segunda-feira, 11 de julho de 2016

Hugo Pratt - o desejo de ser inútil




SOB O SIGNO DO GATO

1. - Uma infância veneziana (1927-1937)


- Qual das suas vidas nos vai contar?

- Conheço treze maneiras de contar a minha vida. Hoje, escolho a sétima, por amor ao número sete, que é também o do gato: o gato tem sete vidas, e para conhecer a sétima tem pois que morrer seis vezes. Há quem diga que os gatos têm nove vidas, mas a versão segundo a qual eles têm sete parece-me superior, porque se trata de um número cabalístico: o das sete portas, das sete chaves, cuja última abre o paraíso terrestre. E se abordarmos a história da minha vida pela via do esoterismo, deverei começar por precisar que sou do signo dos Gémeos. Cinco mil anos decorreram desde o baptismo das constelações zodiacais, e a configuração do céu mudou, mas parece-me preferível falar como se estivéssemos ainda no tempo dos caldeus. Tenho 13 maneiras de contar a minha vida e não sei se há uma verdadeira, ou sequer se alguma é mais verdadeira do que outra. Pessoa dizia que «temos todos duas vidas: a verdadeira, que é a que sonhamos na infância; e a falsa, que é a que vivemos em convivência com os outros»; e essa que sonhamos é a vida onde queremos viver, e talvez a mais autêntica. Como para Calderón, para mim, a verdadeira vida é um sonho, embora se possa também dizer que nasci em Itália, em Rimini, a 15 de Junho de 1927.


(…)

7. - Et in Helvetia, Hugo (1984-1991)

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- Entre os seus antepassados e os seus descendentes, um ponto comum: cosmopolitismo.

- É verdade, o destino dos Pratt parece situar-se para lá das fronteiras, das raças, das religiões, das línguas. Foi sempre assim. Uma anedota, a propósito. O actor Boris Karloff, o intérprete no cinema de Frankenstein e do doctor Fu-Manchu, chamava-se na realidade Pratt. Recentemente, um dos seus descendentes encontra em Buenos Aires o meu filho Lucas e diz-lhe: «Parece que temos um primo italiano que é desenhador!»... Desde o falecimento de minha mãe e, pouco depois, da minha tia Irma, já não tenho família em Veneza, e agora sou o mais velho. Nenhum dos meus descendentes tem a minha nacionalidade, nenhum sequer é de cultura italiana. Quanto às mães dos meus filhos, uma é servo-croata, outra belga da Argentina, e as outras duas são brasileiras, sendo que, para uma delas, essa nacionalidade não significa nada; duas são de raça branca, uma é afro-americana, outra é ameríndia; nenhuma tem a mesma língua materna. Tenho quatro netos, dois de Lucas e dois de Tebocua: nenhum entende o italiano. Os filhos de Lucas falam o espanhol e o inglês americano - a língua da mãe - e os filhos de Tebocua um dialecto gé.

Entre os meus antepassados havia também uma grande diversidade linguística. O meu pai falava fluentemente o francês, que aprendera com o pai dele. Dirigia-se muitas vezes a mim em francês ou em inglês. A minha tia Eglantina exprimia-se também em francês. Quando eu era criança, falava-se em Veneza uma variedade de italiano bastante diferente do italiano oficial, e essa língua - na qual o meu avô escrevia os seus poemas - é a primeira que falei. Ainda hoje, se encontro um veneziano da minha idade, utilizamos espontaneamente o dialecto veneziano, e mesmo quando surge alguém de outra província, custa-nos abandoná-lo. Como a minha família, os meus amigos estão muito dispersos, e pelo mundo tenho antigos companheiros que gosto de reencontrar. Claro, desde a época em que estávamos juntos, cada um seguiu o seu próprio itinerário, e depois. com a idade, tomámo-nos maníacos, fala-se demasiado dos problemas pessoais, da saúde, dos filhos. Do que eu gosto, é de beber o meu whisky tranquilo, na companhia de um velho amigo que, também ele aprecie o whisky. Observamo-nos, vamos bebendo em silêncio, cada um sabendo que o outro se vai perdendo nas suas recordações.


- Qual é a visão que tem da história da sua vida?

- Eu sou testemunha de uma época ultrapassada, que conta histórias povoando-as com as suas experiências, as suas recordações, as fábulas que lhe foram transmitidas na infância. A minha vida está cada vez mais desligada do presente. Em Córdova, desde 1989, na sequência de uma exposição e do portfolio Corto en Cordoba, editado pelos meus amigos italianos da libraria parisiense Tour de Babel, o município cede-me uma residência muito antiga da Juderia, o velho bairro judeu. Lá organizo festas, reunindo todo o tipo de amigos, desde os santos ébrios às putas moralizantes: gosto de reunir gente diversa, e de provocar assim situações originais. Convido os ciganos, que dançam e tocam uma música que remonta à Idade Média. Em Córdova, não há como os ciganos para poder dar um espectáculo de romanças sefarditas.

Algumas das pessoas que convido são consideradas importantes: homens de negócios apressados, editores sempre entre dois aviões, entre dois contratos. Observam e escutam esse espectáculo, e dizem-me que aquela é que é a verdadeira vida. Eles começam a interrogar-se sobre o seu modo de vida, sobre o interesse real do que fazem, e já não querem saber do trabalho. Essas festas são uma viagem ao passado, uma viagem estética em busca da beleza perdida. E graças a essas festas, a beleza do passado faz-se de novo presente. Nessa música sefardita, no olhar dessa bela judia renasce a Juderia de Córdoba. Nessas ciganas de sangue judaico, é Rebeca que está de regresso a Córdova, e Rebeca é sempre bela.

Convoco também as descendentes dos Almorávidas berberes, elas vestem-se como outrora, elas dançam, elas cantam, e através delas Fátima é sempre bela. Lá fora, está muito calor, mas aqui o pátio cheio de sombra está florido todo o ano. Ouve-se o repuxo de água, um cigano toca guitarra, uma nuvem passageira confere uma nova tonalidade aos azulejos. As rolas levantam voo das laranjeiras que rodeiam a mesquita. Essa maravilha de pedra é trabalhada como um bordado, cujos motivos fossem fechaduras: falta apenas a chave para abrir a porta do paraíso muçulmano. No pavimento do pátio - um tapete mineral - as jovens dançam, e Rebeca e Fátima são sempre belas.  

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7 PORTAS PARA UM UNIVERSO



1.      - 1ª porta ou a viagem do peregrino

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- Utilizou por várias vezes a palavra «peregrinação»: as suas viagens não são, como se poderia crer, as de um aventureiro, mas as de um peregrino.

- Há efectivamente em todas as minhas viagens esse aspecto «pilgrim's progress», para retomar o título do livro de Bunyan ... Assim como um muçulmano, por exemplo, sente a necessidade de durante a sua vida visitar diversos lugares importantes para ele, como Meca ou Kairouan, eu senti a necessidade de ir aos lugares que estão associados ao meu mundo interior. Porquê essa necessidade? Sem dúvida pelo desejo de confirmar, de prestar homenagem, e pela minha educação romântica.

Se viajei muito, foi porque os meus pais, os livros, os filmes, me iniciaram nisso desde a infância. Tenho horror, evidentemente, às viagens organizadas, às visitas colectivas em rebanho turístico. Preciso de estar só. Não suporto sequer as visitas guiadas e pagas antecipadamente ao Crazy Horse ou ao Folies-Bergêre, por exemplo ... A maior parte das minhas viagens não deviam nada ao acaso, visavam objectivos precisos. A minha geografia está sempre ligada a um mundo literário e fantástico. Para mim, uma viagem é uma busca desencadeada por uma leitura. Se eu for à nascente do Nilo. será com os romances de Rider Haggard ou os relatos das explorações de Speke e Burton. Serão eles os meus guias turísticos. A minha definição da viagem ideal, é Schliemann indo a Hissarlik para aí encontrar Tróia. As minhas viagens foram para mim ocasião de ir a um lugar que já existia na minha imaginação. Sempre andei' procura das origens. Quando aos dez anos partia para África, a minha esperança era de aí encontrar os lugares da banda desenhada Tim Tyler's Luck. E hoje, não poderia ir a qualquer lado, aqui, em Grandvaux, sem procurar onhecer o passado desse lugar, sem me perguntar o que terá havido no local onde agora é a minha casa. Talvez no futuro, alguém, ao ver essa casa, diga que era a de um conhecido desenhador de finais do século vinte ...

Eu vejo-me como um elo de diferentes cadeias que percorrem tempo, estabelecendo uma continuidade desde as origens até agora. A minha relação com Stevenson - ou com outros -, é isso. Oumais belo, mais poético do que o elo de uma cadeia, sou um ponto da circunferência de uma roda. Gosto do círculo, essa forma perfeita. Em criança, brincava de bom grado com o arco. Uma linda menina que faz correr um arco com uma haste é um espectáculo interessante. Uma das minhas mais antigas recordações é de uma menina, mais velha do que eu - eu teria talvez quatro anos - que empurrava assim um arco. Que bela visão ...

- Dizia você que a sua família o tinha iniciado nas viagens?

- Eu aludia à decisão do meu pai de me levar para a Etiópia e a diversas pequenas viagens efectuadas com ele durante a minha estadia por lá. Por exemplo, quando eu tinha onze anos, levou-me a Dirédaoua, e encontrámos Henry de Monfreid, que ele conhecia bem. Lembro-me de um homem grande e esguio, afável, que tinha uma loja de material eléctrico. Na época eu não sabia que ele fizera contrabando e que era conhecido como escritor. Hoje, com vários estudos publicados sobre ele, Henry de Monfreid é alguém de muito controverso, mas já na minha infância assim era: eu apercebera-me que muitas pessoas o detestavam. Quanto aos seus livros, acho-os interessantes, pois tratam temas muito pouco conhecidos, se bem que, em La Voile carrée, Vladimir Pozner lhe tenha mostrado essa via. Quanto à relação entre Henry de Monfreid e Pierre Teilhard de Chardin, ela deixa-me perplexo: porque se interessaria esse paleontólogo e teólogo católico por tal aventureiro? Dá que pensar, o que versariam as suas discussões quando se encontravam ambos em Djibouti, em 1928-1929 ... Ideologicamente, não me sinto próximo de Henry de Monfreid: ele era o cronista cúmplice do marechal Graziani, era contra Hailé Sélassié, foi recebido por Mussolini. Mas o aventureiro intriga-me, e por ocasião de um dos meus regressos ao Corno de África, fui pois visitar os lugares onde ele viveu: Dirédaoua, Djibouti e Obock, onde a sua grande casa é agora ocupada por religiosas: no final da minha peregrinação encontrei freiras.

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7. – Sétima porta ou o desejo de ser inútil

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- No entanto, desde Goethe, que gostava das «histórias com gravuras» de Tõpffer, fundador do género, a Michel Serres, que termina seu novo livro Le Tiers-Instruit com um retrato de Hergé, houve grandes intelectuais que se interessaram pela banda desenhada.

- Sim, mas entre os intelectuais, como em toda a parte, o que lornina é o conformismo. E se certos intelectuais de renome, como Umberto Eco ou Jean Markale, escreveram prefácios para os meus álbuns, é porque têm bastantes pontos em comum comigo. Nós somos mais ou menos da mesma geração, temos uma mentalidade de investigador, lemos bandas desenhadas de aventuras na nossa juventude - ao passo que a geração de 1968 privilegiou as bandas desenhadas humorísticas e satíricas. E como eu, Markale e Eco gostam de explorar mundos bastante alheios ao que se chama o mundo da realidade. Jean Markale vive num sonho céltico, entre o mágico Merlin e a fada Morgana, e por isso não é muito estranho que ele se tenha interessado por As Célticas. Umberto Eco também se passeia por mundos esotéricos, em busca de mitos. Gostei evidentemente dos seus romances, O Nome da Rosa e O Pêndulo de Foucault, mas também das suas apostilas [Postille al Nome de la Rosa/Porquê «O nome da rosa?»], em que nos dá uma ideia do trabalho que efectuou. O Pêndulo de Foucault, mais ainda que O Nome da Rosa, foi criticado porque nele se apresenta um mundo que nem sempre é directamente abordável pelos leitores, mas a meu ver caberia aos leitores documentarem-se: Umberto Eco convida os leitores para o seu mundo, não tem nada que o mu- dar para o tornar mais acessível. Tenho relações cordiais com Markale e Eco, que também não gostam de viver apenas no presente das modas e dos seus preconceitos, e gosto do que eles fazem, mas não me parecem representativos dos intelectuais em geral, nem do que os intelectuais pensam da banda desenhada.

- A sua casa não está mobilada como uma verdadeira casa, é uma biblioteca onde instalou algumas camas, algumas mesas e algumas cadeiras ...

- É exactamente isso. Neste momento encontramo-nos na sala dos livros sobre a América do Norte. Eu moro numa biblioteca, é a realização de um dos sonhos de Borges. Mas não precisei para isso de me tomar bibliotecário: cheguei ao mesmo resultado fazendo o inverso, criando uma biblioteca à minha volta. Não li integralmente todos os meus livros, mas folheei-os a todos, e se me falta uma informação, posso ir directamente ao livro que ma prestará. A minha experiência com os livros permite-me ir directamente ao essencial. A minha documentação, nomeadamente iconográfica, é tal que já não tenho necessidade de fazer pesquisas nas grandes bibliotecas do mundo. Recentemente, escrevi para o meu amigo desenhador Manara uma história sobre um gaúcho na Argentina aquando da invasão inglesa de 1806: tinha comprado há um ano todas as obras que tratam dessa questão. Só me faltam umas férias para poder ler os meus livros tranquilamente: antigamente, consagrava o meu tempo livre à pesquisa de livros, agora tenho os livros, mas falta-me tempo livre. Posso deixar um livro dormir anos numa prateleira, mas um belo dia preciso dele; reencontro-o, e até me parece que me censura por tê-lo abandonado durante tanto tempo. Eu sou o nómada da minha biblioteca. Por vezes, num velho livro, descubro um papel que alguém deixou, uma flor seca. Não me desagradaria acabar assim, seco e espalmado entre as páginas de um livro. Claro, eu não pareceria uma malva-rosa, talvez até fosse assustador, mas gostaria de acabar assim.   

O que o guiou na sua vida?


- A curiosidade intelectual. Eu tenho curiosidade de conhecer o amanhã. A minha vida está cheia de surpresas e de prazeres. As minhas pesquisas em diversos domínios abriram-me mundo e a mim mesmo. Quando passeio por Aigues- Mortes e vejo uma ruela que se chama rue de l' Amour-Aveugle [Rua Amor Cego], sinto a necessidade de saber porquê ... e acabo descobrir que outrora havia ali um bordeI onde trabalhavam raparigas cegas. Dediquei assim uma grande parte da minha vida a ir de procura em procura, de viagem em viagem e de livro em livro. Alguns passaram assim toda a sua vida, e eu compreendo-os. E depois um dia depara-se com uma falha, o documento: por exemplo, queimado na Idade Média, e é então que alguém como eu pode ocupar esse vazio criando uma história: a sós comigo mesmo, dou a minha interpretação, e graças à imaginação saio do círculo em que todos esses livros me tinham encerrado.






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