domingo, 5 de agosto de 2018

Abram o champanhe no paraíso: Hemingway voltou a publicar, quase seis décadas depois da sua morte

CULTURA

04.08.2018 às 20h02


Ernest Hemingway

BETTMANN/GETTY

Uma história inédita do escritor norte-americano acaba de ser publicada na revista literária Strand. Tem Paris e um correspondente de guerra a beber champanhe num hotel de luxo. Não podia ser mais autobiográfica

João Santos Duarte

“Quando sonho com a vida depois da morte no Paraíso, a ação desenrola-se sempre no Ritz de Paris”, diria Hemingway uns anos depois de ter entrado pela primeira vez no hotel. Corria o ano de 1944 quando o escritor, então a trabalhar em França como correspondente de guerra, chega ao Ritz com um grupo de soldados e anuncia aos funcionários que estava ali para libertar o edifício. Acaba por ser informado que os alemães já tinham abandonado o local há algum tempo, mas isso não o impede de dirigir-se ao bar e pedir champanhe para todos.

Paris, e o Ritz em especial, sempre ocuparam um lugar especial na vida e obra do autor norte-americano, e é isso que volta a acontecer num inédito com mais de 60 anos, que viu finalmente a luz do dia ao ser publicado pela  revista literária Strand.

O conto, intitulado “A Room on the Garden Side”, faz parte de um conjunto de cinco histórias escritas no Verão de 1956, e que têm a Segunda Guerra Mundial como tema central. Destas, apenas uma - “Black Ass at the Crossroads”, tinha sido publicada até ao momento. Apesar de nunca ter sido revelada ao grande público, não era desconhecida dos estudiosos de Hemingway. O manuscrito de 15 páginas, escrito a lápis, esteve guardado durante décadas na Biblioteca e Museu Presidencial John F. Kennedy, em Boston

Os elementos autobiográficos são evidentes. A narrativa decorre num quarto do hotel Ritz numa noite já perto do final da guerra. Robert - assim se chama o narrador - é um escritor norte-americano em Paris, que ocupa um quarto com vista para o jardim, e bebe champanhe do melhor (neste caso está ocupado com uma garrafa de Perrier-Jouet Brut, de 1937).

Estamos em agosto de 1944, a guerra está a chegar ao fim. Um grupo de soldados que está no hotel limpa as armas e prepara-se para abandonar Paris no dia seguinte e combater noutro local onde ainda há confrontos em curso. Tratam Robert por “Papa”, que, não por acaso, era também a alcunha de Hemingway. Discute-se literatura, Marcel Proust, Victor Hugo, Alexandre Dumas, e se herança cultural parisiense conseguirá recuperar dos anos negros do fascismo.

“O amor de Hemingway pela sua cidade favorita, numa altura em que esta está a emergir da ocupação Nazi, é bem visível nesta história, bem como todas as notas marcantes da escrita do autor”, escreve Andrew F. Gulli, editor da revista Strand, na nota editorial que antecede a publicação da história. Kim Curnutt, um dos membros da direcção da “Hemingway Society”, assina também um texto nesta edição da revista em que afirma que, na história agora publicada, “a guerra é um tema central, mas também o é igualmente a questão ética da escrita, e a preocupação de que a fama literária possa corromper o compromisso de um autor com a verdade”.

Esta e as restantes quatro histórias foram escritas já numa fase descendente da carreira do autor. Não as terá escrito sequer com a intenção de as ver publicadas. Hemingway vivia por essa altura demasiado atormentado com a natureza disruptiva da fama, e com tudo o que de mal ela trazia. Terá dito ao amigo Harvey Breit, então responsável pela secção de livros do New York Times, que “provavelmente eu não devia era publicar mais nada. É mais simples guardarem estas coisas para quando eu estiver morto”. Cinquenta e sete anos depois da sua morte, o texto vê finalmente a luz do dia. Pode até não ter sido para festejar o momento, mas certamente terá aberto mais uma garrafa de champanhe no paraíso.

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