"Um Espião Perfeito", de John Le Carré,
na Colecção Mil Folhas
Numa obra tão abundante e tão boa como a do escritor britânico John Le Carré será difícil dizer que o livro "Um Espião Perfeito" é a sua mais brilhante pérola. A legião dos que acham que sim é imensa mas qualquer outra legião de adeptos de outros livros de Le Carré não será menor. No entanto, "Um Espião Perfeito" é, sem dúvida, a mais imortal obra do autor e a de maior densidade literária, que o fez conquistar um lugar na galeria dos grandes escritores do século XX.
Publicado em 1986, "Um Espião Perfeito" é o livro em que John Le Carré mais apostou enquanto escritor e em que mais se expôs enquanto pessoa no terrível ajuste de contas com a sua história familiar e a vida de espião que abraçou muito cedo, ainda estudante em Oxford, onde, tal como outros notáveis agentes secretos da sua geração, denunciou as simpatias comunistas de muitos dos seus amigos.
Atravessado por uma incursão autobiográfica do autor, o livro tem essa perturbadora marca da história pessoal de Le Carré, que transforma "Um Espião Perfeito" numa viagem pelos caminhos da traição. A traição dos amigos, da família, das causas. A dupla traição do Ocidente e do Leste remete para uma leitura política do livro, mas esta perde força face à magnitude da riqueza humana e psicológica das personagens construídas por Le Carré. Este é, afinal, mais um livro sobre a complexidade inextricável da raça humana do que um romance, porventura "o romance", da Guerra Fria.
David Cornwell, verdadeiro nome de John Le Carré, só em 1993 admitiu publicamente que quase toda a vida trabalhara para os serviços secretos britânicos. Começa aí a conhecer-se uma biografia profissional e pessoal do autor, que se cruza inteiramente em "Um Espião Perfeito" com a vida de Magnus Pym, o agente secreto sem causa que sobretudo tem uma paixão irresístivel pelo género humano, o que o leva invariavelmente a esbarrar na impossibilidade de juntar, em qualquer circunstância da vida, o melhor de dois mundos.
A sua infância foi muito difícil e atravessada por um conflito interior profundíssimo contra o seu pai, um adorável vigarista que conheceu prisões, hóteis de cinco estrelas, casinos e mulheres por esse mundo fora. Gastava hoje o que julgava vir a ganhar amanhã. Rick Pym é a personagem de "Um Espião Perfeito" que caminha sobre a vida de Ronnie Cornwell, o pai de John Le Carré, e nunca sai de uma interminável conversa com Magnus Pym, a principal personagem do livro que nos vai dando a chave de todas as evasões possíveis.
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“O escritor observa, escuta, regista. Depois, conta uma história, juntando a imaginação à experiência. E esta leva, inevitavelmente, as cicatrizes da alma.”http://static.publico.pt/docs/cmf3/escritores/85-JohnLeCarre/texto.htm |
Opinião
Berna, Londres, Viena, Berlim… um retrato poderoso da Guerra Fria. Espiões, agentes secretos, profissionais do disfarce e do embuste, homens sem identidade, perdida entre mil e uma imagens construídas para mentir à procura da verdade.
Pym é o agente perfeito – vendido aos dois lados – que procura durante toda a vida encontrar-se consigo mesmo e redimir a traição à amizade por Axel – o amigo/inimigo.
Por outro lado há o pai – memórias de um progenitor criminoso mas herói. Daqui resulta uma narrativa quase psicanalítica, marcada pelas recordações do passado e escrita, disfarçadamente, na primeira pessoa do singular.
O enredo revela toda a arte de Le Carré, capaz de manter aquele tom enigmático que prende o leitor ao longo de 575 enormes e recheadas páginas. Um livro longo, a espaços cansativo mas nunca maçador.
No final, fica a ideia de um homem sem identidade, perdidos nos disfarces e numa eterna procura que, nos últimos tempos, tenta redimir todo o passado que o tortura.
Na vida de Pym, fidelidade e traição são conceitos ambíguos que vivem lado a lado e se misturam permanentemente. De entre todos os sentimentos conflituosos, emerge em Pym um único que conquista a primazia: a amizade, o valor supremo. Uma amizade que nasce da traição – a única realidade capaz de gerar felicidade.
“A traição é uma profissão repetitiva” (Pág. 564)
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