* Eugénia Cunhal
A TV
Costumava passar a maior parte do tempo de olhos fechados. Abri-los, para quê? Iriam bater nas paredes brancas, quase nuas, enfeitadas apenas por uma pequena reprodução da Ceia de Cristo que habitava no seu quarto. Iriam bater nas duas foto- grafias coloridas que descansavam na cómoda. Desbotadas. Talvez pelo olhar que amiúde nelas se fixava. Sugando-lhes as imagens. Roubando-as ao passado. Sem que elas se fundissem no rosto e no corpo que agora eram os seus.
Pensava nisso, quando os olhos fugiam para as mãos poisadas nas bordas do lençol. Mãos de pele enrugada e veias salientes. Mãos gastas, sem terem podido realizar os gestos que habitavam os seus sonhos. Mãos, que a vida dirigiu para trabalhos ásperos e duros. Mãos, cujos dedos ficavam presos ao mais leve movimento, tomando cada vez mais penoso o simples agarrar num qualquer objecto necessário.
Até que chegou o momento em que o corpo resistira a cumprir as mais pequenas obrigações do dia a dia. E ali ficava, deitada a maior parte do tempo. Como um trapo inútil. Ela, que sempre dominara os desafios que nasciam a cada passo do longo caminho dos seus setenta anos.
Um gesto de amor colocou-lhe no quarto um aparelho de televisão. E as paredes ficaram menos nuas. Menos brancas. Menos vazias. Assim, passa melhor o tempo - disseram-lhe. Sempre se vai entretendo.
Agradeceu. E foi conseguindo premir os botões do comando e passear pelos vários canais. De qualquer modo, pelo menos, nasceria um ruído feito de outras vozes, de mil sons que a haveriam de ligar ao lado de fora. E as falas que tentava seguir, proferidas por tantas vozes, hora após hora. E as imagens de gente com quem mal se cruzara, como se tivesse vivido num mundo paralelo.
Viste a novela, ontem? Com a pergunta, a voz ganhava um novo colorido. E o olhar também. Por momentos, eram elas próprias que viviam as histórias das personagens. Eram aquelas mulheres. Suas, aquelas casas confortáveis, espaçosas. Seus, aqueles gestos. Aquelas traições. Aqueles amores. Seus, os finais felizes daquelas vidas. Esquecidas, amassadas, bem no fundo do peito, ficavam as preocupações do dia a dia. O dinheiro que mal chegava até ao fim do mês. O novo filho que ia nascer para todas as interrogações da vida de amanhã. Todas as inquietações. Todas as angústias. Sim, por momentos, elas eram aquelas mulheres.
Viste a novela, ontem?
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