nova significação.




Essa disjunção entre o significado e o significante, ou seja, entre o conteúdo que se expressa e a forma como se apresenta, é característica do procedimento alegórico.




No século XX, o mundo, mostrando-se cada vez mais dilacerado pelo capitalismo, tornou difícil a visão de conjunto da realidade. O artista, por sua vez, sentiu necessidade de elaborar uma obra tão fragmentária quanto esse mundo para compreender a sua própria realidade. Neste contexto, a alegoria, por recusar a totalização e o fechamento de sentido, por permitir múltiplas significações, polissemias e ambigüidades, por jogar com montagens e remontagens do sentido, mostra-se como o procedimento ideal para se construir uma obra aberta.




Com isso o alegorista retoma temas e obras do passado, desloca-os para a sua realidade, explora ângulos até então desprezados e emite juízos de valor através de digressões oblíquas, procedendo à uma nova leitura de seu mundo.




Ao efetuar essa leitura oblíqua do mundo, o alegorista procede à leitura hermenêutica do mundo, à divulgação de um conhecimento aproximativo do real, que nunca esgota as verdades possíveis.




Walter Benjamin, ao proceder à leitura hermenêutica do drama barroco alemão, fala da morte para designar a vida, descreve a vida como caducidade para expressar a certeza da morte, descreve a miserabilidade do homem para louvar a grandeza de Deus. Com isso, decompõe o elemento humano a uma imagem diminuída e estilhaçada, mostrando que:






"Cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra. Essa possibilidade profere contra o mundo profano um veredicto devastador, mas justo: ele é visto como um mundo no qual o pormenor não tem importância." (Benjamin, 1984, p.196-7)




Com isso, Benjamin confina o homem a um plano inferior e dá às coisas o papel principal; intercambia os detalhes e pormenores, tendo como medida a arbitrariedade do artista.




Para a crítica, discutir a questão da alegoria e do símbolo é discutir o confronto entre duas formas de representação artística.




Se a alegoria encontrou em Walter Benjamin um de seus principais defensores, encontrou também em Lukács um de seus principais opositores.




Se a alegoria fala do "outro", o símbolo, do grego sym, significando "conjunto" e balleim, significando "colocar dentro", procede à junção entre o significado e o significante, integrando-os numa unidade harmoniosa, procurando expressar o significado imediatamente, de maneira definitiva e completa e sem a necessidade de um "outro" elemento representativo da idéia que se quer expressar.




O argumento que os adeptos do símbolo defendem é que na alegoria o significante não está unido ao significado, não está a seu serviço para expressá-lo de maneira definitiva e completa. Se retomarmos o exemplo da justiça, as partes justapostas só ganham sentido quando referidas à idéia abstrata. Já no símbolo, estes mesmos adeptos vêem, contrariamente, uma integração, uma imanência, uma fixação de sentido que se contrapõe diretamente à sucessão alegórica. Nele, o conceito de idéia abstrata não está separado em partes, o universal e o particular estão unidos em perfeita harmonia, formando uma unidade coesa, realizando-se de forma imediata, sensível e harmoniosa de construção de sentido.




Pelas razões acima apresentadas, considerando a visão da alegoria benjaminiana e do símbolo lukácsiano, temos, objetivamente, que a alegoria exprime o particular no universal, enquanto que o símbolo exprime o universal no particular e que é nestes termos que reside a oposição de um ao outro.




Com isso, alegoria e símbolo permanecem na história da arte como duas maneiras contrapostas de expressão.




No Memorial, Saramago trabalha com metáforas continuadas e, assim sendo, ordena os elementos narrativos a uma figuração seqüencial, a uma representação que nunca se fecha, nunca se totaliza e que trabalha com fragmentos de uma estilhaçada realidade barroca. Nestas circunstâncias, uma vez serial, pluralista, polissêmico e aberto, dizendo uma coisa para exprimir outra, o procedimento alegórico utilizado por Saramago na construção do Memorial faz desta obra, ao nosso ver, um enigma aberto a infinitas significações. Retira os objetos de sua localização histórica habitual, no caso, o presente do leitor e lhes confere, no novo contexto, o Barroco, um significado material diverso do originário. O objeto é extraído do seu contexto e esvaziado de sua significação habitual, morrendo para poder renascer. E renasce para uma leitura crítica e oblíqua da realidade autoral.




6. Conclução




Ler o Memorial, as digressões do autor e as inquietações de suas personagens é, muitas vezes, ler os dias atuais e as nossas inquietações.




Logo, Saramago vale-se do outro, o Barroco, para dizer o este, ou seja, o presente.




Através de um texto plurissignificativo, com traços construtivos de procedimento alegórico benjaminiano, a realidade, no Memorial, é desmontada e reduzida a fragmentos e cada um destes fragmentos pode receber uma nova significação.




Esta disjunção entre o significado e o significante, entre o conteúdo que se expressa e a forma como se apresenta, é característica do procedimento alegórico. Para Benjamin, este procedimento poder ser entendido, e para Saramago ele pode ser utilizado, como expressão semelhante à linguagem e à escrita.




Em virtude desse procedimento é possível entender o Memorial como uma multifacetada representação do que é opressão e do que é busca da liberdade. Uma liberdade material e espiritual que se encontra idealizada em todas as épocas e que, em particular, no Memorial, permeia a vida de um corpus que, tipologicamente escolhido, representa toda uma sociedade, toda uma época.




Com o encontro de Baltasar e Blimunda o autor finaliza a narração. Porém, é então que, no íntimo do leitor, a história começa.







Referências Bibliográficas




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BENJAMIN, Walter, (1963). Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense.




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