(…) Nos dias da sua estreia na profissão, Mario Conde evitava ouvir as histórias das bibliotecas que lhe caíam nas mãos. Os seus olhos de investigador, que o obrigaram a viver diariamente entre processos sórdidos, não tinham conseguido torná-lo imune aos pesares da alma e, quando realizou o seu desejo e deixou de ser polícia, descobriu, dolorosamente, que o lado obscuro da vida se empenhava em persegui-lo, pois cada biblioteca à venda era sempre um romance de amor com um final infeliz, cujo dramatismo não dependia da quantidade ou da qualidade dos livros sacrificados, mas dos caminhos através dos quais aqueles objectos tinham chegado a uma determinada casa e as razões terríveis pelas quais saíam para o matadouro do mercado. No entanto Conde aprenderia rapidamente que ouvir era parte essencial do negócio, porque a maior parte dos proprietários se sentia na necessidade expiatória de comentar os motivos da sua opção, engalanando-a algumas vezes, outras desnudando-a sem piedade, como se daquele acto de confissão dependesse, no mínimo, a salvação de uma famélica dignidade.
Mais tarde, com as feridas cicatrizadas, Conde acabou por descobrir o lado romântico da sua condição de ouvidor - gostava de qualificar-se com essa palavra - e começou a calibrar as possibilidades literárias daqueles relatos, encarando-os muitas vezes como material para os seus sempre adiados exercícios estéticos, ao mesmo tempo que a sua sagacidade se aguçava até ao requinte de se sentir capaz de determinar se o narrador era sincero ou se não passava de um pobre embusteiro, obrigado a elaborar uma fraude para se sentir melhor consigo próprio ou apenas para tentar tornar a mercadoria mais atractiva.
(…) . Com um vigor inesperado, Dionisio empurrou as portas e Conde perdeu de vista a sua própria imagem e as suas reflexões fisiológicas ao ser assaltado por uma violenta inquietação no peito porque, diante dos seus olhos, se erguiam agora umas soberbas estantes de madeira, protegidas por portas envidraçadas, onde repousavam, trepando pelas paredes em direcção ao tecto altíssimo, centenas, milhares de livros de lombadas escuras, nas quais ainda conseguiam brilhar as letras douradas da sua identidade, triunfantes sobre a maldita humidade da ilha e da fadiga do tempo.
Paralisado diante daquele prodígio, consciente do ritmo irregular da sua respiração, Conde duvidou que tivesse forças mas atreveu-se a dar três passos cautelosos. Quando transpôs o umbral, descobriu, já totalmente estupefacto, que a acumulação de estantes repletas de volumes se estendia ao longo dos lados do aposento.
- Diga-me, o que acha? - insistiu o homem, interpondo-se no campo visual de Conde.
- Fabuloso - conseguiu finalmente dizer, pois a comoção só lhe permitia suspeitar que estava, sem dúvida alguma, diante de um veio extraordinário, desses que se procuram sempre mas só se encontram uma vez na vida. Ou nunca. A sua experiência gritava-lhe que ali, certamente, haveria surpresas inimagináveis porque, se apenas cinco por cento daqueles volumes chegassem a ter um valor especial, estava diante de vinte, trinta possíveis tesouros bibliográficos, capazes por si só de matar - ou, pelo menos, de atordoar por um bom período de tempo - a fome dos irmãos Ferrero e a sua.
Quando recuperou a convicção de que podia mover-se, Conde aproximou-se da estante que o desafiava em frente e, sem pedir autorização, abriu as portinhas de vidro. Examinou algumas lombadas ao acaso, esquadrinhando entre os livros colocados à altura dos seus olhos, e descobriu o forro de cabedal avermelhado das Crónicas de la guerra de Cuba, de Miró Argenter, na edição princeps de 1911 e, depois de limpar o suor das mãos, tirou o volume, para ver que estava assinado e dedicado pelo escritor-guerreiro «Ao meu grande amigo, meu querido general Serafín Montes de Oca». Junto das Crónicas de Miró, os dois tomos contundentes do perseguido Índice alfabético y de defunciones del ejército libertador de Cuba, do major-general Carlos Roloff, na sua rara e solitária impressão havanesa de 1901 e, com um tremor crescente nas mãos, Conde atreveu-se a tirar do lugar contíguo os tomos dos Apuntes para la historia de las letras y de la instrucción pública de la Isla de Cuba,o clássico de Antonio Bachiller y Morales, publicado em Havana entre 1859 e 1861. Com um dedo cada vez mais lento, Conde foi acariciando a lombada leve do romance El cafetal, de Domingo Malpica de la Barca, impresso na tipografia havanesa de Los Nifios Huérfanos em 1890, e o lombo musculado, de pele agradável, dos cinco volumes da Historia de la esclavitud de José Antonio Saco, na edição da imprensa Alfa de 1936, até que, como um possesso, agarrou no livro seguinte, em cuja lombada estavam gravadas apenas as iniciais C. V. Quando o abriu sentiu como as pernas lhe fraquejavam, pois tratava-se da primeira edição de La joven de la flecha de oro, o romance de Cirilo Villaverde, naquela impressão inicial e mítica feita em Havana pela famosa tipografia de Oliva, em 1842 ...
Conde teve a nítida sensação de que aquele aposento era como um santuário perdido no tempo e, pela primeira vez, pensou se não estaria a cometer um acto de profanação. Com delicadeza, devolveu cada um dos livros ao lugar e respirou o odor conhecido que saía da estante aberta. Inalou várias vezes até encher os pulmões e só quando se sentiu embriagado fechou as portas. Tentando esconder o seu desassossego, voltou-se para os irmãos Ferrero, em cujos rostos encontrou uma chama de esperança, decidida a impor-se aos desastres mais visíveis da vida.
- Por que razão querem vender estes livros? - acabou por perguntar, contra os seus princípios e procurando já um caminho para a história daquela biblioteca bastante singular. Ninguém se desfazia assim, consciente e repentinamente, de um tesouro como aquele (do qual apenas entrevira algumas jóias prometedoras), a menos que, além da fome, houvesse outra razão, e Conde sentiu que precisava de conhecê-la.
- É uma longa história... - hesitou Dionisio Ferrero, pela primeira vez desde que se encontrara com Conde, recuperando imediatamente o seu aprumo quase marcial. - Ainda não sabemos se queremos vendê-los. Isso depende do que nos oferecer. No negócio das antiguidades há muito bandido, você sabe ... Um dia destes passaram dois por aqui. Queriam comprar-nos as janelas com os vitrais e ofereciam-nos, os grandes descarados, trezentos dólares por cada uma ... Pensam que somos imbecis ou que estamos a morrer de fome ...
(…). E, para dizer a verdade, faz-nos falta algum dinheiro - largou Dionisio, estendendo a mão na direcção dos livros. - Você sabe' como estão as coisas e a reforma não dá nem ...
Conde confirmou, sim, sabia. Seguindo a mão do homem dirigiu os olhos para as prateleiras repletas de livros e comprovou como o pressentimento de estar à beira de alguma coisa definitivamente extraordinária não o abandonava, continuava ali, imperturbável, pressionando-o debaixo do mamilo, humedecendo-lhe as mãos, e perguntou a si próprio porquê tanta veemência. Se já sabia que estava rodeado de livros valiosos, o que poderia continuar a transtorná-lo com esta intensidade? Seria pela existência possível de' um livrodemasiado inesperado? Estaria ali, esquecido e feliz, o livro impossível que qualquer bibliófilo sonha encontrar alguma vez? Devia ser isso, tinha de ser, disse para consigo, e se fosse essa a razão só teria remédio quando tivesse revistado todas as estantes de cima a baixo.
- Desculpem a minha curiosidade, mas é que ... Há quanto tempo ninguém toca nesta biblioteca? - perguntou então.
- Há quarenta ... quarenta e três anos - precisou a mulher e Conde voltou a cabeça, impelido pela incredulidade.
Padura, Leonardo – A Neblina do Passado, Ed Asa, Lxa 2008
Sem comentários:
Enviar um comentário