* JOHN REED
Se a rapariga era honrada ou
não, é coisa que Jorge ignora, mas que qualquer um geralmente descobre - ou
pelo menos Jorge - após cinco minutos de conversa. E isto é importante, porque
Jorge tem ideias fixas sobre este assunto. É um homem simpático, de uma bondade
fora do normal, famoso pela forma como cede à fraqueza que todos temos pelas
mulheres e que, no entanto, tem ideias muito claras sobre a posição destas
criaturas na escala social. Convém acrescentar que é extraordinariamente
sensível aos ataques dirigidos contra o seu dinheiro e contra a sua simpatia, e
conhece todos os estratagemas.
Parece que saía do seu clube, na
Rua Quarenta e Quatro, quando a rapariga passava por acaso. Era uma jovem
miudinha, de cabelo sedoso, com um fato barato, azul, de confecção, e um
chapelito redondo com uma pluma espetada. Ora bem, é muito natural passarem
mulheres pela Rua Quarenta e Quatro; mas, entenda-se, não é este o passeio
adequado para raparigas novinhas, mal vestidas. Estranho que a polícia não
tivesse detido.
Seja como for, passou por ali e,
quando. Jorge saiu a porta afrouxou o passo, propositadamente, e fez um sinal.
E aqui está a parte mais surpreendente da história: Jorge acertou o passo e
começou-a andar a seu lado. É possível que isto não lhes pareça nada de
extraordinário; porque não pertencem ao clube da Rua Quarenta e Quatro. Ficam a
saber que nós nunca acompanhamos uma mulher em frente do clube. Era a
primeira/vez que Jorge fazia aquilo, e hoje, ao lembrar-se, diz que a rapariga
o hipnotizou desde logo.
- Vai a algum sítio em especial?
- perguntou, como é da praxe.
Ela levantou a cabeça, olhou-o
com franqueza e Jorge observou de repente a extraordinária inocência que se
espelhava nos seus olhos.
- Sim - respondeu com um
risinho. -- Vou consigo.
A rapariga conteve a respiração
e Jorge interrogou-se se algum dos seus amigos o estaria a ver.
- Andei a pé quase toda a noite
~ acrescentou a rapariga -, ainda me enfiei 'na retrete das senhoras da Casa
Macy e dormi duas horas, mas descobriram-me.
- Quanto quer? - perguntou
Jorge, enfiando a mão no bolso e já um pouco envergonhado de andar na rua com
ela.
A rapariga não lhe respondeu- e
ao levantar os olhos ele viu que estavam cheios de lágrimas. A moça parou a
meio do passeio e voltou-se para o olhar na cara, sacudindo solenemente a
cabecita.
- Não - disse. - Não! Não quero
que me pague por o acompanhar. Quero falar consigo.
Ora bem, se Jorge se tivesse
comportado como sempre, ou a tinha afastado indignado ou a tinha levado a um
muitos hotéis do bairro. Estavam a uns passos da Sexta Avenida. Mas um
sentimento totalmente novo fê-lo envergonhar-se (envergonhar-se, Jorge! ) e lembrou-se:
- Vamos para a sala de espera da
Estação Central. Ali podemos falar.
Assim, deram meia volta e
voltaram a passar pelo clube em direcção à Quinta Avenida. Para passar o tempo,
não?
Estou a vê-los a caminhar quase
em silêncio: Jorge incomodado, a pensar que poderia ser visto com ela,
indescritivelmente enfurecido por assim ser e interrogando-se o que é que ela
seria; e ela, de queixo levantado, como se quisesse sorver o ar e o barulho que
a rodeava, com os olhos fixos no cimo dos prédios. Estava um daqueles dias de
um azul agressivo dos princípios do Inverno.
Jorge não parava um segundo de a
observar pelo rabo do olho. Estava cheio de curiosidade e afinal eram bem
poucas as coisas que podia perguntar àquela rapariga.
- Vive em Nova Iorque? -
perguntou: saltava à vista que assim não era.
- Oh, homem! - titubeou ela.
-Não ... vim de Chillicothe (Ohio ). Mas isto agrada-me muito. Os arranha-céus
fazem cócegas, não fazem?
- Cócegas?
- Oh, veja! - explicou ela. -
Quando alguém se inclina para trás a admirá-los, com as suas altas torres
avermelhadas, tão altas que os pássaros não as conseguem atingir, há qualquer
coisa que estremece e mexe dentro de nós e dá vontade de rir.
Dizendo isto, deu uma espécie de
trinado, encantada.
- Agora compreendo - murmurou
ele totalmente desconcertado.
- Sabe, é por isso que vim -
continuou ela - por isso e pelas multidões.
- Quer dizer que veio a Nova
lorque para ver os arranha-céus e a multidão? - perguntou Jorge sarcástico:
como devem compreender, Jorge era demasiado sabido para engolir certas coisas.
- Ela confirmou com a cabeça.
- Creio que em toda a minha vida
não ouvi falar de mais nada a não ser de Nova lorque. Cada vez que chegava um
viajante à Casa Simond (era a casa onde trabalhava, sabe?), ou quando o senhor
Petty ia ao Leste, nesta altura do Outono, falavam do metro aéreo, dos
arranha-céus, da Broadway, e falavam de tal modo que não conseguia dormir, a
pensar nas torres, no barulho, nas luzes. Por isso resolvi vir ...
-Mas, como ... ?
- Oh! Já sei que lhe parece
estranho que uma rapariga como eu tenha arranjado dinheiro para vir. Mas sabe?
Tenho agora dezassete anos e comecei a poupar aos onze. Poupei cinquenta dólares.
Naquele momento fechavam a porta
leste da estação.
Jorge perguntou bruscamente:
- Quanto tem você agora?
- Nada - respondeu.
A moça descobriu então o terraço
de mármore, a curiosa escadaria, e o tecto sumptuoso, decorado de estrelas e
sulcado pela mística e dourada faixa de Zodíaco.
Oh! - exclamou agarrando-se ao
parapeito de mármore, com uns dedos rechonchudos. - Nunca vi coisa tão bonita
na minha vida!
_ Deixe-se disso! - disse Jorge
agarrando-lhe o braço. - Venha. Temos de conversar.
Foi-lhe difícil arrancar a moça
do terraço. Parecia ter esquecido tudo, extasiada com aquilo. Queria saber o
que era. Que é que estava a fazer toda aquela gente? Aonde ia? Porque andavam
todas aquelas pessoas de um lado para o outro, tropeçando umas nas outras, sem
se falar? Se era uma estação de caminho-de-ferro, onde estavam os comboios, e
porque era tão bonita? Que era Zodíaco e porque não se via no céu, lá fora? De
repente Jorge descobriu que era muito estranho que uma rapariga que pretendia
vir de Chillicothe (Ohio) não conhecesse a Estação Central.
_ A propósito - disse-lhe -, não
desembarcou de Ohio nesta estação?
- Oh! Não, querido! - respondeu
despreocupadamente. - Atravessei o rio num vaporzito.
A rapariga tinha aparado o
golpe. Jorge levou-a, o mais depressa possível, até à sala de espera. Estava
desgostosíssimo . Pensava que nunca tinha sido vítima de um engano tão
flagrante.
- Escute! - disse quando se
sentaram. - Há quanto tempo está você em Nova lorque?
_ Há duas semanas; mas não
conheci nem metade ...
- Creio que terá tratado de
arranjar emprego por todo o lado - disse Jorge a gozar - mas não conseguiu. E
agora puseram-na na rua e ficaram-lhe com a bagagem ...
- Precisamente - disse a moça um
pouco atrapalhada. - Fizeram-me isso. Mas você engana-se. Não é que não tenha
encontrado emprego; não procurei, simplesmente. Sabe? Passei os dias todos a
percorrer Nova lorque em carros de turismo - e isso custa um dólar por viagem,
além de não irem a todos os sítios.
Jorge enfureceu-se.
-- Vamos! - exclamou. - Julga
que acredito nisso? Fique sabendo que sou daqui. - (Jorge orgulha-se de ser de.
Nova Iorque.) - Se você me disser a verdade, farei o possível por ajudá-la.
A moça deu uma risadinha de
espanto e olhou-o com uns olhos muito abertos.
- Ah! A minha mãe sempre me
disse que eu era uma mentirosa terrível. Talvez tenha contado algumas coisas piores
do que são na realidade. Mas imagino o que 'Você quer dizer - acrescentou
docemente--. Você julga que eu ... que 'eu. .. Mas não, não, não - e abanou a
cabeça. -' Estou a ver tudo'; mas sou uma 'rapariga séria.
Jorge sentiu uma dor profunda:
tinha-se ferido a si mesmo. Quanto à rapariga, pareceu esquecer por completo o
incidente. Houve uma pausa.
- Que vai fazer? -
perguntou por fim, com voz dura,
- É precisamente sobre isso que
lhe quero falar - disse ela voltando-se para ele, agitada. - Sabe? Ontem à,
noite quando regressei ao quarto, a mulher não me quis deixar entrar e disse-me
através de uma fresta da porta que não me dava a roupa. Pus-me a passear e a
pensar no que haveria de fazer. Mas achei tão engraçado andar pelas ruas
silenciosas, à noite e ao amanhecer, que me esqueci de pensar no que havia de
fazer. Dormi então um pedaço na Casa Macy ... e ... e .. ,enfim, estava quase a
decidir-me quando o vi.
- Bom, e que mais? - perguntou
ele impaciente.
- Bem, tenho de ver o que falta
de Nova lorque. Só que me vai custar dinheiro, sabe? Tenho de comer e dormir.
Pelo menos comer, - franziu o sobrolho de uma forma deliciosa. - E sobre isto
queria pedir-lhe um conselho.
A simplicidade e o atrevimento
da rapariga fizeram Jorge resmungar. Isto sem falar na história, que poderia
ser uma deliberada mentira. Santo Deus, como desejaria duvidar daquela
história!
- Escute! - exclamou. - Volte
para Chillicothe. É um conselho. Vá para casa. Ah! você não sabe os perigos que
corre nesta cidade terrível! - (Os Nova-lorquinos gostam da sua Sodoma e
Gomorra.) - Corre o risco de morrer de fome. Além disso, enfim, é uma sorte que
você não, tenha deparado com alguns homens que vivem nesta cidade. Uff. -
(Jorge tremeu ao pensar nalguns dos monstros que infestam Babilónia.) - Imagine
que não me tinha encontrado. Sabe o que teria pensado qualquer outro homem?
.
- Sim - disse a sorrir. -
Exactamente o mesmo que você pensou. E tinha feito mais ou menos o mesmo que
fez. Não tenho medo dos homens. Sempre confiei em toda a gente e nunca me
fizeram mal. Oh, já vivi muito e a fome não me assusta. Encontro sempre alguém
que me ajuda e por isso tenho fé.
. -Vá para casa! -disse Jorge
rudemente. -Você não sabe o que diz! Compro-lhe o bilhete e dou-lhe dinheiro
para comer: Vá já ter com a sua mãe, antes que seja engolida por algum
turbilhão. - (Jorge orgulha-se muito das suas metáforas.) - Sei que não se quer
ir embora e que é valente; mas se não o faz, juro-lhe que ...
Estava quase a ameaçá-la com a
Sociedade Jerry, quando reparou de repente que a moça tinha a cara enterrada
nas mãos e que os ombros tremiam. Estaria a rir-se dele? Jorge afastou-lhe
bruscamente as mãos da cara. Parecia sacudida por soluços, embora não tivesse
lágrimas. O pobre Jorge não sabia que pensar.
- Oh! - exclamou ela com a voz
embargada. - Tem razão. Irei para casa. Não posso resistir mais. Oh, mande-me
para casa!
Jorge perguntou-lhe quanto
custava a viagem e, por fim, ficou-se pelos vinte dólares. Dentro de cinco
minutos saía um comboio que a podia levar.
- Vamos! - disse Jorge. - Venha!
Vamos tirar o bilhete!
A rapariga tinha parado de
soluçar com uma brusquidão pouco natural, na opinião de Jorge, e sem que se lhe
descobrisse qualquer sinal de choro. Ao ouvir as suas palavras, a rapariga
ficou parada e segurou-lhe o braço com a mão miúda.
- Não - disse-lhe. - Dê-me o
dinheiro, que eu tiro.
Jorge olhou-a ensonado.
- Não acredita, mas deve
acreditar. De outro modo, terei de pedir a outro. Vamo-nos despedir aqui.
Jorge hesitou por momentos. A
seguir pensou: «Bem, quer-me enganar! Assim que se apanhar com o dinheiro, sai
pela porta da Rua Quarenta e Dois. De qualquer maneira, já fiz figura de
parvo.»
Seguidamente, deu o dinheiro à
moça. Esta devia ter adivinhado os seus pensamentos, pois olhou-o fixamente,
sacudindo a cabeça da forma estranha que lhe era peculiar.
~ Você não tem fé - disse-lhe -;
mas não importa. Como foi bom para mim, dir-lhe-ei onde vivi em Nova Iorque.
Você pode lá ir ...
Quando a rapariga desapareceu,
deixando-o na sala de espera, Jorge voltou para casa e cometeu a indiscrição de
nos contar tudo isto. É claro que o gozámos até mais não, por ter sido tão
inocente, e ele envergonhou-se um pouco da sua quixotada. Tanto mais que não
tinha nada de inocente.
Durante o jantar, Burgess falou
do assunto com ele.
- Conheço-as - disse Burgess
altivamente, - Aposto que lhe deu um beijo pouco entes de partir.
- Não - respondeu Jorge. - O que
é mais engraçado é que teria gostado. Qualquer um diria que por gratidão ...
- Bom, nesse caso, ficou com o
seu nome e endereço, prometendo-lhe devolver o dinheiro um dia.
- Totalmente ao contrário. Foi
ela quem me deu um endereço, onde disse que estava retida a bagagem. E eu,
quando reagi, fui lá, convencido de que não ia encontrar nada.
- E não encontrou?
Jorge encolheu os ombros.
-Estava lá tudo no vestíbulo. É
essa mala. Corresponde ao que ela disse.
- Confesso francamente - disse
Burgess - que nunca ouvi nada semelhante. Mas não há uma mulher, nem tão-pouco
um homem, que possa deixar a cidade com vinte dólares. De modo nenhum. A
explicação é que a rapariga deixou o bairro. Agora que arranjou quarto,
regressou. Aposto que, se estiver atento, acabará por encontrá-la, quase todas
as noites, na Sexta Avenida, junto à Rua Trinta e Três.
E apostaram cinco dólares, o que
achei disparate.
Passadas três semanas, Jorge
chega uma noite e dirige-se imediatamente a Burgess, dizendo: ,1
- Tome os cinco dólares!
- Porquê? - disse Burgess, que
se, esquecera completamente do assunto, tal como nós.
- Vi a rapariga - murmurou Jorge
sem olhar para ninguém. - Na Sexta Avenida e na Rua Trinta e Três.
- Conte-nos, pediu Burgess, que,
para além do mais, estava interessado.
E deste modo; soubemos a
continuação da história.
Jorge passara o feriado em Long
Island, com os Winslows, e tomara o comboio das oito e dez. Chegou à Estação da
Pensilvânia cerca das nove e um quarto e lembrou-se de ir a pé. E na esquina da
Rua Trinta e Três com a Sexta Avenida, ninguém diria, acabou por encontrar a
rapariga. Jorge disse que ia distraído quando alguém gritou:
- Vai a algum sítio em especial?
Jorge olhou e, subitamente,
reconheceu-a. A rapariga avançou e, dando meia volta, encarou com ele a meio do
passeio, pondo as mãos nas ancas com descaramento. Jorge sentiu-se furioso; mas
já tinha passado tanto tempo desde o ocorrido que decidiu mostrar-se
cinicamente divertido.
_ Vou consigo - disse,
tranquilamente, imitando-a, e aproximou-se dela. - Aonde quer ir?
Corno resposta, ela avançou,
agarrou-o pelos ombros e olhou-o nos olhos, abanando lentamente a cabeça.
_ Quero comer qualquer coisa -
disse apenas.
Jorge encolheu os ombros e
apontou o Restaurante Baber. A perspicaz observação da rapariga desanimou-o e,
enquanto caminhavam, olhou-a de soslaio. Achou-a mais magra, mais pobre, mais
pequena e mais mal vestida, mas com o mesmo ar de inocência. Isto era outra
prova dá sua culpabilidade. Porque não era possível que tivesse andado pela rua
durante cinco semanas e continuasse honrada. Tinha de estar marcada. E a sua
expressão cândida e imperturbável, enquanto caminhava ao seu lado, quando
qualquer outra teria começado imediatamente a justificar-se? (Jorge é um raro
conhecedor da natureza humana.)
_ É uma sorte tê-lo encontrado,
sabe? - disse ela.- Nâo comi nada em todo o dia.
_ Porque se alegra de me
encontrar a mim em especial? - disse Jorge com malícia. - Os outros não lhe
ligam?
_ Oh, sim! - respondeu ela
ponderadamente. - Encontro sempre quem me dê comer ou outras coisas, Mas não
senti apetite durante o dia. Estive na doca a ver os barcos. Aquilo parece uma
imagem do mundo. Todos os barcos trazem a marca de um sítio diferente.
Jorge decidiu vingar-se dela não
fazendo alusões ao motivo do anterior encontro: se a rapariga tivesse
consciência, isto servir-lhe-ia de castigo.
_ A propósito - disse ela,
recordando-se de repente-, você é meu amigo e não me importo de pedir: preciso
de dez dólares para pagar um vestido que encomendei. Como vê, trago a roupa
velha, que já não me cobre o suficiente.
- Caramba! - exclamou Jorge
atónito. - Viva o atrevimento!
- Sim; talvez tenha sido
descaramento encomendá-lo - concordou a rapariga.
Foi uma das boas resoluções de
Jorge! Quando o desconfiado mordomo do Baber se tranquilizou ao ver a brancura
do colarinho de Jorge, este sentiu-se totalmente devorado por uma
impaciente curiosidade. Que diria a rapariga? Como se explicaria? Ou confessaria
simplesmente o engano? Ou viria com outra história, tão impressionante e
incrível como a anterior? O objectivo das suas conjecturas estava a observar
tranquilamente a sala, satisfeita, serena e distante. Jorge não conseguiu
aguentar mais.
- Julguei que tinha regressado a
Chillicothe ... - disse-lhe ironicamente.
Ela observou-o e ele achou nos
seus olhos um ténue brilho de satisfação e uma leve sombra de tristeza.
- Tinha-me esquecido que você
queria informar-se disso primeiro. Bem, quando o deixei tomei o comboio ...
A rapariga fez uma pausa,
olhando-o nos olhos, e repetiu:
- Apanhei o comboio e fui até
Albany. A seguir encontrei um homem muito simpático que se sentou ao meu lado e
começámos a conversar. Era alto e ruivo, de bigode louro, muitíssimo mais velho
que você; chamava-se Tom, segundo disse. Ora bem, ia pensando comigo: «Vê lá
tu, regressares a casa só com a roupa que trazes em cima, depois de a tua mãe
trabalhar todo o Inverno para te vestir bem. Não devias ter saído de Nova
lorque sem levares as tuas coisas da pensão.» E como me preocupava voltar a
Chillicothe sem elas, disse-o a Tom. O homem respondeu-me: «Vamos descer em
Utica e levo-a para Nova lorque para lhe tirar a roupa da pensão.»
- Esta história ultrapassa. a
outra - disse Jorge.
- Vê? - exclamou radiante. -
Disse-lhe que tinha de ver o que me faltava em Nova lorque. E repare que Tom
apareceu quando precisava. Bem, voltámos os dois para cá e ele fez tudo o que
prometeu. Mas quando chegámos à pensão, a roupa tinha desaparecido. Disseram-me
que um jovem a fora buscar, e pensei logo em si. Mas não sabia, onde
encontrá-lo - acrescentou, sorrindo -, a não ser que fosse passear para diante
daquela casa onde o vi pela primeira vez. E Tom não queria que o fizesse. Sabe?
Tom portou-se muito bem comigo. Arranjou-me uma casa e pagou-me duas semanas de
aluguer antecipado. Comprou-me também alguns bonitos vestidos. Costumávamos
jantar juntos todas as noites.
- Que é que aconteceu a Tom? -
perguntou Jorge com um certo tom cínico.
Mas a rapariga não se deu por
achada e continuou, com a voz mais doce:
- Pobre Tom! O homem não
compreendia. Não sei porquê, mas parece-me que era impossível que ele
compreendesse. Creio que devia andar mal ou qualquer coisa no estilo. Porque,
depois de ter sido tão bom para mim durante todo este tempo, começou a ... bom,
calcula o que ele queria. Pobre Tom!
Oh! Essa tem muita piada! -
, exclamou Jorge, rindo-se.
A rapariga ficou a olhá-lo;
pensativamente. .
- Não sei se você compreenderá
também - disse. -. - Mas não é culpa sua, acredito. Tinha sido tão bom para mim
e eu fui tão ruim. Simplesmente, não compreendia. Mas, como é natural não podia
continuar ali nem podia continuar a usar os vestidos que me comprou. Por
isso, faz uma semana, uma noite fui-me embora.
- Onde é que você vive agora?
- Olhe neste momento não tenho
casa...,
- Como! - exclamou Jorge
sem querer. - Uma semana inteira? Mas ...
. A rapariga sorriu-se
misteriosamente (ou, se calhar, com malícia) . Quando anoitece - disse
calmamente - escolho uma casa de bom aspecto e toco. Quando abrem, digo que
estou cansada, que não tenho para onde ir e que procuro dormir ali.
_ E ... ? - disse Jorge, sem se
dar por achado..
_ Bem vê, só de longe em longe
não compreendem. Então, tenho de bater a outra porta.
Jorge ameaçou-a com o dedo
espetado sobre a mesa.
_ Não sei porque ouço as suas
histórias - disse severamente _; parece que acredito que você, no fundo tem de
ser boa. Vamos diga-me a verdade. Sei que e difícil a uma rapariga encontrar
emprego; mas já experimentou?
_ Se experimentei arranjar-
emprego? Eu? O quê? Não! _ respondeu admirada. - Não quero trabalhar aqui. O
que quero é conhecer coisas. E há tantos milhares de coisas para se ver e
sentir. Ontem fartei-me de andar, desde manhãzinha cedo até perto do meio-dia.
Subi por uma rua larga que escalava os telhados das casas, entre enormes e
oscilantes teias de aranha de aço, e, por fim, consegui contemplar uma grande
extensão da cidade, coberta de fumo, e que em todas as ruas brincavam crianças.
Veja! Tudo isto para conhecer, e eu não sabia!
Jorge diz que sentiu uma
sensação estranha e irracional: por momentos, acreditou, efectivamente, na
rapariga. Pareceu-Jhe descobrir um mundo que nunca tinha imaginado, um mundo do
qual se tinha excluído, sempre; porque sabia de mais.
A impressão era de mágoa. A
rapariga era como uma chamazinha branca que o queimava. E, na sua dor, viu-se
obrigado a confessar-lhe tudo isto; e ela não fez mais do que abanar a cabeça
solenemente:
- Não - respondeu-lhe. - Isso é
porque você conhece muito pouco.
Mas este estado de espírito
durou pouco tempo. Imediatamente, Jorge recobrou o ar normal e, depois de dizer
à rapariga tudo o que pensava dela, deixou-a.
Contudo, uma das coisas mais
raras da história foi a despedida dela. Jorge disse que a rapariga escutou tudo
o que lhe disse com a cabeça de lado, e quando terminou inclinou-se para a
frente, segurou as suas mãos entre as dela e apertou-as contra o peito. Os
olhos encheram-se de lágrimas, e no preciso instante em que julgava que ela ia começar
a chorar desatou a rir.
- Voltaremos a ver-nos -
disse-lhe com a sua voz aguda. -Vê-Io-ei quando precisar, ..
E então, indignado, Jorge voltou
para casa.
_ Bom - disse Burgess, dando
voltas à nota de cinco dólares, uma vez terminada a história. - Bom, gosto
tanto da história que estou disposto a pagar por tê-la ouvido. Quero pagar
cinco dólares desses dez ...
- Que dez? ~ perguntou Jorge.
_ Os dez que você lhe deu para
comprar o vestido. - E Burgess estendeu-lhe a nota.
Jorge ficou imóvel, cada vez
mais corado, e olhando para nós para ver se nos ríamos dele. Então, com a voz
presa, disse:
«Obrigado! », e guardou o
dinheiro.
1913.
in FILHA DA REVOLUÇAO E OUTROS
CONTOS
~~~--------
aqui pode ler o conto que deu o
nome à colectânea
http://www.esquerda.net/media/a_filha_da_revolucao_j_reed.pdf
Sem comentários:
Enviar um comentário