sexta-feira, 22 de junho de 2018

Daniel Oliveira - As 12 lições que Bruno aprendeu com Trump

* Daniel Oliveira

 Carvalho não é Donald Trump porque o Sporting não é um país. Mas é impressionante o que eu, com tantos anos de experiência política, aprendi ao observar poucos meses de confronto num clube. E estou assustado com o que nos espera na política
 São estas as 12 lições que Bruno de Carvalho aprendeu com a experiência de Donald Trump. Umas resultam de personalidades narcisistas e megalómanas semelhantes. Outras serão fruto de coincidência. Outras correspondem ao “ar do tempo”. Outras terão sido mesmo decalcadas pelo próprio ou por conselho de agências de comunicação. Mas todas correspondem a uma forma de fazer política, seja num país ou num clube.
1
– Para manter uma maioria fanatizada não pode haver matizes. O mundo divide-se em dois: o povo, representado por mim, e a elite, representada por aqueles que me enfrentam


O povo, no caso do Sporting, é o sócio comum. A elite é uma amálgama. Podem ser pessoas reconhecidas pelos sócios (os “notáveis”), mesmo que tenham apoiado ou feito parte das direções do líder; os acionistas, mesmo que tenham sido grandes amigos no passado; e grupos sociais específicos (os “croquetes”). O povo é toda a gente que não se destaque publicamente, liderado pela única pessoa que merece ser destacada, o próprio Bruno de Carvalho. O único “notável” legítimo. O resto ou é elite ou está ao serviço dela para retirar o poder ao povo.
2
– Não pode haver nenhuma plataforma de diálogo e compreensão entre os que estão do meu lado e aqueles que se opõem a mim


Para que a radicalização de posições e a fanatização acrítica funcione é fundamental que não haja qualquer plataforma de diálogo entre os que estão pelo líder e os que estão contra o líder. Os primeiros alvos devem ser, por isso, os moderados. A fratura absoluta entre os dois lados permite quebrar todos os laços de pertença que não dependam da liderança. Quem não seja por Bruno de Carvalho é “sportingado” e não tem nada em comum com os que o apoiam. Nem sequer o clube, a que não deviam pertencer. A incomunicabilidade torna impossível a razoabilidade. Passam a ser dois mundos que não se falam e não se compreendem. Isso protege os apoiantes do líder de qualquer influência.
3
– Uma enorme aliança de interesses conspira contra mim (ou contra nós)


Nenhum ataque ao líder resulta de uma opinião livre e desinteressada. Todos estão ligados por uma enorme rede conspirativa que pode juntar pessoas e grupos com pouco ou nada em comum. A visão conspirativa do mundo é o que traça o laço inquestionável entre o povo e o líder, fazendo de cada novo inimigo não uma derrota mas a confirmação da justeza da luta. No caso do Sporting, isso incluiu aqueles que os adeptos se habituaram a ter como heróis: os jogadores. Anular a “idolatria” pelos atletas (ainda muito antes das rescisões) é uma excelente forma de concentrar apenas no presidente o foco da admiração. De um lado temos Bruno de Carvalho e todos os verdadeiros sportinguistas e do outro os acionistas, os agentes, os jogadores, a comunicação social, os outros clubes e todos os que internamente trabalham para estes interesses.
4
– A instituição existe na medida que eu existo, eu sou quem agrega todos os que a defendem


A instituição, os seus símbolos e a sua história, que geralmente precedem os dirigentes e a eles devem sobreviver, são lentamente substituídos pela figura do líder. Porque tudo o que transcende o líder exibe a transitoriedade da sua liderança, relativizando assim o seu próprio poder. Os momentos da vida familiar do presidente misturam-se com a vida do clube. E o presidente está no centro de todos os momentos relevantes do clube. Está sentado no banco como se fosse um treinador ou a festejar no relvado como se fosse um jogador. Não aprecia a tribuna presidencial onde outros presidentes estiveram, o que o equipararia a eles. Só assim se constrói a ideia de que a instituição nasceu, morrerá e se esgota com o seu líder. Afastá-lo é matar a própria instituição.
5
– Todas as figuras que me acompanham no poder são secundárias, descartáveis e apenas aceitáveis se me seguirem cegamente


Nenhuma figura, para além do líder, se deve destacar. Dar relevância à equipa dirigentes é dar força aos futuros traidores. O líder decide, os outros aplicam. O único obstáculo a isto, no caso de Bruno de Carvalho, foi Jorge Jesus. Que se revelou, coisa que nunca imaginei, um “político” notável. Apenas para a sua própria sobrevivência, mas notável.
6
– A lei é um mero formalismo e os contrapesos ao meu poder são traição


Numa nação seria muitíssimo difícil, mas num clube é bastante fácil nomear órgãos inexistentes, promover a leitura criativa dos estatutos e da lei ou adulterar o conteúdo de decisões judiciais. Ficou evidente como é possível fazer desabar um edifício regulamentar e criar uma espécie de legalidade paralela. E com isso infetar toda a estrutura, impondo a todos a dúvida sobre a legitimidade de qualquer contrapoder.
7
– Se eu vencer o povo votou em mim, se eu perder houve fraude


Nas eleições federais, Donald Trump deixou sempre na dúvida se aceitaria os resultados caso fosse derrotado. Deixar no ar a possibilidade de haver uma fraude era o que lhe permitiria não respeitar a vontade dos eleitores se fosse contra ele. Para a Assembleia Geral de sábado – e, se for o caso, nas eleições –, muitos seguidores de Bruno de Carvalho têm feito o mesmo, deixando várias pistas sobre a probabilidade de uma “golpada”. Seja porque venceu, seja porque houve fraude, Bruno de Carvalho tem sempre a vitória garantida junto dos seus. E assim os poderá manter fanatizados.
8
– Banalizar o insulto até já não ser ouvido como insulto retira quem não insulta do confronto


A maioria dos intervenientes políticos e cívicos está limitada por algumas regras sociais de civilidade. Desfazer essas regras pode ser uma grande vantagem. Como se costuma dizer, não vale a pena atirares-te para a lama com um porco, ficas sujo e ele gosta. Banalizar o insulto permite retirar da contenda quem quer proteger a sua credibilidade. Quando repetido muitas vezes o insulto deixa de chocar. E quando deixa de chocar, a ausência dos oponentes nesse nível de debate passa a ser percecionada como sinal de fraqueza. No fim, resistem os mais agressivos, que conseguem acompanhar a violência do debate, o que leva o espectador desatento a equiparar os dois lados. Nisto, Bruno de Carvalho é uma cópia quase decalcada de Donald Trump. Apenas um pouco mais grosseiro.
9
– Toda a comunicação social está contra mim porque faz parte do sistema, só devem acreditar em mim e nos que falam em meu nome


A comunicação social portuguesa não gosta de Bruno de Carvalho com o mesmo empenho que a norte-americana detesta Donald Trump. Um e outro fizeram tudo para ser odiados pelos jornalistas. E os jornalistas caíram na armadilha. Um e outro não perderam nada com este ódio que rapidamente se transforma em parcialidade. Todos os ataques funcionam como confirmação de que a comunicação social trabalha para o inimigo. E quanto mais forem provocados mais partidários serão os jornalistas e mais razão darão à sua “vítima”. A partir daqui, passa a ser possível dizer que, estando militantemente contra o líder, toda a comunicação social mente. E exigir aos seguidores que a ignorem, ignorando assim qualquer tipo de escrutínio externo. No caso de Trump, pede para verem a Fox News. No caso de Bruno de Carvalho, só pode pedir para verem a Sporting TV, que usa, tal como o site do clube, como órgão oficial de facção.
10
– Mesmo que a comunicação social não goste de mim vai-me dar todo o tempo de antena porque eu lhes ofereço o grotesco, que dá audiências


Se a comunicação social não demonstra qualquer simpatia por Bruno de Carvalho, assim como não mostrou qualquer simpatia por Donald Trump, porque lhe dá tempo de antena ilimitado? Porque, à sua escala, um e outro dão audiências. Todas as novelas que alimentam são deprimentes, tristes, rocambolescas, por vezes o acidente para que todos olham, mas um excelente reality-show. E assim Bruno de Carvalho vai usando a dependência das televisões por audiências para ter palco e ganhar força. E usa, como Trump, as redes sociais para criar factos de polémica diários.
11
– Um exército de fanáticos (ou de perfis falsos) nas redes sociais faz milagres para anular o inimigo


Quem tem acompanhado as polémicas do Sporting nas redes sociais fica varado com o cerco feito a qualquer pessoa que ouse fazer a mais pequena crítica a Bruno de Carvalho. Os ataques não passam apenas pela repetição dos argumentos dados pelo presidente, por mais estapafúrdios que sejam. Quase sempre recorrem ao insulto e à perseguição em matilha ou à ameaça explícita. A violência é tal que até os mais corajosos e persistentes desistem de participar no debate, deixando as tropas de choque sozinhas na arena. Dirão que tudo isto é o habitual das redes sociais. A diferença é que, neste caso, é coordenado. Muitos dos perfis são falsos ou anónimos e há fortes suspeitas de que a empresa de comunicação contratada pelo Sporting estreou em Portugal a estratégia experimentada por Trump e políticos de extrema-direita europeus.
12
– Se mentir sempre, ou não serei desmentido ou obrigarei o inimigo a estar sempre a responder-me


Qualquer fact-checking às intervenções de Bruno de Carvalho exigiria muito mais espaço do muito que ele usa. Tal como sucedia com Donald Trump. Em muitos casos a mentira é fácil de desmontar, de tal forma é descarada. Só que as mentiras são como as dívidas: uma é um problema para o mentiroso, muitas é um problema para quem queira repor a verdade. Perante uma sucessão de mentiras, que permitem construir uma realidade paralela (o fanático é condicionado a não acreditar na imprensa e em mais ninguém que não seja o líder), o adversário tem duas hipóteses: repor a verdade e ficar preso à agenda imposta pelo líder ou deixar que a mentira se instale como verdade.
Bruno de Carvalho não é Donald Trump porque o Sporting não é um país. Quem não ligue ao que se passa no futebol considerará, por isso, este paralelo absurdo. Mas é por estarem em patamares muito diferentes que este exercício é tão útil. Porque se Bruno de Carvalho conseguiu – e penso que em muitos casos o fez conscientemente – adaptar para um clube a lógica de um combate político do outro lado do Atlântico, quer dizer que a receita é ainda mais eficaz do que se pensava. Quem conseguir readaptar a tática de Bruno de Carvalho à política nacional poderá ir longe e ter efeitos destrutivos a uma escala muito maior. Claro que, por ser o meu clube e por ser um presidente que apoiei, dou a isto tudo uma importância talvez desmedida. Num clube não existem os mesmos conflitos que existem no resto da sociedade, as pessoas não valorizam as mesmas coisas, as condições materiais de vida têm pouca relevância para as escolhas que fazem. Mas é impressionante o que eu, com tantos anos de experiência política, aprendi ao observar poucos meses de confronto num clube. E estou assustado com o que nos espera na política.

https://leitor.expresso.pt/diario/21-06-2018/html/caderno-1/opiniao/as-12-licoes-que-bruno-aprendeu-com-trump

domingo, 17 de junho de 2018

Tossan - ODE AO FUTEBOL

Tossan 


“Rectângulo verde, meio de sombra meio de sol
Vinte e dois em cuecas jogando futebol
Correndo, saltando, ziguezagueando ao som dum apito
Um homem magrito, também em cuecas
E mais dois carecas com uma bandeira
De cá para lá, de lá para cá
Bola ao centro, bola fora.
Fora o árbitro!
E a multidão, lá do peão
Gritava, berrava, gesticulava
E a bola coitada, rolava no verde
Rolava no pé, de cabeça em cabeça
A bola não perde, um minuto sequer
Zumbindo no ar como um besoiro,
Toda redonda, toda bonita
Vestida de coiro.
O árbitro corre, o árbitro apita
O público grita
Gooooolllllooooo!
Bola nas redes
Laranjadas, pirolitos,
Asneiras, palavrões
Damas frenéticas, gordas esqueléticas
esganiçadas aos gritos.
Todos à uma, todos ao um
Ao árbitro roubam o apito
Entra a guarda, entra a polícia
Os cavalos a correr, os senhores a esconder
Uma cabeça aqui, um pé acolá
Ancas, coxas, pernas, pé,
Cabeças no chão, cabeças de cavalo,
Cavalos sem cabeça, com os pés no ar
Fez-se em montão multidão.
E uma dama excitada, que era casada
Com um marinheiro distraído,
No meio da bancada que estava à cunha,
Tirou-lhe um olho, com a própria unha!
À unha, à unha!
Ânimos ao alto!
E no fim,
perdeu-se o campeonato!”
                                                     

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Sete poemas de Federico Garcia Lorca

Portal Vermelho Dia: 19/06/2015 às 15:25:16


Federico García Lorca (1898-1936) foi poeta e dramaturgo espanhol, membro da chamada Geração de 27, autor de livros como o Romancero gitano (1928), Poeta em Nueva York(1940) e Llanto por Ignacio Sánchez Mejía (1935). Morreu fuzilado, em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola, por ser homossexual.

Reprodução
Federico Garcia Lorca é um dos autores fundamentais da poesia do século 20 e exerceu influência em diversos autores de língua espanhola, entre eles, Pablo Neruda
É um dos autores fundamentais da poesia do século 20 e exerceu influência em diversos autores de língua espanhola, como Pablo Neruda. Sua lírica incorporou temas e recursos poéticos que vão das canções populares espanholas até a cultura cigana andaluza, o barroco de Góngora e o surrealismo.

Letras Vermelhas traz esta semana em Prosa, Poesia & Arte sete poemas de Federico extraídos do livro Poeta em Nova York, traduzidos pelo poeta brasileiro Claudio Daniel.

Apesar de trazer sempre poemas de jovens poetas, Letras Vermelhas inova e agora abordará também o trabalho de poetas estrangeiros, cuja tradução tenha sido feita por poetas brasileiros. Nesta primeira publicação Claudio Daniel apresenta Federico Garcia Lorca. 

Leia os poemas na íntegra: 

Volta de passeio 
Assassinado pelo céu,
entre as formas que vão até a serpente
e as formas que buscam o cristal,
deixarei crescer meus cabelos.

Com a árvore de cotos que não canta
e o menino com o branco rosto de ovo.

Com os animaizinhos de cabeça rota
e a água esfarrapada dos pés secos.

Com tudo o que tem cansaço surdo-mudo
e borboleta afogada no tinteiro.

Tropeçando com meu rosto diferente de cada dia.
Assassinado pelo céu!


1910

Intermédio 

Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez
não viram enterrar os mortos
nem a feira de cinza de quem chora pela madrugada
nem o coração que treme encurralado como um cavalo-marinho.

Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez
viram a parede branca onde mijavam as meninas,
o focinho do touro, a seta venenosa
e uma lua incompreensível que iluminava pelos cantos
os pedaços de limão seco sob o negro duro das garrafas.

Aqueles meus olhos no pescoço da égua,
no seio trespassado de Santa Rosa adormecida,
nos telhados do amor com gemidos e frescas mãos,
em um jardim onde os gatos comiam as rãs.

Desvão onde a velha poeira congrega estátuas e musgos.
Caixas que guardam silêncios de caranguejos devorados.
No lugar onde o sonho tropeçava com sua realidade.
Ali meus pequenos olhos.

Não me perguntem nada. Eu vi que as coisas
quando buscam seu curso encontram seu vazio.
Há uma dor de ocos pelo ar sem ninguém
e nos meus olhos criaturas vestidas. Sem nudez!


Fábula e roda dos três amigos
Henrique,
Emílio,
Lorenzo. 
Estavam os três gelados:
Henrique pelo mundo das camas;
Emilio pelo mundo dos olhos e das feridas das mãos,
Lorenzo pelo mundo das universidades sem telhados. 

Lorenzo,
Emilio,
Henrique. 
Estavam os três queimados:
Lorenzo pelo mundo das folhas e das bolas de bilhar;
Emílio pelo mundo do sangue e dos alfinetes brancos;
Henrique pelo mundo dos mortos e dos jornais abandonados. 

Lorenzo, 
Emílio,
Henrique.
Estavam os três enterrados:
Lorenzo em um seio de Flora;
Emílio na hirta genebra que se esquece no copo;
Henrique na formiga, no mar e nos olhos vazios dos pássaros. 

Lorenzo, 
Emílio,
Henrique,
foram os três em minhas mãos
três montanhas chinesas,
três sombras de cavalo,
três paisagens de neve e uma cabana de açucenas
pelos pombais onde a lua pousa plana sob o galo. 

Um 
e um
e um.
Estavam os três mumificados,
com as moscas do inverno,
com os tinteiros que o cão urina e o vilão despreza,
com a brisa que gela o coração de todas as mães,
pelas brancas quedas de Júpiter onde os bêbados merendam a morte. 

Três 
e dois
e um.
Eu os vi perdidos chorando e cantando
por um ovo de galinha,
pela noite que mostrava seu esqueleto de tabaco,
por minha dor cheia de rostos e pungentes lascas da lua,
por minha alegria de rodas dentadas e látegos,
por meu peito turvado pelas pombas,
por minha morte deserta com um só passeador equivocado. 

Eu havia matado a quinta lua
e bebiam água pelas fontes os leques e os aplausos,
Leite morno encerrado das recém-paridas
agitava as rosas com uma larga dor branca.

Henrique,
Emílio,
Lorenzo.
Diana é dura
mas às vezes tem as tetas nubladas.
Pode a pedra branca pulsar com o sangue do cervo
e o cervo pode sonhar pelos olhos de um cavalo. 

Quando se fundiram as formas puras
sob o cri-cri das margaridas,
compreendi que haviam me assassinado.
Percorreram os cafés e os cemitérios e as igrejas,
abriram os tonéis e os armários,
destroçaram três esqueletos para arrancar seus dentes de ouro.
Já não me encontraram.
Não me encontraram?
Não. Não me encontraram.
Porém se soube que a sexta lua fugiu torrente acima,
e que o mar recordou de imediato
os nomes de todos os seus afogados. 


Poema duplo do Lago Eden
Nuestro ganado pace, el viento espira 
Garcilaso 
Era minha voz antiga
ignorante dos densos sumos amargos.
Eu a adivinho lambendo meus pés
sob as frágeis folhas molhadas. 
Ai, voz antiga de meu amor,
ai, voz de minha verdade,
ai, voz de meu flanco aberto,
quando todas as rosas manavam de minha língua
e a céspede não conhecia a impassível dentadura do cavalo! 
Está aqui bebendo meu sangue,
bebendo meu humor de menino pesado,
enquanto meus olhos se quebram no vento
com o alumínio e as vozes dos bêbados. 
Deixai-me passar pela porta
onde Eva come formigas
e Adão fecunda peixes deslumbrados.
Deixai-me passar, homenzinhos de cornos,
ao bosque do espreguiçar
e dos alegríssimos saltos. 
Eu sei o uso mais secreto
que tem um velho alfinete oxidado
e sei do horror de uns olhos despertos
sobre a superfície concreta do prato. 
Porém não quero mundo nem sonho, voz divina,
quero minha liberdade, meu amor humano
no canto mais escuro da brisa que ninguém deseje.
Meu amor humano! 
Esses cães marinhos se perseguem
e o vento espreita troncos descuidados.
Oh, voz antiga, queima com tua língua
esta voz de folha de Flandres e de talco! 
Quero chorar porque tenho vontade
como choram os meninos do último banco,
porque eu não sou um homem, nem um poeta, nem uma folha,
mas um pulso ferido que sonda as coisas do outro lado. 
Quero chorar dizendo meu nome,
rosa, menino e abeto à margem deste lago,
para dizer minha verdade de homem de sangue
matando em mim a burla e a sugestão do vocábulo. 
Não, não, eu não pergunto, eu desejo,
minha voz libertada que me lambe as mãos.
No labirinto de biombos é minha nudez quem recebe
a lua de castigo e o relógio coberto de cinzas. 
Assim eu dizia.
Assim eu dizia quando Saturno deteve os trens
e a bruma e o Sonho e a Morte estavam me buscando.
Estavam me buscando
ali onde mugem as vacas que têm patinhas de pajem
e ali onde flutua meu corpo entre os equilíbrios contrários. 


Céu Vivo

Eu não poderei queixar-me
se não encontrei o que buscava.
Próximo das pedras sem sumo e dos insetos vazios
não verei o duelo do sol com as criaturas em carne viva. 

Porém eu irei à primeira paisagem
de choques, líquidos e rumores
que tresanda a menino recém-nascido
e onde toda superfície é evitada,
para entender que o que busco terá seu alvo de alegria
quando eu voar mesclado com o amor e as areias. 

Ali não chega a geada dos olhos apagados
nem o mugido da árvore assasinada pela lagarta.
Ali todas as formas guardam entrelaçadas
uma só expressão frenética de avanço. 

Não podes avançar pelos enxames de corolas
porque o ar dissolve teus dentes de açúcar,
nem podes acariciar a fugaz folha do feto
sem sentir o assombro definitivo do marfim. 

Ali sob as raízes e na medula do ar,
comprende-se a verdade das coisas equivocadas.
O nadador de níquel que espreita a onda mais fina
e o rebanho de vacas noturnas com patinhas vermelhas de mulher. 

Eu não poderes queixar-me
se não encontrei o que buscava;
porém irei à primeira paisagem de umidades e pulsações
para entender que o que busco terá seu alvo de alegria
quando eu voar mesclado com o amor e as areias. 

Vôo fresco de sempre sobre leitos vazios,
sobre grupos de brisas e barcos encalhados.
Tropeço vacilante pela dura eternidade fixa
e amor ao fim sim alvorecer. Amor, Amor visível! 

Eden Mills, Vermont. 24 de agosto de 1929. 

Paisagem com duas tumbas e um cão assírio 

Amigo,
levanta-te para que ouças uivar
o cão assírio
As três ninfas do câncer estiveram dançando,
meu filho.
Trouxeram umas montanhas de lacre vermelho
e uns lençóis duros onde o câncer estava dormindo.
O cavalo tinha um olho no pescoço
e a lua estava num céu tão frio
que teve de rasgar seu monte de Vênus
e afogar em sangue e cinza os cemitérios antigos. 

Amigo,
desperta, que os montes ainda não respiram
e as ervas de meu coração encontram-se em outro lugar.
Não importa que estejas cheio de água do mar.
Eu amei por muito tempo um garoto
que tinha uma plúmula na língua
e vivemos cem anos dentro de uma navalha.
Desperta. Cala. Escuta. Ergue-te um pouco.
O uivo
é uma longa língua roxa que deixa
formigas de espanto e licor de lírios.
Já vêm até a rocha. Não alargues tuas raízes!
Aproxima-se. Geme. Não soluces em sonho, amigo. 

Amigo!
Levanta-te para que ouças uivar
o cão assírio. 


Valsa nos ramos 
Homenagem a Vicente Aleixandre por seu poema 
O vale

Caiu uma folha 
e duas 
e três. 
Um peixe nadava pela lua. 
A água dorme uma hora 
e o mar branco dorme cem. 
A dama 
estava morta no ramo. 
A monja 
cantava dentro da toronja. 
A menina 
ia do pinho à pinha. 
E o pinho 
buscava a pequena pluma do trinado. 
Porém, o rouxinol 
chorava suas feridas ao redor. 
E eu também 
porque caiu uma folha 
e duas 
e três. 
E uma cabeça de cristal 
e um violino de papel 
e a neve apodrecia com o mundo 
se a neve dormisse um mês, 
e os ramos lutavam com o mundo 
um a um
dos a dois
e três a três.
Oh duro marfim de carnes invisíveis! 
Oh golfo sem formigas do amanhecer! 
Com o muuu dos ramos, 
com o ai das damas, 
com o croo das rãs, 
e o gloo amarelo do mel. 
Chegará um torso de sombra 
coroado de laurel. 
Será o céu para o vento 
duro como uma parede 
e os ramos desgalhados 
irão dançando com ele. 
Um a um 
ao redor da lua, 
dois a dois 
ao redor do sol, 
e três a três 
para que os marfins durmam bem. 


http://www.vermelho.org.br/noticia/266001-1