* Adriano Miranda
"Sei que durante muito tempo sentia medo.
Até à noite em que acordei ao som do tiro de caçadeira. Na rua, e em frente ao
portão de ferro, escrito a tinta branca e letras grandes, ameaçavam o meu avô:
“Porco comunista, vais morrer”
3 de
Dezembro de 2017, 8:11
Julho de 1975. O pátio era enorme. Alinhadas a régua e esquadro, as
modestas casas térreas desenhavam um rectângulo. Duas portas. Uma para um
corredor apertado. Outra para a liberdade das dunas de areia. Pequenas, tinham
cozinha e quarto. A casa de banho era ao fundo, só uma, para 13 casas. E uma
bomba para tirar água. Era ali, que famílias de pobres trabalhadores passavam
as férias. Para mim, era uma festa. Um ritual. Um mês na praia. Prevenia as
doenças de Inverno e esquecia os deveres da escola. Brincava até o sono vencer.
Os amigos eram todos os anos os mesmos. O João, engenhocas, o Paulo, traquina,
o Jorge, calmo, e o Francisco, a referência, não fosse ele o mais velho. Era
tão boa a praia. Os banhos com a digestão feita, os gelados ao domingo, as mãos
sujas dos matrecos, o bronzeador e a bandeira verde. E os livros.
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Depois de almoçar deitava-me no colchão duro da cama de ferro e lia. E foi
naquele pátio de gente honrada que um livro me marcou. A Cabana do
PaiTomás, de Harriet Beecher Stowe. Tal era a brutalidade do patrão e
o sofrimento do escravo, que várias vezes soluçava até que desisti. Nunca
consegui terminar as 170 páginas. Foi uma etapa da minha infância. Talvez a
linha de partida da minha consciência.
Comecei a interrogar a vida. Porque havia pobres e ricos. Porque não éramos
todos felizes. E se o meu pai me ajudava a compreender melhor o mundo, Jorge
Amado, com Os Capitães da Areia, colocou-me na estrada que ainda
hoje acredito que é a que nos leva ao melhor destino. Ávido, comia as palavras
de Pedro Bala e Gato. Depressa terminei. E no mesmo dia voltei à página 1. Até
ao fim. Novamente.
O Gamelas era um homem forte. Guarda-redes de andebol. Trabalhador. Um
amigo. Naquele dia de sol, foi ele que me fritou o bife, as batatas fritas e o
ovo estrelado. Foi ele que me levou à praia. E foi ele também que um dia me
salvou de eu morrer afogado. Eu não sabia da minha mãe nem do meu pai. Mas a
vida continuava feliz no pátio. Só aos amigos se confiam os filhos. Chegou a noite
e a minha mãe e o meu pai continuavam sem aparecer. Chegou o meu avô. Levou-me.
Sem grandes palavras. Soube depois que a antiga vivenda de um industrial, que
admirava Álvaro Cunhal e que a alugara ao Partido, tinha sido atacada,
apedrejada e incendiada. A minha mãe e o meu pai estavam lá. Na vivenda.
Colado ao vidro de trás da carrinha do meu avô, descemos a avenida muito
devagar. A bonita vivenda de azulejos únicos e candeeiros de loiça estava quase
toda destruída. O passeio desapareceu. Arrancado. As pedras foram lançadas
contra as janelas e paredes. As janelas desapareceram. As paredes estavam todas
picadas da força das pedras. A mancha negra do cocktail Molotov
deixava imaginar o pior. Continuei sem saber da minha mãe e do meu pai.
Agosto de 2017. Num colchão melhor mas numa cama de ferro, combato o calor
da serra algarvia. Deixo-me levar pela escrita de Miguel Carvalho em QuandoPortugal
Ardeu. Passaram 42 anos. Para mim, não. Estou novamente na carrinha do meu
avô a descer a avenida. E Miguel Carvalho leva-me a descobrir outras avenidas.
Avenidas e quelhos que eu desconhecia. Todo o terror da direita portuguesa. Os
atentados. Os assassinatos. Os negócios. As mentiras. As bombas. Os tiros. A
CIA. A impunidade. O branqueamento. Sinto o meu pai e a minha mãe. Tento
imaginar as pedradas. A raiva que vinha de fora e a fibra que vinha de dentro.
As cabeças partidas. O carro que incendiaram. O soldado que morreu. Já não me
lembro como foi o nosso reencontro depois de descer a avenida. Pouco importa.
Sei que durante muito tempo sentia medo. Até à noite em que acordei ao som do
tiro de caçadeira. Na rua, e em frente ao portão de ferro, escrito a tinta
branca e letras grandes, ameaçavam o meu avô: “Porco comunista, vais morrer.”
Tinha oito anos. Percorri a estrada. Sem medo. Fui crescendo. O pátio
desapareceu. A vivenda continua na avenida. Carrego o fardo das interrogações.
Podia ter sido colega do Milhazes em Moscovo, dirigente, deputado ou outra
coisa qualquer. Nunca quis nada. Só um mundo para todos. Mas não existe. Um
mundo para todos. Há que continuar pela estrada.
No dia dos meus 50 anos recebi um abraço e um embrulho. Desembrulho e o
papel rasgado faz antever O Fim do Homem Soviético, de
Svetlana Aleksievitch. Está desde então na minha mesa-de-cabeceira. Um ano. O
tempo que o estou a ler. Devagar. Rouba o sono. E ao lado, Forte de
Peniche-Memória, Resistência e Luta. Devagar. Faz chorar. Fico
com insónias.
A estrada continua.
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