O passado tem má imprensa, o presente é
o melhor que há e o futuro então não se fala, é o período da felicidade
perfeita, tanto mais perfeita quando todos já estaremos mortos.
9 de
Dezembro de 2017, 6:12
No início de um livro de L. P. Hartley há uma frase que eu cito bastante e
vou fazê-lo de novo: “O passado é um país estrangeiro, lá fazem-se as coisas de
forma diferente”. Em inglês é ainda melhor: "The past is a foreign
country; they do things differently there". E cito-a pela obsessão
absurda que existe nos dias de hoje na política e na comunicação social, de
achar que “voltar ao passado” é um coisa tenebrosa e um insulto. Este tipo de
frases são o pão nosso de cada dia na competição eleitoral no PSD, em que cada
candidato atira ao outro ou aos seus apoiantes a acusação de que são o passado.
Na verdade, o candidato mais do passado é que o faz com mais denodo e falta de
vergonha, tanto mais que os “jovens” que apresenta são infinitamente mais
velhos do que os “velhos” que eles atacam de senectude. Presumo que eles acham
que tem um DeLorean ao seu dispor, visto que a probabilidade de entenderem
alguma coisa do passado, presente e futuro dificilmente passa do Back
to the Future.
Mas se fosse só nestes conflitos de menores, passávamos bem. Mas é no
debate parlamentar, no comentário, na moda, e nessa ecologia em que vivemos no
tempo presente e que se chama “comunicação social”. A obsessão pela “novidade”
da comunicação social, é da mesma natureza destes jogos retóricos. Estão sempre
a descobrir génios jovens e prometedores cuja fama não dura um ano, e que em
muitos casos são os amigos deles, ou noutros são os que estão na “moda”, essa
tenebrosa forma de identidade fugaz, cujas raízes no passado são aliás sempre
mais importantes do que as folhas do presente. Resumindo e concluindo: o
passado tem má imprensa, o presente é o melhor que há e o futuro então não se
fala, é o período da felicidade perfeita, tanto mais perfeita quando todos já
estaremos mortos.
Mas ainda me hão-de explicar o que é que tem de fascinante o presente, e
como é que sabem que o futuro vai ser melhor. Nem o presente é brilhante, o que
acontece é que estamos presos nele, temos que viver nele, e nem ninguém sabe o
que vai ser o futuro porque a essência da história é a surpresa. Pelo
contrário, no passado podemos escolher algum proveito e exemplo, mesmo que
saibamos que ele nunca se repete, e se se repete, como dizia Marx, tem sempre
tendência para ser como comédia. Corrijo aqui o velho Karl, nos nossos dias há
uma alta probabilidade de começar como comédia e acabar como tragédia outra
vez. Veja-se Donald Trump.
O passado tem imensas virtualidades, exactamente porque nós vivemos no
presente e podemos escolher as “formas diferentes” como se faziam as coisas
nesse “país estrangeiro”, usando a frase de Hartley. E é porque o passado
transporta, no seu uso, a possibilidade de uma moral, de uma escolha, que é tão
incómodo para aqueles que pensam que apenas podem beneficiar do presente, sem
essa maçada de ter limites às suas acções. Os limites são aquelas coisas
malditas como seja o saber, em vez da ignorância, a virtude em vez do vale
tudo, a prudência em vez do meia bola e força, e o parar para pensar em vez do
imediato e do “já” que cada vez mais pesa numa sociedade onde a adolescência se
prolonga pelo Facebook e ersatzes de vida similares.
Não admira por isso que haja nos nossos dias algo que não tem precedente na
nossa civilização ocidental, a que nos fez e ainda remotamente nos faz, que é o
ataque aos mais velhos. Nos anos do “ajustamento”, os pseudo-jovens que tiveram
a sua oportunidade nesses anos de lixo, dedicaram-se a querer empobrecer os
seus avós e os seus pais, em nome de uns longínquos e putativos filhos e netos,
pelos quais mostravam tanto mais amor quanto na realidade o que faziam era
tirar a uns pais e avós para dar a outros pais e avós, só que da classe certa.
Tudo quanto é argumento neo-malthusiano foi usado para explicar a
“injustiça geracional”, em que pais e avós hipotecam o futuro dos filhos e
netos, para viverem bem no presente. Eles que eram “passado” viviam bem no
presente e punham em causa o futuro. E o futuro destinado aos jovens era não
ter casa, nem emprego, nem dinheiro, nem pensões, nem reformas, porque os
malvados dos pais e avós não queriam perder os “direitos adquiridos”, nem as
leis que protegiam o emprego, nem as suas reformas, nem o Estado Providência.
Todo um argumentário conservador, que desaguava depois nos excessos da direita
radical, se desenvolveu para dar um lugar ao sol não a todos os jovens, porque
continuavam a ser precisos soldadores, mecânicos de automóveis, electricistas,
padeiros e empregados de mesa, mas aqueles que nas elites se sentiam deserdados
de um estatuto ou de um poder que lhes parecia devido, por família ou riqueza
natural, ou aqueles que invejavam este estatuto de poder. Já repararam como
este argumentário tem sucesso ou em jovens políticos profissionais das “jotas”,
ou em pessoas que participam em “think tanks” de fundações e universidades bem
providas, ou em pessoas com empregos como “consultores”, “assessores”, jovens
advogados de negócios, e jornalistas da imprensa económica ou colaboradores
dessa mesma imprensa ou afim. Há excepções, mas não invalidam a regra.
Um dos aspectos desta nova forma de luta de classes, na verdade a mesma de
sempre, foi a minimização do saber e da experiência, tudo coisas que vem com a
vida e o trabalho árduo, combate que assumiu e assume todo o seu esplendor
naqueles que vivem nas chamadas “redes sociais” onde há uma ideia igualitária
sobre o conhecimento, ou seja, uma apologia da ignorância. Se todos se podem
pronunciar sobre tudo e por isso mesmo tudo o que dizem tem o mesmo valor, não
vale a pena estudar, nem trabalhar para conhecer uma determinada matéria, basta
só escrevinhar umas frases que pretendem ser engraçadas. Esta nova forma de
ignorância agressiva, tem sido um instrumento para minimizar não só as
hierarquias profissionais e académicas, como para dar o mesmo papel na
sociedade a exercícios vulgares e superficiais mais ou menos intuitivos que se
tornam virais e pela comunidade cultural entre as “jotas” políticas e as
“jotas” jornalísticas que usam as “redes sociais” deles, os seus Facebooks e
Twitters para “interpretar” movimentos colectivos que são dos mesmos de sempre,
sendo esses mesmos muito poucos.
Há igualmente um ataque à memória, com o encolhimento sistemático do que se
lembra no presente a um passado de escassos meses e anos. No limite, apenas ao
que se encontra nas pesquisas do Google, ou está na Internet. O que acontece é
que esse “passado” para além de ser considerado arqueológico, e portanto inútil
de lembrar, afunda-se nas trevas do esquecimento. Por sobre esta memória de
passarinho, crescem mitos, falsidades e memórias selectivas quase sempre
instrumentais para as necessidades dos conflitos do presente. Os mais velhos
são também um incómodo porque se lembram de coisas demais e de como, nesse
“país estrangeiro” do passado, alguns dos próceres do presente, já mostraram o
que valiam ou o que não valiam, os defeitos de carácter ou de incompetência, ou
por semelhança de atitudes, podem conduzir aos mesmos sucessos ou, mais
comummente aos mesmos desastres.
Eu sei bem que isto já foi tantas vezes dito, quantas gerações passaram
sobre a terra. O passado está cheio de previsões sobre de como as coisas se
degradam entre os mais velhos e os mais jovens. É verdade, é quase um
lugar-comum. Mas isso não significa que às vezes, às vezes, possa ser verdade.
Suspeito que hoje é.
Não sou, por isso, um fã do presente, onde vivo, principalmente quando se
quer esconjurar o saber, a experiência e a memória, que são coisas que precisam
do tempo do passado. Não é para as pessoas voltarem à lanterna mágica, ou às
televisões de caixa, ou ao Pacman, nem tenho qualquer nostalgia do stencil ou
do verniz corrector, nem da máquina de escrever. Mas já tenho de homens como o
esquecido e frágil Mem Verdial, com a sua gravata à Lavaliére, já então tão
fora do tempo, e que levou um paralelepípedo escondido para um comício da
oposição a Salazar, patrulhado por um capitão qualquer que numa mesa podia
interromper qualquer orador. E quando foi interrompido por dizer coisas
subversivas sobra a democracia, perguntou ao homúnculo do canto: “O senhor
representante da autoridade quer que eu ponha uma pedra sobre o assunto?”. E
pegou na pedra e colocou-a em cima dos seus papéis. É este passado que me faz
falta
Assinado:
Matusalém.
Colunista
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