SOB O SIGNO DO GATO
1. - Uma infância veneziana (1927-1937)
- Qual das suas vidas nos vai contar?
- Conheço treze maneiras de contar a minha vida. Hoje, escolho
a sétima, por amor ao número sete, que é também o do gato: o gato tem sete
vidas, e para conhecer a sétima tem pois que morrer seis vezes. Há quem diga
que os gatos têm nove vidas, mas a versão segundo a qual eles têm sete
parece-me superior, porque se trata de um número cabalístico: o das sete
portas, das sete chaves, cuja última abre o paraíso terrestre. E se abordarmos
a história da minha vida pela via do esoterismo, deverei começar por precisar
que sou do signo dos Gémeos. Cinco mil anos decorreram desde o baptismo
das constelações zodiacais, e a configuração do céu mudou, mas parece-me
preferível falar como se estivéssemos ainda no tempo dos caldeus. Tenho 13
maneiras de contar a minha vida e não sei se há uma verdadeira, ou sequer se
alguma é mais verdadeira do que outra. Pessoa dizia que «temos todos duas
vidas: a verdadeira, que é a que sonhamos na infância; e a falsa, que é a
que vivemos em convivência com os outros»; e essa que sonhamos é a vida onde
queremos viver, e talvez a mais autêntica. Como para Calderón, para mim, a
verdadeira vida é um sonho, embora se possa também dizer que nasci em Itália,
em Rimini, a 15 de Junho de 1927.
(…)
7. - Et in Helvetia, Hugo (1984-1991)
(…)
- Entre os seus antepassados e os seus descendentes, um ponto comum: o cosmopolitismo.
- É verdade, o destino dos Pratt parece situar-se para
lá das fronteiras, das raças, das religiões, das línguas.
Foi sempre assim. Uma anedota, a propósito. O actor
Boris Karloff, o intérprete no cinema de Frankenstein e do
doctor Fu-Manchu, chamava-se na realidade Pratt. Recentemente, um
dos seus descendentes encontra em Buenos Aires o meu filho
Lucas e diz-lhe: «Parece que temos um primo italiano que é desenhador!»...
Desde o falecimento de minha mãe e, pouco depois, da
minha tia Irma, já não tenho família em Veneza, e agora sou o mais velho. Nenhum
dos meus descendentes tem a minha nacionalidade, nenhum sequer
é de cultura italiana. Quanto às mães dos meus
filhos, uma é servo-croata, outra belga da Argentina, e as outras duas
são brasileiras, sendo que, para uma delas, essa nacionalidade não significa
nada; duas são de raça branca, uma é afro-americana, outra é ameríndia; nenhuma
tem a mesma língua materna. Tenho quatro netos, dois de Lucas
e dois de Tebocua: nenhum entende o italiano. Os filhos de Lucas
falam o espanhol e o inglês americano - a língua da mãe - e os filhos de
Tebocua um dialecto gé.
Entre os meus antepassados havia também uma
grande diversidade linguística. O meu pai falava fluentemente o francês, que
aprendera com o pai dele. Dirigia-se muitas vezes a mim em
francês ou em inglês. A minha tia Eglantina exprimia-se
também em francês. Quando eu era criança, falava-se em Veneza uma
variedade de italiano bastante diferente do italiano oficial, e essa
língua - na qual o meu avô escrevia os seus poemas - é a
primeira que falei. Ainda hoje, se encontro um veneziano da minha
idade, utilizamos espontaneamente o dialecto veneziano, e mesmo
quando surge alguém de outra província, custa-nos abandoná-lo. Como
a minha família, os meus amigos estão muito dispersos, e pelo
mundo tenho antigos companheiros que gosto de reencontrar. Claro, desde
a época em que estávamos juntos, cada um seguiu o seu
próprio itinerário, e depois. com a idade, tomámo-nos maníacos, fala-se
demasiado dos problemas pessoais, da saúde, dos filhos.
Do que eu gosto, é de beber o meu whisky tranquilo,
na companhia de um velho amigo que, também ele aprecie o whisky. Observamo-nos, vamos bebendo
em silêncio, cada um sabendo que o outro se vai perdendo nas
suas recordações.
- Qual é a visão que tem da história da sua vida?
- Eu sou testemunha de uma época ultrapassada, que conta histórias povoando-as
com as suas experiências, as suas recordações, as fábulas que lhe
foram transmitidas na infância. A minha vida está cada vez mais desligada do
presente. Em Córdova, desde 1989, na sequência de uma exposição
e do portfolio Corto en Cordoba, editado pelos meus amigos italianos da
libraria parisiense Tour de Babel, o município cede-me uma
residência muito antiga da Juderia, o velho bairro
judeu. Lá organizo festas, reunindo todo o tipo de amigos, desde os
santos ébrios às putas moralizantes: gosto de reunir gente diversa,
e de provocar assim situações originais. Convido os ciganos, que dançam e tocam uma
música que remonta à Idade Média. Em Córdova, não há como os
ciganos para poder dar um espectáculo de romanças sefarditas.
Algumas das pessoas que convido são
consideradas importantes: homens de negócios apressados, editores sempre
entre dois aviões, entre dois contratos. Observam e escutam
esse espectáculo, e dizem-me que aquela é que é a verdadeira
vida. Eles começam a interrogar-se sobre o seu modo de
vida, sobre o interesse real do que fazem, e já não querem saber
do trabalho. Essas festas são uma viagem ao passado, uma viagem
estética em busca da beleza perdida. E graças a essas
festas, a beleza do passado faz-se de novo presente. Nessa música
sefardita, no olhar dessa bela judia renasce a Juderia de Córdoba. Nessas ciganas de sangue
judaico, é Rebeca que está de regresso a Córdova, e Rebeca
é sempre bela.
Convoco também as descendentes dos Almorávidas berberes, elas
vestem-se como outrora, elas dançam, elas cantam, e através
delas Fátima é sempre bela. Lá fora, está muito
calor, mas aqui o pátio cheio de sombra está florido todo
o ano. Ouve-se o repuxo de água, um cigano toca guitarra, uma nuvem
passageira confere uma nova tonalidade aos azulejos. As rolas levantam voo
das laranjeiras que rodeiam a mesquita. Essa maravilha
de pedra é trabalhada como um bordado, cujos motivos fossem
fechaduras: falta apenas a chave para abrir a porta do paraíso
muçulmano. No pavimento do pátio - um tapete mineral - as jovens
dançam, e Rebeca e Fátima são sempre belas.
(...)
(...)
7 PORTAS PARA UM UNIVERSO
1. - 1ª porta ou a
viagem do peregrino
(…)
- Utilizou por várias vezes a palavra «peregrinação»: as suas
viagens não são, como se poderia crer, as de um aventureiro, mas as
de um peregrino.
- Há efectivamente em todas as minhas viagens esse aspecto «pilgrim's
progress», para retomar o título do livro de Bunyan ... Assim como um
muçulmano, por exemplo, sente a necessidade de durante a sua vida
visitar diversos lugares importantes para ele, como Meca ou Kairouan, eu
senti a necessidade de ir aos lugares que estão associados ao meu mundo
interior. Porquê essa necessidade? Sem dúvida pelo desejo de
confirmar, de prestar homenagem, e pela minha educação romântica.
Se viajei muito, foi porque os meus pais, os livros, os
filmes, me iniciaram nisso desde a infância. Tenho horror,
evidentemente, às viagens organizadas, às visitas colectivas em rebanho
turístico. Preciso de estar só. Não suporto sequer as visitas guiadas e pagas antecipadamente
ao Crazy Horse ou ao Folies-Bergêre, por exemplo ... A maior parte das minhas
viagens não deviam nada ao acaso, visavam objectivos precisos. A minha
geografia está sempre ligada a um mundo literário e fantástico. Para mim,
uma viagem é uma busca desencadeada por uma leitura. Se eu for à
nascente do Nilo. será com os romances de Rider Haggard ou os relatos das
explorações de Speke e Burton. Serão eles os meus guias turísticos. A minha
definição da viagem ideal, é Schliemann indo a Hissarlik para aí encontrar
Tróia. As minhas viagens foram para mim ocasião de ir a um lugar que
já existia na minha imaginação. Sempre andei' procura das origens. Quando
aos dez anos partia para África, a minha esperança era de aí encontrar os
lugares da banda desenhada Tim Tyler's Luck. E hoje, não
poderia ir a qualquer lado, aqui, em Grandvaux, sem procurar onhecer o
passado desse lugar, sem me perguntar o que terá havido no local onde agora é a
minha casa. Talvez no futuro, alguém, ao ver essa casa, diga que era a de um
conhecido desenhador de finais do século vinte ...
Eu vejo-me como um elo de diferentes cadeias que percorrem
tempo, estabelecendo uma continuidade desde as origens até agora. A minha
relação com Stevenson - ou com outros -, é isso. Ou, mais
belo, mais poético do que o elo de uma cadeia, sou um ponto da circunferência
de uma roda. Gosto do círculo, essa forma perfeita. Em criança, brincava de bom
grado com o arco. Uma linda menina que faz correr um arco com uma haste é um
espectáculo interessante. Uma das minhas mais antigas recordações é de uma
menina, mais velha do que eu - eu teria talvez quatro anos - que
empurrava assim um arco. Que bela visão ...
- Dizia você que a sua família o tinha iniciado nas viagens?
- Eu aludia à decisão do meu pai de me levar para a Etiópia e
a diversas pequenas viagens efectuadas com ele durante a minha estadia por lá.
Por exemplo, quando eu tinha onze anos, levou-me a Dirédaoua, e
encontrámos Henry de Monfreid, que ele conhecia bem. Lembro-me de um homem
grande e esguio, afável, que tinha uma loja de material eléctrico. Na época eu
não sabia que ele fizera contrabando e que era conhecido como escritor. Hoje,
com vários estudos publicados sobre ele, Henry de Monfreid é alguém de muito
controverso, mas já na minha infância assim era: eu apercebera-me que muitas
pessoas o detestavam. Quanto aos seus livros, acho-os interessantes, pois
tratam temas muito pouco conhecidos, se bem que, em La Voile carrée, Vladimir
Pozner lhe tenha mostrado essa via. Quanto à relação entre Henry de Monfreid e
Pierre Teilhard de Chardin, ela deixa-me perplexo: porque se interessaria esse
paleontólogo e teólogo católico por tal aventureiro? Dá que pensar, o que
versariam as suas discussões quando se encontravam ambos em Djibouti, em
1928-1929 ... Ideologicamente, não me sinto próximo de Henry de Monfreid: ele
era o cronista cúmplice do marechal Graziani, era contra Hailé Sélassié, foi
recebido por Mussolini. Mas o aventureiro intriga-me, e por ocasião de um dos
meus regressos ao Corno de África, fui pois visitar os lugares onde ele viveu:
Dirédaoua, Djibouti e Obock, onde a sua grande casa é agora ocupada por
religiosas: no final da minha peregrinação encontrei freiras.
(...)
7. – Sétima porta ou o desejo de ser inútil
(…)
- No entanto, desde Goethe, que gostava das «histórias
com gravuras» de Tõpffer, fundador do género, a Michel Serres, que
termina o seu novo livro Le Tiers-Instruit com um
retrato de Hergé, houve grandes intelectuais que se interessaram pela banda desenhada.
- Sim, mas entre os intelectuais, como em toda
a parte, o que lornina é o conformismo. E se certos intelectuais de
renome, como Umberto Eco ou Jean Markale, escreveram prefácios para os
meus álbuns, é porque têm bastantes pontos em comum comigo. Nós
somos mais ou menos da mesma geração, temos uma mentalidade de investigador, lemos bandas desenhadas de
aventuras na nossa juventude - ao passo que a geração
de 1968 privilegiou as bandas desenhadas humorísticas e
satíricas. E como eu, Markale e Eco gostam de explorar mundos bastante
alheios ao que se chama o mundo da realidade. Jean Markale vive num sonho
céltico, entre o mágico Merlin e a fada Morgana, e
por isso não é muito estranho que ele se tenha interessado por As
Célticas. Umberto Eco também se passeia por mundos esotéricos,
em busca de mitos. Gostei evidentemente dos seus romances, O Nome da
Rosa e O Pêndulo de Foucault, mas também
das suas apostilas [Postille al Nome de la Rosa/Porquê «O nome da
rosa?»], em que nos dá uma ideia do trabalho que efectuou. O Pêndulo
de Foucault, mais ainda que O Nome da Rosa, foi criticado
porque nele se apresenta um mundo que nem sempre é directamente
abordável pelos leitores, mas a meu ver caberia aos leitores documentarem-se: Umberto
Eco convida os leitores para o seu mundo, não tem nada que o
mu- dar para o tornar mais acessível. Tenho relações cordiais com
Markale e Eco, que também não gostam de viver apenas no presente
das modas e dos seus preconceitos, e gosto do que eles fazem, mas não
me parecem representativos dos intelectuais em geral, nem do que
os intelectuais pensam da banda desenhada.
- A sua casa não está mobilada como uma verdadeira
casa, é uma biblioteca onde instalou algumas camas, algumas mesas e
algumas cadeiras ...
- É exactamente isso. Neste momento
encontramo-nos na sala dos livros sobre a América do
Norte. Eu moro numa biblioteca, é a realização de um
dos sonhos de Borges. Mas não precisei para isso de me tomar
bibliotecário: cheguei ao mesmo resultado fazendo o inverso, criando uma
biblioteca à minha volta. Não li integralmente todos os meus livros, mas folheei-os
a todos, e se me falta uma informação, posso ir
directamente ao livro que ma prestará. A minha experiência com os livros permite-me
ir directamente ao essencial. A minha documentação, nomeadamente
iconográfica, é tal que já não tenho necessidade de fazer pesquisas nas
grandes bibliotecas do mundo. Recentemente, escrevi para o
meu amigo desenhador Manara uma história sobre um gaúcho na
Argentina aquando da invasão inglesa de 1806: tinha comprado há um ano
todas as obras que tratam dessa questão. Só me faltam umas férias para poder ler os meus livros tranquilamente: antigamente,
consagrava o meu tempo livre à pesquisa de livros, agora tenho os livros, mas falta-me tempo livre. Posso
deixar um livro dormir anos numa prateleira, mas um belo dia preciso
dele; reencontro-o, e até me parece que me censura por tê-lo abandonado durante tanto tempo. Eu sou o nómada
da minha biblioteca. Por vezes, num velho livro, descubro
um papel que alguém deixou, uma flor seca. Não me
desagradaria acabar assim, seco e espalmado entre as páginas de um
livro. Claro, eu não pareceria uma malva-rosa, talvez até
fosse assustador, mas gostaria de acabar assim.
O que o guiou na sua vida?
- A curiosidade intelectual. Eu tenho curiosidade de conhecer
o amanhã. A minha vida está cheia de surpresas e de prazeres. As minhas
pesquisas em diversos domínios abriram-me mundo e a mim mesmo. Quando passeio
por Aigues- Mortes e vejo uma ruela que se chama rue de l' Amour-Aveugle [Rua
Amor Cego], sinto a necessidade de saber porquê ... e acabo descobrir que
outrora havia ali um bordeI onde trabalhavam raparigas cegas. Dediquei assim
uma grande parte da minha vida a ir de procura em procura, de viagem em viagem
e de livro em livro. Alguns passaram assim toda a sua vida, e eu compreendo-os.
E depois um dia depara-se com uma falha, o documento: por exemplo, queimado na
Idade Média, e é então que alguém como eu pode ocupar esse vazio criando uma
história: a sós comigo mesmo, dou a minha interpretação, e graças à imaginação
saio do círculo em que todos esses livros me tinham encerrado.
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