Opinião
Flores para Algernon
Leio jornais, vejo televisão, tenho cada vez menos memória e cada
vez mais memória mediática. Atafulhada de bola, casos da vida,
acidentes, incidentes, nada. Tópicos
Dr. Strauss says I shud rite down what I think and evrey thing that happins to me ...
He
said now sit down Charlie we are not thru yet. Then I dont remember so
good but he wantid me to say what was in the ink. ....
(Daniel Keyes, Flowers for Algernon)
Hoje
espera-se que eu escreva sobre o atentado de Nice. Ontem sobre as
sanções. Anteontem sobre Durão Barroso ou o “Brexit”. Antes foi o dia do
espasmo patriótico, o retorno à unidade orgânica da pátria, a
realização do mito do unanimismo, o fim das divisões perversas no altar
da selecção. Todos de cachecol, Marcelo, Costa, Jerónimo, os bloquistas,
o CDS, os artistas menores do PSD, porque o maior mantém a compostura
de Primeiro-ministro no exílio. Traz a bandeirinha à lapela e a zanga
com o destino que lhe deu a geringonça no bolso.
Nos vinte dias
anteriores era futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol,
futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol,
futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol. Num dia, no meio
do futebol, alguma coisa sobre os atentados na Turquia. Antes dos dias
do futebol havia os dias do meio-futebol, ou dos preliminares do
futebol, preliminares do futebol, preliminares do futebol, preliminares
do futebol, preliminares do futebol, preliminares do futebol,
preliminares do futebol, preliminares do futebol, preliminares do
futebol, preliminares do futebol, preliminares do futebol, preliminares
do futebol. Havia um Deus revelado nestes dias e chamava-se Ronaldo.
Acabaram os canais noticiosos, todo o cabo é desporto, todos unidos,
todos iguais. Acabaram as notícias, e os locutores que agora se chamam pivot
pedem desculpa por ainda terem que falar de coisas menores, o Daesh,
Trump, Clinton, o Deutsche Bank, os curdos, a Síria. Já não me lembro.
Como é que me posso lembrar se foi tudo há tanto tempo e durou tão pouco
tempo?
Antes? Também já não me lembro. A Caixa Geral de Depósitos
associada às peripécias da Comissão de Inquérito? Talvez. Talvez os
colégios de amarelo. Onde estão? Lá muito atrás um sussurro sobre os
refugiados, ou melhor sobre os cadáveres dos refugiados. E estamos a
chegar a uma outro campeonato, o de cá. E outra vez futebol, futebol,
futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol, futebol.
Futebol sob a forma de intrigas, declarações tonitruantes, vinganças,
relvado e o seu estado, pernas, joelhos e outras partes da anatomia
inferior dos jogadores, treinos, treinos, chegada de autocarros, partida
de hotéis, chegada dos exércitos das claques, declarações dos
responsáveis da PSP, horas e horas e horas e horas e horas e horas de
programas desportivos. Emissões especiais, conferências de imprensa dos
treinadores, dos jogadores, dos dirigentes desportivos…
Já
não me lembro. Mas havia uma voz. Uma voz acompanha tudo, 200 dias, 500
Declarações do Presidente da República, à média de mais de duas por
dia. Dessas lembramo-nos de dez. As mais importantes? Quando se fazem
500 declarações nenhuma é importante. Talvez nos lembremos das mais
engraçadas. Ou, melhor ainda, das imagens, que são sempre mais fortes do
que as palavras. Agarro-me ao segundo critério para haver memória: há
imagens, há notícia, seja uma coisa séria ou irrelevante. Não há
imagens, não há notícia. Por isso toda a gente se mostra diante das
câmaras. Mas o que fazem, o que dizem? Marcelo a dançar em Moçambique,
talvez a mais relevante, mas também já não me lembro bem…
Cada
vez mais para trás. Já não me lembro. Mas passaram apenas meia dúzia de
meses? Já não me lembro. Houve eleições. Parece um outro mundo. Ganhou
Passos Coelho e Portas. Fizeram governo? Já não me lembro, só sei que
durou pouco. Caiu. Foi-se a avantesma, veio a geringonça. A Europa do
PPE e os socialistas da corte de Merkel arrebitaram as orelhas. O quê?
Os comunistas estão no poder em Portugal? E o Syriza local? Temos que
tratar disso, voltar à austeridade, voltar ao respeitinho com os
Grandes. O Plano B. Não devia já existir, estar em pleno vigor? Já não
me lembro. Pensar faz-me mal à cabeça.
Leio
jornais, vejo televisão, tenho cada vez menos memória e cada vez mais
memória mediática, uma contradição entre os termos. Curta. Muito curta.
Atafulhada de bola, casos da vida, acidentes, incidentes, nada. Dura um
dia, quinze dias? Mais? Já não me lembro porque não é para lembrar, é
para entreter, para distrair, para passar o tempo. Não sei. Sei cada vez
menos. Devo estar doente. O meu cérebro está cada vez mais pequeno.
Pequenino.
Já não me lembro. Coloquem flores na campa de Algernon.
https://www.publico.pt/mundo/noticia/flores-para-algernon-1738439?page=-1
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