Entrevista:
John Le Carré
"A humanidade não avança"
O mais famoso autor de livros de espionagem
diz que o Ocidente derrotou o comunismo, mas
agora precisa aprender a domar o capitalismo
Carlos Graieb, de Londres
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No começo dos anos 60, o inglês David Cornwell levava uma vida tripla. Oficialmente, trabalhava como diplomata na Alemanha. Clandestinamente, executava serviços de espionagem contra os comunistas. E, sob o pseudônimo John Le Carré, lançava-se numa carreira literária que logo ganharia força. Com romances como O Espião que Saiu do Frio (1963), o autor conquistou algo raro: um best-seller que a crítica também respeita. A queda do Muro de Berlim, em 1989, fez especular se Le Carré perderia o seu tema – o mundo dos agentes secretos. Mas ele continuou a produzir livros eletrizantes e inteligentes. O mais recente deles éAmigos Absolutos (Record; 415 páginas; 40,90 reais), que transita entre a Alemanha do fim dos anos 60, no auge da Guerra Fria, e o presente dos ataques terroristas. O romance anterior é O Jardineiro Fiel, que se passa no Quênia e contém uma dura invectiva contra as indústrias farmacêuticas. Ele acaba de ser transposto para o cinema pelo diretor brasileiro Fernando Meirelles, de Cidade de Deus – uma adaptação para a qual Le Carré só reserva elogios. Aos 73 anos, o romancista recebeu VEJA em sua casa em Londres para a seguinte entrevista.
Veja – Quando a Guerra Fria terminou, disseram que os autores de livros de espionagem haviam perdido o seu tema. O senhor chegou a sentir isso?
Le Carré – Não, jamais. Cada vez que me diziam que não havia mais motivo para espionagem depois da queda do Muro de Berlim, eu pensava comigo mesmo: "Esperem só até divulgarem o novo orçamento da CIA. Aposto que terá crescido 35%". A idéia era muito simplista, e a indústria da espionagem, grande demais para morrer assim, de uma hora para outra. Isso posto, antes mesmo de tudo acontecer eu já estava tentando deixar a Guerra Fria e seu mundo de espiões para trás em minha obra. Principalmente na última década, creio que o motor principal de meu trabalho tem sido o fascínio por situações coloniais e pós-coloniais. São os fantasmas do passado que me atraem, e a maneira como criam novas catástrofes, seja no Panamá, uma antiga possessão americana, seja na Chechênia, uma antiga colônia soviética. A história do presente é, em boa parte, a história de como a herança colonial está vindo nos assombrar. Você não consegue entender o Iraque sem atentar para a presença britânica naquela região, como os cartógrafos colonialistas traçaram algumas linhas num mapa e assim criaram o país que mais tarde seria governado por Saddam Hussein. Um dos motivos por que há tanta incompreensão sobre a política atual é a falta de consciência histórica.
Veja – O senhor não escreveu apenas best-sellers sobre espionagem. Foi espião na juventude, durante a Guerra Fria. Por que realizou esse tipo de trabalho?
Le Carré – Essa é uma história que tem a ver com o tempo em que nasci, com a forma como fui educado, com o meu país. Meu pai era, digamos assim, um empreendedor muito peculiar. Ele foi parar na cadeia várias vezes. Mas estava determinado a fazer de mim uma pessoa respeitável. E para ser respeitável na Inglaterra você tem de freqüentar certas escolas privadas, você tem de aprender a linguagem, os modos, os padrões de comportamento da elite. Quando você cresce nesse ambiente, ou submerge nele de vez ou passa a vida tentando se reinventar, livrar-se das doutrinas que lhe foram incutidas. Pertenço à segunda espécie de homem. Ingressar no serviço secreto foi minha primeira tentativa de reinvenção. Espionei enquanto ocupava cargos diplomáticos. Comecei em postos baixos, depois fui secretário político na embaixada britânica em Bonn e conselheiro político em Hamburgo. Isso durou dos 17 aos 31 anos. Mas o processo de reinvenção continuou ao longo da vida. Hoje, aos 73, sinto-me intelectualmente livre. Finalmente saí do colégio.
Veja – Para um antigo espião ocidental, o senhor se tornou um crítico bastante acerbo do capitalismo. "Agora que derrotamos o comunismo, talvez tenhamos de combater o capitalismo", diz um personagem no final do livro O Peregrino Secreto, de 1991. O que o levou a essa posição?
Le Carré – Eu não renego a política dos tempos de Guerra Fria. Eu conheço pessoas que atuavam do outro lado, talvez seja amigo de algumas delas. Mikhail Lubimov, por exemplo, um antigo oficial da KGB, visitou minha casa várias vezes. Tive longas conversas com ele, e elas reforçaram minha convicção de que não jogávamos o mesmo jogo. Nós, deste lado, protegíamos algo que merecia ser protegido: uma sociedade aberta, apesar de todas as falhas. Eles operavam em nome de uma sociedade fechada. Muitas vezes disse a Lubimov que os agentes da KGB estavam mais perto da verdade sobre o Ocidente do que qualquer outra pessoa de seu mundo. Eles viviam entre nós, tinham informantes entre nós, sabiam que estavam tratando com uma sociedade aberta e relativamente decente. No entanto, guardaram essa informação como um segredo. Eles se tornaram culpados na posse do conhecimento. A queda do comunismo foi um acontecimento magnífico, uma dádiva. Isso posto, sinto-me bastante nauseado com o sabor atual do mundo – com o poder indecente das grandes corporações e a maneira como isso afeta as democracias. Tenho a terrível sensação de que a verdadeira vitória foi roubada de nós. A humanidade não avança.
Veja – O que deu errado?
Le Carré – Quando o conflito entre o mundo capitalista e o mundo comunista acabou, estivemos diante de um daqueles raros momentos em que a história poderia ter sido inteiramente reescrita. Só que não tínhamos nenhum plano de contingência para a paz. Tínhamos vários planos de guerra e nenhum projeto de reconstrução. Jovens americanos não foram enviados à antiga União Soviética para encontrar as pessoas que antes pretendiam matar, e vice-versa. Não houve esforço para fomentar entendimento. E, nesse vácuo, duas coisas aconteceram. Primeiro, vimos surgir a cultura da cobiça terminal. Creio que foi meu país que deu essa inestimável contribuição ao mundo. A parteira foi Margaret Thatcher, com seu enorme empenho político em desvalorizar a idéia de solidariedade social. Thatcher deixou um legado de total indiferença pelos problemas que afligem o mundo. Ela disse que privatizaria o ar se pudesse, e na cultura em que vivemos esse é um pensamento aceitável. A segunda coisa que aconteceu foi o início da busca por um novo inimigo. Podíamos sentir as lideranças à procura de um novo demônio, e elas finalmente conseguiram criá-lo. Elas criaram o demônio terrorista. A luta contra ele? Acho que o bombardeamento do Afeganistão foi um crime insuficientemente denunciado e a invasão do Iraque, injustificável tal como foi feita.
Veja – O primeiro-ministro britânico, Tony Blair, usou documentos do serviço secreto sobre a existência de armas químicas no Iraque para justificar a adesão do Reino Unido à guerra. Mas as armas não foram encontradas. O que achou desse episódio?
Le Carré – Quando ficou claro que os Estados Unidos iam invadir o Iraque, em 2003, Blair prometeu que os seguiríamos, com ou sem as Nações Unidas, com ou sem a Europa. Houve então uma situação de pânico, uma pressão tremenda para que nosso serviço de inteligência apresentasse algo que o ajudasse. E eles tinham muito pouca informação com que lidar, já que Saddam Hussein periodicamente eliminava quadros inteiros de assessores, entre os quais muitas pessoas que provavelmente prestavam informações a nós. Finalmente, Blair revelou que o relatório sobre armas químicas de que dispunha se baseava numa fonte só. O que é ridículo. Ao menos no meu tempo, não seria possível para um relatório tão canhestro passar por todos os filtros internos do serviço e finalmente ser usado por uma autoridade do nível hierárquico de Blair. Do ponto de vista de alguém que trabalhou no serviço secreto, essa história é inimaginável.
Veja – Qual foi a contribuição da espionagem no quadro da Guerra Fria?
Le Carré – Nós demos nossa contribuição colhendo informações, ajudando pessoas, impedindo isto ou aquilo. Mas não acho que se deva exagerar esse papel. Não foram os espiões que venceram a guerra, tampouco os soldados. Foi a sanidade que, aos poucos, se infiltrou naquela sociedade fechada que era a União Soviética. Foi a erosão econômica do regime. Como disse alguém, "o cavaleiro morria dentro de sua armadura".
Veja – Como se conquista uma fonte no serviço secreto?Le Carré – O charme da espionagem – e aquilo que, a meu ver, a torna atraente para a literatura – é que todas as possibilidades de nosso caráter humano ficam expostas em suas tramas. As pessoas lhe servirão de fonte pelos motivos mais diversos: porque se sentem sozinhas, porque não gostam do chefe, porque vão com a sua cara, porque você as diverte, porque lhes paga uma bebida ou é simpático com sua mulher. Espionagem tem a ver com sedução, com confiança, com manter promessas. É uma atividade demasiado humana. Quando se fala de serviços de espionagem, as pessoas tendem a se transportar para um mundo estranho. Uma névoa desce sobre os olhos delas. Na verdade, estamos falando da busca de informação em meio ao comportamento humano mais comezinho. É muito próximo do jornalismo. O maravilhoso das histórias de espionagem está nessa riqueza de experiências que elas permitem mostrar – esse mundo de motivações e desejos que se tenta compreender e às vezes manipular. Também gosto do fato de que elas lhe permitem falar de temas políticos, do grande palco do mundo, sem soar pretensioso. Enquanto a história corre, os leitores o perdoam.
Veja – Relações pai e filho são muito importantes em seus livros. Por quê?
Le Carré – Meu pai forjou a própria vida com um talento extraordinário – só que para o desastre, e não para o sucesso. Ele era basicamente um vigarista. Suas aventuras eram tão extraordinárias, tão irreais, que numa certa altura da vida passei a duvidar de minhas próprias memórias a respeito dele e fiquei obcecado pelo personagem. Cheguei a contratar dois detetives particulares para investigar sua vida e eu mesmo fiz um monte de pesquisas. Ele era um tipo extravagante, um completo fantasista, que num dia se candidatava ao Parlamento e no dia seguinte ia preso por fraudes. Certa vez, tive de tirá-lo da cadeia em Jacarta. Às vezes ele ganhava 1 milhão – e logo descobríamos que tinha outros 2 em débito. Ele morreu aos 69 anos com uma mulher no interior, duas amantes em Londres e uma casa cheia de empregados que não viam o salário havia tempos. Suponho que isso explique meu interesse pelo tema. De fato, há muitas histórias sobre pais e filhos em meus romances. Um deles, Um Espião Perfeito, é francamente autobiográfico e contém um retrato de meu pai no personagem Rick Pyn.
Veja – Os ingleses parecem ter uma obsessão por seu sistema escolar. Ela está muito presente na literatura, dos romances de Harry Potter aos seus thrillers de espionagem, quando é preciso descrever a origem de um personagem. Por que isso?
Le Carré – Colégios são importantes na formação de qualquer um, em qualquer lugar do mundo. Mas as escolas privadas e sobretudo os internatos da Inglaterra, com seus uniformes, seus brasões, e suas longas histórias, são realmente instituições muito peculiares. Nelas, categorizamos desde cedo nossos jovens. Eu fui professor durante um tempo. Ensinei alemão em Eton, um dos colégios mais tradicionais. Lá encontrei classes para os ultra-ricos, para os garotos promissores, para os criminosos em potencial, para os indomáveis. Todos já estavam em seus nichos. Além disso, ser despejado num internato inglês já é uma experiência e tanto. "Aqui estou eu. Meus pais me mandaram embora", pensa o garoto de, digamos, 5 anos. Foi nessa idade que eu mesmo caí numa dessas versões polidas de uma penitenciária. E então você se torna imediatamente seduzível e cooptável pelo poder daqueles que estão à sua volta e parecem capazes de lhe dar abrigo. Várias escolhas têm de ser feitas. Você não pode ser estúpido, nem esperto demais. Você tem de se acomodar ao padrão. Você precisa conviver com sistemas totalmente ilógicos de disciplina. Você pode apanhar muito – e carregar desde então uma grande indignação e uma grande raiva. Você precisa criar sistemas próprios de justiça. Os colégios são, enfim, instrumentos muito poderosos de socialização na Inglaterra – e também o palco de enormes dramas e batalhas.
Veja – Como o processo de adaptação de O Jardineiro Fiel foi parar nas mãos do cineasta brasileiro Fernando Meirelles?
Le Carré – O projeto começou há quatro anos e, inicialmente, faríamos um filme no estilo americano. O diretor Mike Newell, deQuatro Casamentos e Um Funeral, estaria à frente dele. Mas Newell saltou do barco para filmar um dos episódios da sérieHarry Potter e, nesse ponto, entrou Fernando Meirelles. Ele deu ao filme o espírito que eu desejava. A história se passa no Quênia e fala de uma grande indústria farmacêutica que usa africanos como cobaias para testar remédios. Em Fernando, encontrei um diretor que entendia a questão da complexidade racial e que sabia falar da tragédia que é a destruição de vidas humanas, pois a mostrou de maneira admirável em Cidade de Deus. Além disso, ele tinha uma percepção não européia do livro, o que me pareceu excelente. Com ele, eu sabia que não teríamos somente um thriller e uma história de amor, mas também um olhar político sobre a ação das grandes corporações no mundo. Creio que Fernando está se tornando, rapidamente, um grande nome do cinema internacional. Deverá ser muito assediado por Hollywood, esse grande cemitério de talentos inocentes, mas sinto que tem o fogo e a inteligência para seguir um caminho próprio.
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