quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Alexandre Herculano - Arrábida

    Alexandre Herculano


    Arrábida
    I
    Salve, oh vale do sul, saudoso e belo!
    Salve, oh pátria da paz, deserto santo,
    Onde não ruge a grande voz das turbas!
    Solo sagrado a Deux, pudesse ao mundo
    O poeta fugir, cingir-se ao ermo,
    Qual ao freixo robusto a frágil hera,
    E a romagem do túmulo cumprindo,
    Só conhecer, ao despertar na morte,
    Essa vida sem mal, sem dor, sem termo,
    Que íntima voz contínuo nos promete
    No trânsito chamado o viver do homem.

    II
    Suspira o vento no álamo frondoso;
    As aves soltam matutino canto;
    Late o lebréu na encosta, e o mar sussurra
    Dos alcantis na base carcomida:
    Eis o ruído do ermo! Ao longe o negro,
    Insondado oceano, e o céu cerúleo
    Se abraçam no horizonte. Imensa imagem
    Da eternidade e do infinito, salve!

    III
    Oh, como surge majestosa e bela,
    Com viço da criação, a natureza
    No solitário vale! E o leve insecto
    E a relva e os matos e a fragância pura
    Das boninas da encosta estão contando
    Mil saudades de Deus, que os há lançado,
    Com mão profusa, no regaço ameno
    Da solidão, onde se esconde o justo.
    E lá campeiam no alto das montanhas
    Os escalvados píncaros, severos,
    Quais guardadores de um lugar que é santo;
    Atalaias que ao longe o mundo observam,
    Cerrando até o mar o último abrigo
    Da crença viva, da oração piedosa,
    Que se ergue a Deus de lábios inocentes.
    Sobre esta cena o sol verte em torrentes
    Da manhã o fulgor; a brisa esvai-se
    Pelos rosmaninhais, e inclina os topos
    Do Zimbro e alecrineiro, ao rés sentados
    De tronos de fragas sobrepostas,
    Que alpestres matas de medronhos vestem;
    O rocio da noite à branca rosa
    No seio derramou frescor suave,
    E inda existência lhe dará um dia.
    Formoso ermo do sul, outra vez, salve!

    IV
    Negro, estéril rochedos, que contrastas,
    Na nudez tua, o plácido sussuro
    Das árvores do vale, que vicejam
    Ricas d'encantos, coa estação propícia;
    Suavíssimo aroma, que manando
    Das variegadas flores, derramadas
    Na sinuosa encosta da montanha,
    Do altar da solidão subindo aos ares,
    É digno incenso ao Criador erguido;
    Livres aves, vós filhas da espessura,
    Que só teceis da natureza os hinos,
    O que crê, o cantor, que foi lançado,
    Estranho ao mundo, no bulício dele,
    Vem saudar-vos, sentir um gozo puro,
    Dos homens esquecer paixões e opróbio,
    E ver, sem ver-lhe a luz prestar a crimes,
    O sol, e uma só vez pura saudar-lha.
    Convosco eu sou maior; mais longe a mente
    Pelos seios dos céus se imerge livre,
    E se desprende de mortais memórias
    Na solidão solene, onde, incessante,
    Em cada pedra, em cada flor se escuta
    Do Sempiterno a voz, e vê-se impressa
    A dextra sua em multiforme quadro.

    V
    Escalvado penedo, que repousas
    Lá no cimo do monte, ameaçando
    Ruína ao roble secular da encosta,
    Que sonolento move a coma estiva
    Ante a aragem do mar, foste formoso;
    Já te cobriram cespedes virentes;
    Mas o tempo voou, e nele envolta
    A formusura tua. Despedidos
    Das negras nuvens o chuveiro espesso
    E o granizo, que o solo fustigando
    Tritura a tenra lanceolada relva.
    Durante largos séculos, no inverno,
    Dos vendavais no dorso a ti desceram,
    Qual amplexo brutal de ardor grosseiro,
    Que, maculando virginal pureza,
    De pudor varre a auréola celeste,
    E deixa, em vez de um serafim na terra,
    Queimada flor que devorou o raio.

    VI
    Ontem sentado num penhasco, e perto
    Das águas, então quedas, do oceano,
    Eu também o louvei sem ser um justo:
    E meditei, e amante extasiada
    Deixei correr pela amplidão das ondas.
    Como abraço materno era suave
    A aragem fresca do cair das trevas,
    Enquanto, envolta em glória, a clara lua
    Sumia em seu fulgor milhões d'estrelas.
    Tudo caldo estava: o mar somente
    As harmonias da criação soltava,
    Em seu rugido; e o ulmeiro do deserto
    Se agitava, gemendo e murmurando
    Ante o sopro de oeste: ali dos olhos
    O pranto me ocorreu, sem que o sentisse,
    E aos pés de Deus se derramou minha alma.
                                                                                    Alexandre Herculano 
http://www.blocosonline.com.br/versaoanterior2/literatura/poesia/pidp03/pidp040147.htm

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