* Eugénia Cunhal
Oh , capitão
Por vezes, amanhecemos diferentes. Os olhos, ainda toldados pelo sono, já brilham por detrás das pálpebras. Um brilho que se não vê, mas que sente quem põe uma qualquer esperança, numa qualquer coisa, num qualquer dia. Luminoso, que se aproxima.
Assim aconteceu com ela. O filho prometera-lhe levar-lhe o neto para passar um pedaço da tarde consigo. O neto que com ela vivera, na mesma casa, os primeiros dias e meses de vida. Uma infância que ia até ao fim do segundo ano de escola, como agora se diz.
A vida dos pais levara-o para uma outra casa. Num bairro longínquo, em que, mesmo numa cidade pequena como esta, toma difíceis as deslocações.
Mãe, amanhã levo-lhe o João para passar um bocado da tarde consigo.
Para matar saudades, que acabavam sempre por doer mais, ia muitas vezes ao quarto que fora do neto. Os olhos contemplavam, embevecidos, uma dezena de autocolantes, na maioria, representando animais, que ele fora colando na porta do armário da roupa. Primeiro, na zona debaixo, depois subindo, como tamanho dos anos que ia tendo.
As mãos, numa carícia lenta, acompanhavam o movimento dos olhos. E no rosto pincelava-se um leve e magoado sorriso de saudade, recordando os dias em que ali brincavam. Vó, vamos brincar. Com que gosto os brinquedos que se amontoavam pelo chão ficavam ignorados. Inúteis.
Vamos imaginar que ... E vinham os barcos de que as mãos comandavam as velas. E as espadas sempre ao serviço dos mais fracos. E os chefes índios que os saudavam como verdadeiros amigos. Acompanhava, orgulhosa, as expressões que se iam espelhando no rosto do menino. Assim é que é, capitão ...
Quando a campainha da porta da rua tocou, foi esperá-lo à escada. Vi-o subir, olhar para cima e dizer: Olá, avó. Estava mais alto. E mais bonito, ainda.
Vamos para o meu quarto, queres? Poderia tê-lo encaminhado para outra divisão. Quase inconscientemente, escolhera o quarto onde, poucos dias antes da mudança dos pais ali tivera começado a ler-lhe " O Principezinho". Esperando talvez, que ele lhe pedisse para acabar a história.
Queres ver o que trago aqui? Foi o pai que me comprou. E abriu uma revista, de páginas cheias de carros, que expunham, orgulhosamente, o luxo das linhas e a excessiva comodidade do interior.
De qual gostas mais? Gosto de carros simples que não tenham ... e hesitou para não empregar a palavra ostentação, pouco perceptível para uma criança. E de roupa de marca, gostas? Insistiu o menino. Para mim, a roupa deve ser cómoda e bonita, mais nada.
O neto olhou-a com um certo espanto. Afinal de que é que gostas? Queria dizer-lhe: gosto de árvores, do mar, de estar com os amigos. Acabou por encolher simplesmente os ombros.
E só lhe apeteceu perguntar-lhe: que é feito de ti? Por que caminhos andas agora …
in Escritos de Esferográfica
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