domingo, 25 de janeiro de 2015

JOHN REED – VER PARA CRER


* JOHN REED 

Se a rapariga era honrada ou não, é coisa que Jorge ignora, mas que qualquer um geralmente descobre - ou pelo menos Jorge - após cinco minutos de conversa. E isto é importante, porque Jorge tem ideias fixas sobre este assunto. É um homem simpático, de uma bondade fora do normal, famoso pela forma como cede à fraqueza que todos temos pelas mulheres e que, no entanto, tem ideias muito claras sobre a posição destas criaturas na escala social. Convém acrescentar que é extraordinariamente sensível aos ataques dirigidos contra o seu dinheiro e contra a sua simpatia, e conhece todos os estratagemas.

Parece que saía do seu clube, na Rua Quarenta e Quatro, quando a rapariga passava por acaso. Era uma jovem miudinha, de cabelo sedoso, com um fato barato, azul, de confecção, e um chapelito redondo com uma pluma espetada. Ora bem, é muito natural passarem mulheres pela Rua Quarenta e Quatro; mas, entenda-se, não é este o passeio adequado para raparigas novinhas, mal vestidas. Estranho que a polícia não tivesse detido.

Seja como for, passou por ali e, quando. Jorge saiu a porta afrouxou o passo, propositadamente, e fez um sinal. E aqui está a parte mais surpreendente da história: Jorge acertou o passo e começou-a andar a seu lado. É possível que isto não lhes pareça nada de extraordinário; porque não pertencem ao clube da Rua Quarenta e Quatro. Ficam a saber que nós nunca acompanhamos uma mulher em frente do clube. Era a primeira/vez que Jorge fazia aquilo, e hoje, ao lembrar-se, diz que a rapariga o hipnotizou desde logo.

- Vai a algum sítio em especial? - perguntou, como é da praxe.

Ela levantou a cabeça, olhou-o com franqueza e Jorge observou de repente a extraordinária inocência que se espelhava nos seus olhos.

- Sim - respondeu com um risinho. -- Vou consigo.

A rapariga conteve a respiração e Jorge interrogou-se se algum dos seus amigos o estaria a ver.

- Andei a pé quase toda a noite ~ acrescentou a rapariga -, ainda me enfiei 'na retrete das senhoras da Casa Macy e dormi duas horas, mas descobriram-me.

- Quanto quer? - perguntou Jorge, enfiando a mão no bolso e já um pouco envergonhado de andar na rua com  ela.

A rapariga não lhe respondeu- e ao levantar os olhos ele viu que estavam cheios de lágrimas. A moça parou a meio do passeio e voltou-se para o olhar na cara, sacudindo solenemente a cabecita.

- Não - disse. - Não! Não quero que me pague por o acompanhar. Quero falar consigo.      

Ora bem, se Jorge se tivesse comportado como sempre, ou a tinha afastado indignado ou a tinha levado a um muitos hotéis do bairro. Estavam a uns passos da Sexta Avenida. Mas um sentimento totalmente novo fê-lo envergonhar-se (envergonhar-se, Jorge! ) e lembrou-se:

- Vamos para a sala de espera da Estação Central. Ali podemos falar.

Assim, deram meia volta e voltaram a passar pelo clube em direcção à Quinta Avenida. Para passar o tempo, não?

Estou a vê-los a caminhar quase em silêncio: Jorge incomodado, a pensar que poderia ser visto com ela, indescritivelmente enfurecido por assim ser e interrogando-se o que é que ela seria; e ela, de queixo levantado, como se quisesse sorver o ar e o barulho que a rodeava, com os olhos fixos no cimo dos prédios. Estava um daqueles dias de um azul agressivo dos princípios do Inverno.

Jorge não parava um segundo de a observar pelo rabo do olho. Estava cheio de curiosidade e afinal eram bem poucas as coisas que podia perguntar àquela rapariga.

- Vive em Nova Iorque? - perguntou: saltava à vista que assim não era.

- Oh, homem! - titubeou ela. -Não ... vim de Chillicothe (Ohio ). Mas isto agrada-me muito. Os arranha-céus fazem cócegas, não fazem?

- Cócegas?

- Oh, veja! - explicou ela. - Quando alguém se inclina para trás a admirá-los, com as suas altas torres avermelhadas, tão altas que os pássaros não as conseguem atingir, há qualquer coisa que estremece e mexe dentro de nós e dá vontade de rir.

Dizendo isto, deu uma espécie de trinado, encantada.

- Agora compreendo - murmurou ele totalmente desconcertado.

- Sabe, é por isso que vim - continuou ela - por isso e pelas multidões.

- Quer dizer que veio a Nova lorque para ver os arranha-céus e a multidão? - perguntou Jorge sarcástico: como devem compreender, Jorge era demasiado sabido para engolir certas coisas.

- Ela confirmou com a cabeça.

- Creio que em toda a minha vida não ouvi falar de mais nada a não ser de Nova lorque. Cada vez que chegava um viajante à Casa Simond (era a casa onde trabalhava, sabe?), ou quando o senhor Petty ia ao Leste, nesta altura do Outono, falavam do metro aéreo, dos arranha-céus, da Broadway, e falavam de tal modo que não conseguia dormir, a pensar nas torres, no barulho, nas luzes. Por isso resolvi vir ...

-Mas, como ... ?

- Oh! Já sei que lhe parece estranho que uma rapariga como eu tenha arranjado dinheiro para vir. Mas sabe? Tenho agora dezassete anos e comecei a poupar aos onze. Poupei cinquenta dólares.

Naquele momento fechavam a porta leste da estação.

Jorge perguntou bruscamente:

- Quanto tem você agora?

- Nada - respondeu.

A moça descobriu então o terraço de mármore, a curiosa escadaria, e o tecto sumptuoso, decorado de estrelas e sulcado pela mística e dourada faixa de Zodíaco.

Oh! - exclamou agarrando-se ao parapeito de mármore, com uns dedos rechonchudos. - Nunca vi coisa tão bonita na minha vida!

_ Deixe-se disso! - disse Jorge agarrando-lhe o braço. - Venha. Temos de conversar.

Foi-lhe difícil arrancar a moça do terraço. Parecia ter esquecido tudo, extasiada com aquilo. Queria saber o que era. Que é que estava a fazer toda aquela gente? Aonde ia? Porque andavam todas aquelas pessoas de um lado para o outro, tropeçando umas nas outras, sem se falar? Se era uma estação de caminho-de-ferro, onde estavam os comboios, e porque era tão bonita? Que era Zodíaco e porque não se via no céu, lá fora? De repente Jorge descobriu que era muito estranho que uma rapariga que pretendia vir de Chillicothe (Ohio) não conhecesse a Estação Central.

_ A propósito - disse-lhe -, não desembarcou de Ohio nesta estação?

- Oh! Não, querido! - respondeu despreocupadamente. - Atravessei o rio num vaporzito.

A rapariga tinha aparado o golpe. Jorge levou-a, o mais depressa possível, até à sala de espera. Estava desgostosíssimo . Pensava que nunca tinha sido vítima de um engano tão flagrante.

- Escute! - disse quando se sentaram. - Há quanto tempo está você em Nova lorque?

_ Há duas semanas; mas não conheci nem metade ...

- Creio que terá tratado de arranjar emprego por todo o lado - disse Jorge a gozar - mas não conseguiu. E agora puseram-na na rua e ficaram-lhe com a bagagem ...

- Precisamente - disse a moça um pouco atrapalhada. - Fizeram-me isso. Mas você engana-se. Não é que não tenha encontrado emprego; não procurei, simplesmente. Sabe? Passei os dias todos a percorrer Nova lorque em carros de turismo - e isso custa um dólar por viagem, além de não irem a todos os sítios.

Jorge enfureceu-se.      

-- Vamos! - exclamou. - Julga que acredito nisso? Fique sabendo que sou daqui. - (Jorge orgulha-se de ser de. Nova Iorque.) - Se você me disser a verdade, farei o possível por ajudá-la.

A moça deu uma risadinha de espanto e olhou-o com uns olhos muito abertos.

- Ah! A minha mãe sempre me disse que eu era uma mentirosa terrível. Talvez tenha contado algumas coisas piores do que são na realidade. Mas imagino o que 'Você quer dizer - acrescentou docemente--. Você julga que eu ... que 'eu. .. Mas não, não, não - e abanou a cabeça. -' Estou a ver tudo'; mas sou uma 'rapariga séria.

Jorge sentiu uma dor profunda: tinha-se ferido a si mesmo. Quanto à rapariga, pareceu esquecer por completo o incidente. Houve uma pausa.

 - Que vai fazer? - perguntou por fim, com voz dura,

- É precisamente sobre isso que lhe quero falar - disse ela voltando-se para ele, agitada. - Sabe? Ontem à, noite quando regressei ao quarto, a mulher não me quis deixar entrar e disse-me através de uma fresta da porta que não me dava a roupa. Pus-me a passear e a pensar no que haveria de fazer. Mas achei tão engraçado andar pelas ruas silenciosas, à noite e ao amanhecer, que me esqueci de pensar no que havia de fazer. Dormi então um pedaço na Casa Macy ... e ... e .. ,enfim, estava quase a  decidir-me quando o vi.

- Bom, e que mais? - perguntou ele impaciente.

- Bem, tenho de ver o que falta de Nova lorque. Só que me vai custar dinheiro, sabe? Tenho de comer e dormir. Pelo menos comer, - franziu o sobrolho de uma forma deliciosa. - E sobre isto queria pedir-lhe um conselho.

A simplicidade e o atrevimento da rapariga fizeram Jorge resmungar. Isto sem falar na história, que poderia ser uma deliberada mentira. Santo Deus, como desejaria duvidar daquela história!

- Escute! - exclamou. - Volte para Chillicothe. É um conselho. Vá para casa. Ah! você não sabe os perigos que corre nesta cidade terrível! - (Os Nova-lorquinos gostam da sua Sodoma e Gomorra.) - Corre o risco de morrer de fome. Além disso, enfim, é uma sorte que você não, tenha deparado com alguns homens que vivem nesta cidade. Uff. - (Jorge tremeu ao pensar nalguns dos monstros que infestam Babilónia.) - Imagine que não me tinha encontrado. Sabe o que teria pensado qualquer outro homem?     .

- Sim - disse a sorrir. - Exactamente o mesmo que você pensou. E tinha feito mais ou menos o mesmo que fez. Não tenho medo dos homens. Sempre confiei em toda a gente e nunca me fizeram mal. Oh, já vivi muito e a fome não me assusta. Encontro sempre alguém que me ajuda e por isso  tenho fé.

. -Vá para casa! -disse Jorge rudemente. -Você não sabe o que diz! Compro-lhe o bilhete e dou-lhe dinheiro para comer: Vá já ter com a sua mãe, antes que seja engolida por algum turbilhão. - (Jorge orgulha-se muito das suas metáforas.) - Sei que não se quer ir embora e que é valente; mas se não o faz, juro-lhe que ...

Estava quase a ameaçá-la com a Sociedade Jerry, quando reparou de repente que a moça tinha a cara enterrada nas mãos e que os ombros tremiam. Estaria a rir-se dele? Jorge afastou-lhe bruscamente as mãos da cara. Parecia sacudida por soluços, embora não tivesse lágrimas. O pobre Jorge não sabia que pensar.

- Oh! - exclamou ela com a voz embargada. - Tem razão. Irei para casa. Não posso resistir mais. Oh, mande-me para casa!

Jorge perguntou-lhe quanto custava a viagem e, por fim, ficou-se pelos vinte dólares. Dentro de cinco minutos saía um comboio que a podia levar.

- Vamos! - disse Jorge. - Venha! Vamos tirar o bilhete!

A rapariga tinha parado de soluçar com uma brusquidão pouco natural, na opinião de Jorge, e sem que se lhe descobrisse qualquer sinal de choro. Ao ouvir as suas palavras, a rapariga ficou parada e segurou-lhe o braço com a mão miúda.

- Não - disse-lhe. - Dê-me o dinheiro, que eu tiro.

Jorge olhou-a ensonado.

- Não acredita, mas deve acreditar. De outro modo, terei de pedir a outro. Vamo-nos despedir aqui.

Jorge hesitou por momentos. A seguir pensou: «Bem, quer-me enganar! Assim que se apanhar com o dinheiro, sai pela porta da Rua Quarenta e Dois. De qualquer maneira, já fiz figura de parvo.»

Seguidamente, deu o dinheiro à moça. Esta devia ter adivinhado os seus pensamentos, pois olhou-o fixamente, sacudindo a cabeça da forma estranha que lhe era peculiar.

~ Você não tem fé - disse-lhe -; mas não importa. Como foi bom para mim, dir-lhe-ei onde vivi em Nova Iorque. Você pode lá ir ...

Quando a rapariga desapareceu, deixando-o na sala de espera, Jorge voltou para casa e cometeu a indiscrição de nos contar tudo isto. É claro que o gozámos até mais não, por ter sido tão inocente, e ele envergonhou-se um pouco da sua quixotada. Tanto mais que não tinha nada de inocente.

Durante o jantar, Burgess falou do assunto com ele.

- Conheço-as - disse Burgess altivamente, - Aposto que lhe deu um beijo pouco entes de partir.

- Não - respondeu Jorge. - O que é mais engraçado é que teria gostado. Qualquer um diria que por gratidão ...

- Bom, nesse caso, ficou com o seu nome e endereço, prometendo-lhe devolver o dinheiro um dia.

- Totalmente ao contrário. Foi ela quem me deu um endereço, onde disse que estava retida a bagagem. E eu, quando reagi, fui lá, convencido de que não ia encontrar nada.

- E não encontrou?

Jorge encolheu os ombros.

-Estava lá tudo no vestíbulo. É essa mala. Corresponde ao que ela disse.

- Confesso francamente - disse Burgess - que nunca ouvi nada semelhante. Mas não há uma mulher, nem tão-pouco um homem, que possa deixar a cidade com vinte dólares. De modo nenhum. A explicação é que a rapariga deixou o bairro. Agora que arranjou quarto, regressou. Aposto que, se estiver atento, acabará por encontrá-la, quase todas as noites, na Sexta Avenida, junto à Rua Trinta e Três.

E apostaram cinco dólares, o que achei disparate.

Passadas três semanas, Jorge chega uma noite e dirige-se imediatamente a Burgess, dizendo:    ,1

- Tome os cinco dólares!

- Porquê? - disse Burgess, que se, esquecera completamente do assunto, tal como nós.

- Vi a rapariga - murmurou Jorge sem olhar para ninguém. - Na Sexta Avenida e na Rua Trinta e Três.

- Conte-nos, pediu Burgess, que, para além do mais,    estava interessado.

E deste modo; soubemos a continuação da história.

Jorge passara o feriado em Long Island, com os Winslows, e tomara o comboio das oito e dez. Chegou à Estação da Pensilvânia cerca das nove e um quarto e lembrou-se de ir a pé. E na esquina da Rua Trinta e Três com a Sexta Avenida, ninguém diria, acabou por encontrar a rapariga. Jorge disse que ia distraído quando alguém gritou:

- Vai a algum sítio em especial?

Jorge olhou e, subitamente, reconheceu-a. A rapariga avançou e, dando meia volta, encarou com ele a meio do passeio, pondo as mãos nas ancas com descaramento. Jorge sentiu-se furioso; mas já tinha passado tanto tempo desde o ocorrido que decidiu mostrar-se cinicamente divertido.

_ Vou consigo - disse, tranquilamente, imitando-a, e aproximou-se dela. - Aonde quer ir?

Corno resposta, ela avançou, agarrou-o pelos ombros e olhou-o nos olhos, abanando lentamente a cabeça.

_ Quero comer qualquer coisa - disse apenas.

Jorge encolheu os ombros e apontou o Restaurante Baber. A perspicaz observação da rapariga desanimou-o e, enquanto caminhavam, olhou-a de soslaio. Achou-a mais magra, mais pobre, mais pequena e mais mal vestida, mas com o mesmo ar de inocência. Isto era outra prova dá sua culpabilidade. Porque não era possível que tivesse andado pela rua durante cinco semanas e continuasse honrada. Tinha de estar marcada. E a sua expressão cândida e imperturbável, enquanto caminhava ao seu lado, quando qualquer outra teria começado imediatamente a justificar-se? (Jorge é um raro conhecedor da natureza humana.)

_ É uma sorte tê-lo encontrado, sabe? - disse ela.- Nâo comi nada em todo o dia.

_ Porque se alegra de me encontrar a mim em especial? - disse Jorge com malícia. - Os outros não lhe ligam?

_ Oh, sim! - respondeu ela ponderadamente. - Encontro sempre quem me dê comer ou outras coisas, Mas não senti apetite durante o dia. Estive na doca a ver os barcos. Aquilo parece uma imagem do mundo. Todos os barcos trazem a marca de um sítio diferente.

Jorge decidiu vingar-se dela não fazendo alusões ao motivo do anterior encontro: se a rapariga tivesse consciência, isto servir-lhe-ia de castigo.

_ A propósito - disse ela, recordando-se de repente-, você é meu amigo e não me importo de pedir: preciso de dez dólares para pagar um vestido que encomendei. Como vê, trago a roupa velha, que já não me cobre o suficiente.

- Caramba! - exclamou Jorge atónito. - Viva o atrevimento!

- Sim; talvez tenha sido descaramento encomendá-lo - concordou a rapariga.

Foi uma das boas resoluções de Jorge! Quando o desconfiado mordomo do Baber se tranquilizou ao ver a brancura do colarinho de Jorge, este sentiu-se totalmente devorado por  uma impaciente curiosidade. Que diria a rapariga? Como se explicaria? Ou confessaria simplesmente o engano? Ou viria com outra história, tão impressionante e incrível como a anterior? O objectivo das suas conjecturas estava a observar tranquilamente a sala, satisfeita, serena e distante. Jorge não conseguiu aguentar mais.

- Julguei que tinha regressado a Chillicothe ... - disse-lhe ironicamente.

Ela observou-o e ele achou nos seus olhos um ténue brilho de satisfação e uma leve sombra de tristeza.

- Tinha-me esquecido que você queria informar-se disso primeiro. Bem, quando o deixei tomei o comboio ...

A rapariga fez uma pausa, olhando-o nos olhos, e repetiu:

- Apanhei o comboio e fui até Albany. A seguir encontrei um homem muito simpático que se sentou ao meu lado e começámos a conversar. Era alto e ruivo, de bigode louro, muitíssimo mais velho que você; chamava-se Tom, segundo disse. Ora bem, ia pensando comigo: «Vê lá tu, regressares a casa só com a roupa que trazes em cima, depois de a tua mãe trabalhar todo o Inverno para te vestir bem. Não devias ter saído de Nova lorque sem levares as tuas coisas da pensão.» E como me preocupava voltar a Chillicothe sem elas, disse-o a Tom. O homem respondeu-me: «Vamos descer em Utica e levo-a para Nova lorque para lhe tirar a roupa da pensão.»

- Esta história ultrapassa. a outra - disse Jorge.

- Vê? - exclamou radiante. - Disse-lhe que tinha de ver o que me faltava em Nova lorque. E repare que Tom apareceu quando precisava. Bem, voltámos os dois para cá e ele fez tudo o que prometeu. Mas quando chegámos à pensão, a roupa tinha desaparecido. Disseram-me que um jovem a fora buscar, e pensei logo em si. Mas não sabia, onde encontrá-lo - acrescentou, sorrindo -, a não ser que fosse passear para diante daquela casa onde o vi pela primeira vez. E Tom não queria que o fizesse. Sabe? Tom portou-se muito bem comigo. Arranjou-me uma casa e pagou-me duas semanas de aluguer antecipado. Comprou-me também alguns bonitos vestidos. Costumávamos jantar juntos todas as noites.

- Que é que aconteceu a Tom? - perguntou Jorge com um certo tom cínico.

Mas a rapariga não se deu por achada e continuou, com a voz mais doce:

- Pobre Tom! O homem não compreendia. Não sei porquê, mas parece-me que era impossível que ele compreendesse. Creio que devia andar mal ou qualquer coisa no estilo. Porque, depois de ter sido tão bom para mim durante todo este tempo, começou a ... bom, calcula o que ele queria. Pobre Tom!

Oh! Essa tem muita piada! -  , exclamou Jorge, rindo-se.

A rapariga ficou a olhá-lo; pensativamente. .

- Não sei se você compreenderá também - disse. -. - Mas não é culpa sua, acredito. Tinha sido tão bom para mim e eu fui tão ruim. Simplesmente, não compreendia. Mas, como é natural não podia continuar ali nem podia continuar  a usar os vestidos que me comprou. Por isso, faz uma semana, uma noite fui-me embora.

- Onde é que você vive agora?

- Olhe neste momento não tenho casa...,

-  Como! - exclamou Jorge sem querer. - Uma semana inteira? Mas ...  

. A rapariga sorriu-se misteriosamente (ou, se calhar, com malícia) . Quando anoitece - disse calmamente - escolho uma casa de bom aspecto e toco. Quando abrem, digo que estou cansada, que não tenho para onde ir e que procuro dormir ali.

_ E ... ? - disse Jorge, sem se dar por achado..

_ Bem vê, só de longe em longe não compreendem. Então, tenho de bater a outra porta.

Jorge ameaçou-a com o dedo espetado sobre a mesa.

_ Não sei porque ouço as suas histórias - disse severamente _; parece que acredito que você, no fundo tem de ser boa. Vamos diga-me a verdade. Sei que e difícil a uma rapariga encontrar emprego; mas já experimentou?

_ Se experimentei arranjar- emprego? Eu? O quê? Não! _ respondeu admirada. - Não quero trabalhar aqui. O que quero é conhecer coisas. E há tantos milhares de coisas para se ver e sentir. Ontem fartei-me de andar, desde manhãzinha cedo até perto do meio-dia. Subi por uma rua larga que escalava os telhados das casas, entre enormes e oscilantes teias de aranha de aço, e, por fim, consegui contemplar uma grande extensão da cidade, coberta de fumo, e que em todas as ruas brincavam crianças. Veja! Tudo isto para conhecer, e eu não sabia!

Jorge diz que sentiu uma sensação estranha e irracional: por momentos, acreditou, efectivamente, na rapariga. Pareceu-Jhe descobrir um mundo que nunca tinha imaginado, um mundo do qual se tinha excluído, sempre; porque sabia de mais.

A impressão era de mágoa. A rapariga era como uma chamazinha branca que o queimava. E, na sua dor, viu-se obrigado a confessar-lhe tudo isto; e ela não fez mais do que abanar a cabeça solenemente:

- Não - respondeu-lhe. - Isso é porque você conhece muito pouco.

Mas este estado de espírito durou pouco tempo. Imediatamente, Jorge recobrou o ar normal e, depois de dizer à rapariga tudo o que pensava dela, deixou-a.

Contudo, uma das coisas mais raras da história foi a despedida dela. Jorge disse que a rapariga escutou tudo o que lhe disse com a cabeça de lado, e quando terminou inclinou-se para a frente, segurou as suas mãos entre as dela e apertou-as contra o peito. Os olhos encheram-se de lágrimas, e no preciso instante em que julgava que ela ia começar a chorar desatou a rir.

- Voltaremos a ver-nos - disse-lhe com a sua voz aguda. -Vê-Io-ei quando precisar, ..

E então, indignado, Jorge voltou para casa.

_ Bom - disse Burgess, dando voltas à nota de cinco dólares, uma vez terminada a história. - Bom, gosto tanto da história que estou disposto a pagar por tê-la ouvido. Quero pagar cinco dólares desses dez ...

- Que dez? ~ perguntou Jorge.

_ Os dez que você lhe deu para comprar o vestido. - E Burgess estendeu-lhe a nota.

Jorge ficou imóvel, cada vez mais corado, e olhando para nós para ver se nos ríamos dele. Então, com a voz presa, disse:

«Obrigado! », e guardou o dinheiro.

1913.
in FILHA DA REVOLUÇAO E OUTROS CONTOS

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aqui pode ler o conto que deu o nome à colectânea


http://www.esquerda.net/media/a_filha_da_revolucao_j_reed.pdf

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Dois poemas de José Martí

23 de janeiro de 2015 - 16h33 


Em homenagem ao nascimento de José Martí, na próxima quarta-feira (28), o caderno cultural Prosa Poesia e Arte do Portal Vermelho selecionou dois poemas da vasta obra literária do revolucionário cubano. 


Os poemas foram extraídos da antologia de José Martí, Letras Fieras, publicada originalmente em 1981 em Cuba por Roberto Fernández Retamar. Ambos foram publicados em seu primeiro livro de versos, intitulado Ismaelillo, dedicado a seu único filho José Francisco. 

Na dedicatória ao filho Martí escreve: “Tenho fé na evolução da humanidade, e na vida futura, na utilidade das virtudes e em ti”. “Se alguém te disser que estas páginas parecem a outras páginas, diga-lhes que te amo demais para profanar-te assim. Tal como aqui te pinto, te viram meus olhos (...)”. 

Veja os dois poemas na íntegra, um português, o outro em espanhol: 

Meu cavaleiro 

Pelas manhãs
Meu pequeno menino
Me despertava
Com um grande beijo
Montado a cavalo 
Sobre meu peito
Bridas forjava
Com meus cabelos. 
Ele embriagado de alegria
Eu embriagado de alegria
Me impulsionava
Meu cavaleiro: 
Que suave espora
Seus dois pés frescos!
Como ria 
Meu pequeno ginete!
E eu beijava
Seus pés pequenos, 
Dois pés que cabem 
Em um só beijo! 

Hijo del alma

Tú flotas sobre todo, 
Hijo del Alma!
De la revuelta noche
Las oleadas,
En mi seno desnudo
Déjante el alba;
Y del día la espuma
Turbia y amarga, 
De la noche revuelta
Te echa em las aguas. 
Guardiancillo magnânimo, 
La no cerrada
Puerta de mi honto espíritu
Amante guardas;
Y si em la sombra ocultas
Búscanme avaras,
De mi calma celosas,
Mis penas varias,
En el umbral oscuro
Fiero te alzas,
Y les cierram el passo
Tus alas blancas!
Ondas de luz y flores
Trae la mañana,
Y tu en las luminosas
Ondas cabalgas.
No es, no, la luz del día
La que me llama, 
Sino tus manecitas
En mi almohada.
Me hablan de que estás lejos:
Locuras me hablan
Ellos tienen tu sombra;
Yo tengo tu alma!
Ésas son cosas nuevas, 
Mías y extrañas.
Yo sé que tus dos ójos
Allán en lejanas
Tierras reampeguean,
Y en las doradas
Olas de aire que baten
Mi frente pálida,
Pudiera com mi mano, 
Cual si haz segara
De estrelas, segar haces
De tus miradas: 
Tú flotas sobre todo, 
Hijo del alma!

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segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Bernardim Ribeiro - Não Sou Casado, Senhora

* Bernardim Ribeiro


Não sou casado, senhora, 

que ainda não dei a mão, 
não casei o coração. 

Antes que vos conhecesse, 
sem errar contra vós nada, 
uma só mão fiz casada, 
sem que mais nisso metesse. 
Dou-lhe que ela se perdesse! 
solteiros e vossos são 
os olhos e o coração. 

Dizem que o bom casamento 
se há de fazer de vontade. 
Eu, a vós, a liberdade 
vos dei, e o pensamento. 
Nisto só me achei contento: 
que, se a outrem dei a mão, 
dei a vós o coração. 

Como, senhora, vos vi, 
sem palavras de presente 
na alma vos recebi, 
onde estareis para sempre, 
não de palavra somente; 
nem fiz mais que dar a mão, 
guardando-vos o coração. 

Casei-me com meu cuidado 
e com vosso desejar. 
Senhora, não sou casado, 
não mo queirais acuitar! 
que servir-vos e amar 
me nasceu do coração 
que tendes em vossa mão. 

O casar não fez mudança 
em meu antigo cuidado, 
nem me negou a esperança 
do galardão esperado. 
Não me engeiteis por casado, 
que, se a outra dei a mão, 
a vós dei o coração. 

Bernardom Ribeiro, in 'Antologia Poética' 

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Olavo Bilac - Os Reis Magos

* Olavo Bilac

Diz a Sagrada Escritura
Que, quando Jesus nasceu,
No céu, fulgurante e pura,
Uma estrela apareceu.
-
Estrela nova … Brilhava
Mais do que as outras; porém
Caminhava, caminhava
Para os lados de Belém.
-
Avistando-a, os três Reis Magos
Disseram: “Nasceu Jesus!”
Olharam-na com afagos,
Seguiram a sua luz.
-
E foram andando, andando,
Dia e noite a caminhar;
Viam a estrela brilhando,
sempre o caminho a indicar.
-
Ora, dos três caminhantes,
Dois eram brancos: o sol
Não lhes tisnara os semblantes
Tão claros como o arrebol
-
Era o terceiro somente
Escuro de fazer dó …
Os outros iam na frente;
Ele ia afastado e só.
-
Nascera assim negro, e tinha
A cor da noite na tez :
Por isso tão triste vinha …
Era o mais feio dos três !
-
Andaram. E, um belo dia,
Da jornada o fim chegou;
E, sobre uma estrebaria,
A estrela errante parou.
-
E os Magos viram que, ao fundo
Do presépio, vendo-os vir,
O Salvador deste mundo
Estava, lindo, a sorrir
-
Ajoelharam-se, rezaram
Humildes, postos no chão;
E ao Deus-Menino beijaram
A alava e pequenina mão.
-
E Jesus os contemplava
A todos com o mesmo amor,
Porque, olhando-os, não olhava
A diferença da cor …
-
-
Em: Poesias infantis, Olavo Bilac, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves: 1949, 17ª edição

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

José Jorge Letria - os reis magos

José Jorge Letria

São três e chegam de longe

com um sonho na bagagem:
querem estar com o menino
antes que finde a viagem.

São magos do Oriente,
mas não são magos de rua;
acreditam nos cometas,
nas estrelas e na lua.

São os magos viajantes
que resistem à fadiga,
seguindo o rasto de luz
de uma estrela que é amiga.

São os Reis Magos que chegam
das mais remotas paragens
com ouro, incenso e mirra
que trazem de outras viagens.

São os Reis Magos Felizes,
joelho assente na terra,
com um voto e uma prece:
"menino, põe fim à guerra."

Gaspar, Baltazar e Belchior
pedem à estrela brilhante:
"Dá nome a este menino
antes que o galo cante."

Viemos aqui nesta noite
com um desejo profundo:
queremos ver o Menino
que vem dar esperança ao mundo.