sábado, 6 de outubro de 2007

UM INÉDITO DE CUNHAL





* José Pacheco Pereira -
Publicado na revista Sábado, Junho 2004
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Depois de ser preso em 1949, Cunhal foi sujeito não apenas a um único processo, mas a vários. O mais conhecido foi aquele que foi julgado em Maio de 1950, e que diz respeito à sua actividade como comunista, pela qual foi condenado. Foi nesse processo que Cunhal proferiu uma célebre defesa de várias horas, e que representa a sua mais completa análise do comunismo e do PCP face ao início da guerra-fria. Mas Cunhal esteve envolvido em vários outros processos quer como acusado, quer como acusador (Cunhal acusou um PIDE de ter roubado uma quantia de dinheiro que se encontrava escondida no forro de um casaco de Sofia Ferreira, também presa na mesma casa.). Um processo contra Cunhal arrastou-se de 1950 até fins de 1955, devido ao facto de este se ter recusado a responder à pergunta sobre se alguma vez tinha estado preso ou respondera em tribunal. A ausência de resposta a esta pergunta constituía crime, pelo que Cunhal foi acusado e só não foi condenado porque entretanto o processo prescrevera.
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A pergunta e as circunstâncias em que foi feita eram tudo menos inocente. Cunhal alegava que a pergunta lhe fora feita por um subalterno da PIDE e não pelo subdirector, e que só fora feita depois de ter declarado que “não tinha quaisquer declarações a fazer à polícia”. Na carta inédita que a seguir se publica, Cunhal utiliza este pretexto processual, para fazer considerações sobre a justiça, e sobre o comportamento dos comunistas face à polícia, uma matéria central não só do seu pensamento político, mas também do seu ethos pessoal. Cunhal escreve esta carta na Penitenciária em 19 de Junho de 1950, e fá-lo na convicção que a PIDE não autorizará a sua presença em tribunal, como desejava. A PIDE opôs-se à sua presença, percebendo que Cunhal se preparava mais uma vez para utilizar a defesa como instrumento de agitação política, e a experiência do julgamento de Maio, mostrava a capacidade que Cunhal tinha para usar as suas intervenções como armas tribunícias para a sua causa.
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A carta revela as qualidades de Cunhal como dirigente político revolucionário, que ajuda a explicar o antigo e actual fenómeno de culto de personalidade, que não se ficou pelo século XX e que se estende, embora de forma diferente, no século XXI. No século passado, a sua persona política era indissociável do seu papel na acção política, na luta contra a ditadura, antes do 25 de Abril como resistente, no PREC como comunista. Cunhal era admirado na divisão das águas, logo era odiado também. Hoje essa divisão perdeu sentido, porque se perdeu um lado, os comunistas já não são o que eram, tornaram-se outra coisa depois do fim da URSS. E é de facto o valor simbólico, ou icónico que prevalece. A carta é por isso lida como sendo essencialmente um retrato moral, em tempos de pouca moral. O conteúdo político desvaneceu-se na sua explicitude, ficou o comportamento. Os milhares e milhares de pessoas que saíram à rua por Cunhal vêm pelo símbolo, não pela revolução, e muito menos pelo comunismo.
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Senhores juízes:
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(…)1º - Sou acusado de “ na Subdirectoria da PIDE do Porto, ao ser submetido a perguntas pelo respectivo Sub-director, me ter recusado a responder á pergunta se alguma vez estivera preso, quando e porquê e se já alguma vez respondera em algum tribunal”. Isto não é exacto. Essa pergunta foi-me feita, não pelo referido subdirector mas por um funcionário subalterno da mesma Policia. – devo esclarecer que, se essa pergunta tivesse sido feita pelo referido subdirector ter-me-ia igualmente recusado a responder. Mas não foi. Os preceitos legais invocados não são pois de aplicar e o envio deste processo ao tribunal é assim um pequeno exemplo de abusos, e ilegalidades e atropelos cometidos pelas entidades instrutoras dos processos políticos...
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2º - Não foi essa a única pergunta a que me recusei a responder. Não respondi a essa nem a qualquer outra, directa ou indirectamente relacionada com a minha actividade política. – Repetidas vezes sublinhei que o faria porque “como membro do partido comunista português, não tinha quaisquer declarações a fazer à polícia”. – Por insistência minha, esta declaração foi reduzida a auto. O auto de perguntas em que figura esta declaração foi o único que assinei e o único autêntico.
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3º - No meu caso (como na generalidade dos casos políticos) a pergunta em questão não tinha qualquer valor para a entidade instrutora e, se foi feita, foi depois de eu ter afirmado repetidas vezes que me recusava a responder a qualquer pergunta e com o único objectivo de tentar “quebrar” essa minha atitude ao instaurar um novo processo. – Mantive a mesma atitude e recusei-me a responder a essa pergunta como ás outras. Instaurou-se então este processo. – Qual a finalidade deste processo? Ele é apenas uma forma de intimidação (bem débil é certo) contra os que, ante a polícia se recusam a prestar declarações. Creio que o resultado será contrário ao desejado pelos acusadores. Quanto a mim, julgo necessário que o tribunal saiba que me orgulha ser novamente julgado pelo único facto de ter sabido tomar ante a policia uma atitude intransigente de defesa do meu Partido, dos meus camaradas, dos meus ideais.
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4º - Nas “notas” e “artigos” que a PIDE fez publicar nos jornais depois da minha prisão, é dito (entre abundantes inexactidões, mentiras e calúnias) que o mutismo dos comunistas presos (e por consequência o meu próprio mutismo) resulta da “rigorosa disciplina do partido” e de “receio das sanções”.- Diz, por exemplo a “nota” da PIDE publicada em 15 de Abril de 1949: “Mais que o terror da Policia, influi neles a aplicação de sanções contra os que, uma vez presos, façam declarações que possam comprometer os companheiros”.- Neste ponto, a PIDE falou quase verdade. Um comunista que se encontra preso prefere a tortura ou a morte a fazer quaisquer declarações prejudiciais ao seu Partido. Muitos comunistas têm sido torturados, muitos têm morrido na incomunicabilidade, por se negarem a prestar declarações.
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- Aqueles que o fazem, fazem-no por entenderem ser esse o seu dever; porque defendem com honradez a sua causa; porque querem conservar um nome honrado e a confiança do Partido e do povo; porque o terror da policia “ (como diz a “nota” da PIDE) não vence o seu animo e a sua firmeza de bons cidadãos e bons patriotas Há de facto, uma disciplina no Partido Comunista Português. E aqueles que fraquejam perante o inimigo sofrem sanções como resultado. Que sanções? A critica, a censura pública, a limitação de responsabilidade ou expulsão Essa disciplina educa os membros do Partido na fidelidade aos seus princípios e auxilia o desenvolvimento das suas capacidades morais, da ideia, da responsabilidade, da confiança nas próprias forças íntimas, da altivez e coragem perante os adversários. Os que mais atacam são os que mais a invejam.
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5º- Uma condenação neste processo significaria, não só uma abusiva aplicação da lei (dado que se não verificou o facto que serve de base a acusação), como ainda e fundamentalmente que a justiça se decidiria a castigar a honradez e a premiar a cobardia. Mal do regime que as coloque dentro de tal quadro de valores morais. E mal da justiça que os adopte.
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Álvaro Cunhal
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Publicado por José Pacheco Pereira in Estudos sobra o Comunismo junho 25, 2005
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Gravura de António Domingues

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