N.º 2061
30.Maio.2013
- Domingos Lobo
A propósito de Agora e na Hora da Sua Morte,
de Luís Filipe Costa
Singularidades do policial português
Não sou dos que consideram o romance policial, ou o de aventuras, ou de ficção científica (sendo este último, atavio nitidamente exagerado para designar o género) uma literatura menor, como advoga Umberto Eco. Os autores que cultivaram o policial, desde sir Conan Doyle, deixaram um lastro de argúcia e observação dos comportamentos humanos que a chamada grande literatura nem sempre conseguiu. O Homem que Via Passar os Comboios, de Simenon, é ainda hoje considerado um dos grandes romances psicológicos do século XX e o seuMaigret uma das grandes personagens que a literatura foi capaz, enquanto definidora de retratos humanos, como dizia Zola, de inventar. O mesmo para o Poirot, de Agatha Christie.
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Quanto aos portugueses, que começam a seduzir-se pelo género em meados do século XIX arrastados pelos alvores de uma subliteratura popular, de folhetim e de cordel, a novela negra de aventuras, como então se designava, levou o nosso Camilo (também ele sempre apertado por impostos e, pior que isso, com a Justiça a atenazar-lhe o ferrolho) a iniciar-se no género ou, pelo menos, a integrar nos seus romances alguns dos seus códigos: Anátema, de 1881, Mistérios de Lisboa, de 1865, e O Livro Negro do Padre Dinis, de 1855.
Esta mesma atracção – se bem que aqui não seriam as urgências de escreviver que levaram os seus autores, em despique de génios, a enveredar pelo thriller – convocaria Eça de Queirós e Ramalho Ortigão para a escrita de O Mistério da Estrada de Sintra, um dos mais soberbos livros de género, a cujo policial se entrecruzaria, em substantivo linimento, o fantástico; policial entendido como um jogo perverso, só possível pela capacidade inventiva dos autores em presença.
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Autores de prestígio, e vindos até de outras áreas da estética e do pensamento literário, não desdenharam experimentar o policial: Fernando Namora, com esse magnífico romance que éO Rio Triste, que David Mourão-Ferreira considerou o mais acabado e formalmente conseguido romance de género; Roussado Pinto (o Ross Pin), Orlando Neves e Diniz Machado, este último com policiais herdados do cinema negro americano e de autores como Hammett e Raymond Chandler; Maria Estela Guedes e, já nos anos 1980, o romance Adeus, Princesa, de Clara Pinto Correia. Os finais dos anos 1970 trouxeram-nos ainda um romance notável, que podemos, sem esforço, incluir no género: Square Tolstoi, de Nuno Bragança. Mas o grande período criador do policial tuga inicia-se nos anos 80. Nessa década aparecem livros de grande ousadia formal, alguns dos quais ainda hoje podemos considerar dos mais interessantes e lidos – e não só, posto que o cinema igualmente os transformou numa outra linguagem quiçá mais acessível ao grande público:Crónica dos Bons Malandros, de Mário Zambujal e Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires. Igualmente, a novelaCinco Dias, Cinco Noites, de Manuel Tiago/Álvaro Cunhal, não se afasta dos códigos presentes em muitos textos do género.
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Mas o policial estruturado e autónomo, eivado da influência anglo-saxónica (mas fortemente inspirado em Boris Vian, no humor, no cinismo, no contínuo tropeçar no non sense), começa com a colecção Caminho Policial, pela qual passam autores como Justino Pamplona, Luis Rodrigues, Henrique Nicolau, Ana Teresa Pereira e Artur Cortez (este um pseudónimo de Modesto Navarro, que o autor revelaria, já com nome próprio, no romanceO Deputado). Francisco José Viegas, próximo do universo formal do catalão Montalban, venceu, com um policial, Longe de Manaus, um grande prémio da APE o mesmo acontecendo a uma das escritoras mais inovadoras da nossa actual ficção: Ana Teresa Pereira. No universo do policial desbragado e pícaro, que torna o género singular entre nós, devemos incluir Miguel Barbosa e o seu Rusty Brow, José Prata, com um livro pleno de inventiva e de humor desarmante, Os Coxos Dançam Sozinhos, e esse criativo de língua e de ambientes, de imaginação desabrida e delirante, torrencial na subversão do género: Que Puta de Vida, de Luís Lopes, livro a vários títulos brilhante, dos mais originais e soberbos romances policiais portugueses publicados nas últimas décadas.
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A estes devo acrescentar um livro raro, raro pela argúcia, pela sensibilidade, pela destreza descritiva, pela inventiva abordagem do real, pelo novo e enxuto da linguagem, pela reinvenção vocabular e metafórica – Agora e Na Hora da Sua Morte, de Luís Filipe Costa. Publicado em 1988, pela Caminho, só em 2008 conheceria uma 2ª. edição. Vinte anos volvidos, a sedução e frescura permanecem e, sabemo-lo hoje, o policialindígena raramente alcançou este patamar de causticidade, de humor, do rumor manso e nostálgico que este livro, subrepticiamente, transporta. O crimezinho, o tal que dá tom, substância à coisa, apanha-nos logo na primeira página, com facadas, sangue e polícias como mandam as normas. Mas o autor envia as normas para o recreio e deixa-nos pendurados uma caterva de páginas e esse tempo, o tempo literário que se divide em três dias – sexta, sábado, domingo – é gasto a percorrer a Lisboa nocturna dos finais dos anos 1980; a trazer-nos retratos deslassados, cruéis, memórias, desencantos, restos de um tempo de júbilo e retraimento, as rugas dessa esquerda festiva (ou caviar?) que o autor já cronicara brilhantemente no livro Uma Borboleta na Gaiola. Tempo perdido? Antes pelo contrário: a escrita de Luís Filipe Costa percorre esse esquivo corpo, os lanhos de uma revolução a derruir, do regresso lento à apagada e vil tristeza que parece tolher-nos num fadário de concêntricos ciclos. E tudo isto contado como quem respira ou bebe um uísque de cambalacho num bar de alterne; como um guião de cinema que apenas apontasse ao realizador a essência, sem a gravidade de quem tem na máquina de escrever a redenção de todas as malfeitorias que nos lixam a vida. Deixar sinais desses «amigos de Alex» que o tempo, a vidinha, a cidade já tragaram e andar, partir para outra, que há tanta urgência em dizer o real que nos morde às canelas, que outro real mais avassalador, como as ondas, nos assalta de emboscada: a memória é feita de farrapos esparsos no vento e o futuro é agora.
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Perdemos apenas uma revolução ou envelhecemos? Deixámos de ser ingénuos e saímos das paixões mais sós e derrotados, a preparar nos outros o nosso próprio suicídio? Amargo, este livro? Nem tanto: a doer-nos, dado que neste humor cáustico, nestes retratos da tribo urbana que sonhou, nas mesas doVává, do Suprema, do Monte Carlo, salvar o mundo e desse desígnio perdeu o rumo, as ilusões e o futuro, nos reconhecemos um pouco – sem amargura nem êxtase.
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E, no entanto, saímos deste livro acreditando com muita convicção que ainda podemos, devemos ousar e, como nos idos de 1960, exigir realisticamente o impossível.