domingo, 28 de junho de 2020

Sidónio Muralha - Soneto Imperfeito da Caminhada Perfeita



* Sidónio Muralha

Já não há mordaças, nem ameaças, nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
em que os poetas são os próprios versos dos poemas
e onde cada poema é uma bandeira desfraldada.

Ninguém fala em parar ou regressar,
ninguém teme as mordaças e as algemas.
- O braço que bate há-de cansar
e os poetas são os próprios versos dos poemas.

Versos brandos... Ninguém mos peça agora.
Eu já não me pertenço: sou da hora.
E não há mordaças, nem ameaças, nem algemas

que possam perturbar a nossa caminhada,
onde cada poema é uma bandeira desfraldada
e os poetas são os próprios versos dos poemas.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Pedro Cardim Para uma visão mais informada e plural do padre António Vieira

* Pedro Cardim

25.06.2020 às 9h30

A estátua de Vieira retrata de uma forma caricatural a colonização portuguesa na América e o papel desempenhado pelo jesuíta, em especial no que respeita aos ameríndios. Aqueles que se revêem nesta estátua demonstram ignorar grande parte da investigação mais recente sobre o tema

Omonumento em honra do padre António Vieira, erigido em Lisboa defronte da igreja de São Roque, não faz jus à sua figura. Vieira merecia ser recordado por uma intervenção artística que desse melhor conta da riqueza da sua obra e da complexidade da sua vida.

Antes de mais, porque representar António Vieira segurando numa cruz e rodeado de crianças indígenas é uma forma caricatural de retratar o Brasil colonial e a ação que Vieira nele desempenhou, em especial no que respeita às populações ameríndias. A estátua nada diz sobre o que realmente se passou ali a partir de 1500. Desembarcados na América do Sul, os portugueses levaram a cabo uma "conquista", ou seja, a apropriação – frequentemente violenta – de terras que eram dos povos autóctones.

Depois de consolidarem o seu domínio sobre as primeiras parcelas de terra, as autoridades portuguesas, seculares e religiosas, definiram a forma como iriam lidar com os autóctones da América. Quanto aos indígenas que foram submetidos pelos portugueses, as autoridades coloniais trataram-nos como miserabile personae, como uma espécie de crianças ou de pessoas desprovidas de autonomia e de autossuficiência. Foram vistos como seres que careciam da tutela dos colonizadores, acabando por ser reduzidos a uma condição de menoridade, cívica, jurídica e política. No que respeita aos muitos povos indígenas que viviam nas vastas áreas que escapavam ao controlo dos conquistadores e que contra eles resistiam, foram encarados como "selvagens", "rebeldes" e inimigos.

Foi com base na ideia de que os indígenas eram miserabile personae que se conformou o relacionamento entre os colonizadores e as populações autóctones que não foram consideradas inimigas. A esses indígenas foi dada a possibilidade de entrarem na sociedade colonial, mas impôs-se-lhes como condição a sua subordinação aos portugueses e a sua submissão a um intenso processo de conversão ao catolicismo.

António Vieira é produto desta maneira de entender os povos ameríndios e identifica-se plenamente com ela. À semelhança do que vários missionários antes dele tinham feito, Vieira também promoveu a deslocação maciça de comunidades indígenas e a sua concentração em aldeias situadas nas proximidades das zonas de colonização, aldeias essas administradas pelos próprios jesuítas e por outras ordens religiosas.

E para que é que serviam essas aldeias? Serviam, antes de mais, para impor aos indígenas, muitas vezes com violência, o modo de vida português e a religião católica. Além disso, o sistema das aldeias impunha aos "índios aldeados" um regime de trabalho obrigatório. Tanto os jesuítas, quanto os colonos que viviam nas redondezas serviam-se dos "índios aldeados", empregando-os quase sempre nas ocupações mais aviltantes como trabalhadores forçados. Quando eram pagos, os indígenas recebiam um salário em geral miserável. Um exemplo: em 1654 Vieira estabeleceu um acordo com o governador e as câmaras do Maranhão para regulamentar o trabalho compulsório dos "índios aldeados". Segundo esse acordo, os índios realizariam seis meses de serviço por ano nas propriedades dos moradores e receberiam, em troca, pouco mais de dois metros de pano por mês...

A par do trabalho pago desta forma miserável, os índios concentrados nas aldeias foram também frequentemente mobilizados contra os inimigos dos portugueses, como os holandeses ou os franceses. Além disso, os colonos também os utilizaram na luta quer contra os escravos negros que fugiam das zonas coloniais e que se concentravam em quilombos, quer contra os demais povos indígenas que resistiam contra a colonização. Para os portugueses a guerra fazia parte do quotidiano colonial, não só para conquista de mais terras, mas também para a captura de indígenas e sua conversão em escravos ou em trabalhadores forçados.

A estátua nada diz sobre isto e tão-pouco mostra que, para além de serem submetidos ao trabalho forçado, havia muitos indígenas escravizados. Convém lembrar que, para as autoridades portuguesas, a escravização de ameríndios continuou a ser legal até à segunda metade do século XVIII. Para Vieira, como para os demais jesuítas (com poucas divergências internas), a escravidão de índios e, também, de negros era aceitável desde que fossem respeitados os títulos de escravização reconhecidos como legítimos (guerra justa, comutação da pena de morte, extrema necessidade e condição do ventre materno).

Numa sociedade marcada por uma forte discriminação racial, os índios eram relegados para um dos seus escalões mais baixos. Ou seja, os indígenas cristianizados que conseguiam sair das aldeias ou livrar-se da escravidão, quando iam viver entre os portugueses só se conseguiam empregar em atividades desprestigiantes e mal pagas, ficando praticamente privados de qualquer hipótese de ascensão social. A mestiçagem estava presente, mas costumava ser ativamente escondida por todos os mestiços que tinham a ambição de ascender socialmente.

Não há dúvida de que, ao longo da sua vida, Vieira se destacou na defesa de certos povos indígenas e denunciou alguns abusos dos colonos. Contudo, é preciso notar que tais denúncias foram quase sempre uma boa ocasião – política – para Vieira reivindicar que, na relação entre colonos e indígenas, a tutora e a intermediária privilegiada, ou mesmo exclusiva, deveria ser a Companhia de Jesus, a ordem à qual ele pertencia.

A par disso, não se pode esquecer que, em vários momentos, o mesmo Vieira apelou às forças portuguesas para que atacassem e submetessem, por vezes com muita violência, os ameríndios que resistiam à invasão das suas terras, ou que recusavam o catolicismo. Aliás, e à semelhança dos seus contemporâneos, Vieira usou termos como "gentio bárbaro" ou "selvagem" para denominar os indígenas que continuavam a resistir contra os portugueses. Tais palavras, como se sabe, estavam carregadas de preconceitos a respeito dos seres humanos assim designados.

Tudo isto é factual, baseia-se na documentação existente e está plenamente demonstrado pelos estudos dos últimos trinta anos. No entanto, a escultura que pretende homenagear Vieira é completamente omissa a respeito destes factos. Ela reflete, acima de tudo, uma visão benigna da colonização portuguesa das terras sul americanas e da relação com as suas populações autóctones. Para além de nada dizer sobre estes temas, o monumento a Vieira tem também o condão de ocultar a resposta dada pelos indígenas à agressão portuguesa. Apresenta os índios como seres passivos, uma espécie de crianças que nem sequer eram capazes de se defender, carecendo de um português para os proteger. Nada mais distante da realidade. Ao longo dos trezentos anos de colonização os indígenas defenderam-se de um modo inteligente e encarniçado. A resistência – armada, e não só – dos ameríndios contra os portugueses foi muito mais eficaz do que habitualmente se pensa, e foi precisamente graças a ela que muitos desses povos conseguiram manter os colonizadores fora das suas terras durante toda a dominação portuguesa no Brasil. Além disso, muitas mulheres e homens indígenas rapidamente aprenderam a utilizar os recursos trazidos pelos portugueses a fim de com eles alcançar a liberdade ou resistir contra a opressão colonial.

Para quem estuda a história da colonização portuguesa em terras americanas, nada disto é novidade. O alcance e os limites da ação de Vieira relativamente aos indígenas são bem conhecidos, e o mesmo se poderia dizer da sua posição sobre a escravização de africanos subsaarianos. A sua concordância com a escravidão de afrodescendentes não difere daquilo que era a opinião corrente na época. Vieira não era contrário ao sistema esclavagista, defendia-o na medida em que, do seu ponto de vista, ele permitia o trânsito de pessoas pagãs para terras cristãs e, subsequentemente, a sua suposta salvação, mas sempre sob a autoridade dos seus proprietários.

As suas críticas à violência com que os senhores de escravos tratavam as pessoas escravizadas não diferem muito do que várias pessoas há muito diziam, tanto no Brasil como na América espanhola. Mas havia quem, naquele mesmo período, e ao contrário de Vieira, condenasse a escravatura. Vários dos jesuítas com os quais Vieira entrou em conflito no final da sua vida fizeram muito mais do que ele para melhorar a condição dos afrodescendentes escravizados. O mesmo se pode dizer de alguns franciscanos e, também, de capuchinhos em missão pelas Caraíbas e pela América do Sul. Comparados com estes, Vieira não se distinguiu na defesa dos afrodescendentes escravizados. Por exemplo, ao contrário de outros, não se destacou no apoio à sua importante luta para terem acesso ao sacramento do matrimónio. Foi sempre fiel à ideia de que os escravizados deveriam aceitar submissamente o cativeiro em troca da liberdade das suas almas.

Compreende-se, pois, que Vieira se tenha oposto tenazmente à cristianização dos habitantes do quilombo de Palmares. Alegou que tal equivalia reconhecer a existência dessa comunidade "rebelde" que estava há anos a resistir contra a dominação colonial portuguesa. Com esta atitude Vieira visava, acima de tudo, castigar os que pegavam em armas contra a ordem colonial e não dar esperança aos escravizados de que poderiam alcançar, pela luta, a liberdade. Para Vieira, a liberdade não devia ser conquistada pelas armas, mas sim eventualmente concedida pelos senhores.

Tudo isto são factos conhecidos, e não propriamente um julgamento acusatório de António Vieira, figura que, aliás, sempre me interessou como objeto de investigação. O jesuíta tem sido muito estudado e tem de continuar a ser estudado, pois é uma figura com uma trajetória riquíssima e, em alguns aspetos, única. No entanto, sou contra o uso abusivo de António Vieira como um "defensor dos direitos humanos". Essa ideia, lamentavelmente inscrita na placa que acompanha a estátua que foi erigida em Lisboa em 2017, está completamente desfasada dos quadros mentais da época de Vieira. Também não me parece que se deva retratar o jesuíta como um protetor desinteressado dos índios, uma espécie de Bartolomé de las Casas português, forma de dizer que, no fundo, o colonialismo português não era assim tão mau... Vieira estava ao serviço de um projeto de colonização que visava submeter o maior número possível de indígenas e mantê-los em situação de menoridade e sob a tutela da Companhia de Jesus. Quanto à ordem colonial e esclavagista que, no Brasil, foi criada pelos portugueses e doutrinalmente sancionada pela Igreja, não era nada aprazível para os índios e, muito menos, para os afrodescendentes. Vieira jamais teve como finalidade alterá-la de uma forma substantiva.

Durante demasiado tempo, sob a ditadura de Salazar e não só, vários historiadores portugueses esqueceram estes e outros factos, insistindo numa imagem fundamentalmente benigna da colonização portuguesa, no Brasil e em outros continentes. Hoje, felizmente, a situação mudou. Muitos dos que se ocupam do passado colonial português defendem uma abordagem mais rigorosa e mais bem fundamentada. E percebem, para além disso, que pior do que não falar sobre esse passado é substituí-lo por uma narrativa apologética do colonialismo português, ou por uma comemoração simplista e caricatural de figuras como o padre António Vieira.

A estátua que me levou a escrever este texto foi erigida em Lisboa há escassos três anos, e não propriamente no século XIX ou sob o Estado Novo. Há alguns dias o atual presidente da câmara lisboeta reiterou que se revia na estátua porque esta mostrava que Vieira tinha uma "dimensão humanista e de tolerância num tempo em que isso não era de todo regra". Nessa ocasião, voltou a anunciar a criação de um "Museu da Descoberta", qualificando de "gratuita" toda a polémica gerada por este seu projeto. Mais ou menos pela mesma altura, o mayor de Londres anunciava que iria promover um debate aberto, informado e plural sobre a presença, na cidade, das marcas do império britânico. Em Portugal esta atitude mais crítica sobre o passado colonial já existe em vários sectores da sociedade. Seria importante que chegasse às autoridades políticas e religiosas, bem como à sociedade civil. E seria também importante que uma análise crítica de figuras como o padre Vieira deixasse de ser vista como antipatriótica. A finalidade destas análises é contribuir para uma sociedade melhor, assente numa relação com o passado mais informada, mais plural e mais justa.

https://expresso.pt/opiniao/2020-06-25-Para-uma-visao-mais-informada-e-plural-do-padre-Antonio-Vieira

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Sidónio Muralha - Raízes



* Sidónio Muralha


'São canta Amália Rodrigues'
Velhas pedras que pisei
saiam da vossa mudez
venham dizer o que sei
venham falar português
sejam duras como a lei
e puras como a nudez.

Minha lágrima salgada
caíu no lenço da vida
foi lembrança naufragada
e para sempre perdida
foi vaga despedaçada
contra o cais da despedida.

Visitei tantos países
conheci tanto luar
nos olhos dos infelizes
e porque me hei-de gastar?
vou ao fundo das raízes
e hei-de gastar-me a cantar.

Música: Henrique Lourenço
Letra: Sidónio Muralha

segunda-feira, 22 de junho de 2020

José Gameiro - A vidente e a pandemia


DIÁRIO DE
UM PSIQUIATRA


* José Gameiro 

Ao longo desta pandemia tenho-me lembrado muito desta história

Há muitos anos tive uma doente que era vidente. Acompanhava pessoas que a procuravam com os mais variados problemas da vida. Dava-lhes apoio, tinha uma capacidade empática fora de vulgar, mas também, um bom senso notável. Cada vez que se apercebia que quem a procurava tinha sérios problemas mentais encaminhava para um psiquiatra ou psicólogo.

Recebi vários doentes que me referenciava e eram sempre situações clínicas complexas ou que poderiam tornar-se graves sem tratamento. Um dia foi ela que me procurou. Estava triste, cansada, tinha parado a sua atividade, disse-me que não conseguia ajudar as pessoas. “Sabe o que mais me custa, quando estou exausta? Prever o futuro.” Dei-lhe uma resposta de bom senso: “Mas ninguém consegue prever o futuro...”

Explicou-me que estava completamente enganado. “Claro que não acerto completamente, mas frequentemente fico lá perto.” Como é que consegue isso, perguntei. “É muito simples, as minhas previsões condicionam parcialmente as atitudes da pessoa. Se eu lhe digo, por exemplo, que vai conhecer um príncipe encantado, ela fica mais predisposta a que isso aconteça.” Fiquei por aqui e não lhe perguntei nada acerca do meu futuro... Ao longo da pandemia tenho-me lembrado muito desta história. Será possível prevenir o futuro, condicionando-o?

Se quisermos pensar no que nos aconteceu, sem recorrer a raciocínios epidemiológicos, feitos com a melhor das boas vontades, mas com uma alta dose de aleatório, temos uma forma mais simples de o fazer. Ao confinarmos uma grande parte da população, tentámos condicionar o futuro. Mas será possível que uma tão grave decisão política tivesse sido tomada utilizando a mesma ‘epistemologia’ de uma vidente?

Imaginemos que não queremos encontrar alguém, que temos a certeza de que nos irá fazer mal. Naturalmente, evitamos todos os caminhos, situações, contextos em que a probabilidade de encontro seja a mais próxima possível do zero. Mas, no limite, a única forma segura de o fazer é não sairmos de casa e não deixar ninguém lá entrar. Os que tentaram fazer de forma diferente, talvez numa atitude de indiferença perante o perigo — vamo-nos encontrar tantas vezes que acabamos por criar defesas —, ‘espalharam-se’. Os exemplos não faltam, Reino Unido, Suécia, Suíça foram alguns dos países com taxas de letalidade muito mais altas do que nós. Estes países optaram por pensar que sabiam. Utilizaram o conhecimento de outros vírus e aplicaram-no cegamente. Uns persistiram no erro, outros arrepiaram caminho, mas já era tarde.

Agora, passados mais de três meses, é fácil dizer que a estratégia da vidente, foi boa mas não suficiente. Se alguém, responsável, se tivesse lembrado dos lares e não tivessem metido os pés pelas mãos, com a obrigatoriedade de usar máscara, os resultados teriam sido melhores. Desde cedo que se soube que o maior risco é a idade, variável, cada vez mais evidente, mas por razões que me escapam (constitucionais, discriminatórias?), os mais velhos foram pouco protegidos. Ou seja, com o tempo, a epistemologia da vidente foi sendo afinada. Quando se soube que só cerca de 10% dos infetados o tinham sido em contexto social, cerca de 35% tinham sido infetados nos lares e que a taxa de mortalidade dos mais de 70 anos é de cerca de 17% foi possível estratificar melhor o risco.

Tivemos a sorte e o saber de não deixar passar muito tempo, entre afirmar que seria uma situação semelhante à da gripe e perceber que não percebíamos quase nada do que estava a acontecer. Tal como a vidente que ganha a sua vida a prever o imprevisível, mas que tenta condicionar o futuro, nós fechámos as portas e pusemos uma pancarta a dizer: “Não entras.”

Talvez esta pandemia nos faça mais humildes e nos leve a aceitar melhor que percebemos muito pouco do que se está a passar. Mas a incerteza não é muito popular. Uma boa e dramática lição de vida.

domingo, 21 de junho de 2020

Quadras em torno do "malmequer"


 Malmequer, por Mariza, os versos que prefiro
(Aldina Duarte / Popular )

Mal me quer a solidão
Bem me quer a tempestade
Mal me quer a ilusão
Bem me quer a liberdade

Mal me quer a voz vazia
Bem me quer o corpo quente
Mal me quer a alma fria
Bem me quer o sol nascente

Mal me quer a casa escura
Bem me quer o céu aberto
Bem me quer o mar incerto
Mal me quer…



Malmequer Pequenino, por Amália Rodrigues
(Popular / Nuno da Camara Pereira / João de Noronha)

O malmequer pequenino
disse um dia à linda rosa
por te chamarem rainha
não sejas tão orgulhosa

Papoilas que o vento agita
não me canso de vos ver
há lá coisa mais bonita
que ser simples sem saber

Por te amar perdi a Deus
por teu amor me perdi
agora vejo-me só
sem Deus sem amor sem ti

Aquela mulher pecou
por amor se fez fadista
tão longe o fado a levou
que Deus a perdeu de vista.


Malmequer (mentiroso), por Amália Rodrigues
(popular)

Oh, malmequer mentiroso!
Quem te ensinou a mentir?
Tu dizes que me quer bem
Quem de mim anda a fugir!

Desfolhei o malmequer
No lindo jardim de Santarém!
Malmequer, bem-me-quer,
Muito longe está quem me quer bem!

Um malmequer pequenino
Disse um dia à linda rosa:
Por te chamarem rainha,
não sejas tão orgulhosa!

Malmequer não é constante,
Malmequer muito varia!
Vinte folhas dizem morte
Treze dizem alegria!


quinta-feira, 18 de junho de 2020

Carlos de Oliveira - (poema 45″)

Carlos de Oliveira
 
Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.

Carlos de Oliveira
in ‘Mãe Pobre’

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Herberto Helder Sobre um poema

*  Herberto Helder

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Sidónio Muralha - Amantes separados



* Sidónio Muralha

Como num búzio
O mar repete essa balada
Numa canção
Feita de sonho e ansiedade
Meu coração
Repete a história apaixonada
Duma presença que se fez
Longe, saudade

A vida quis que fosse assim
Nosso destino
No grande amor que quis
Vencer os vendavais
A vida quis que fosse assim
Nosso destino
Onda quebrada contra a praia
E nada mais

E a vida passa
Como os versos que escrevemos
E as promessas que fizemos
No dia da despedida
E a vida passa
Passam os dias rasgados
Tudo passa e passa a vida
Dos amantes separados
Sidónio Muralha / António Mestre

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Sophia de Mello Breyner - Em todos os jardins

* Sophia de Mello Breyner

Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Gonçalo M. Tavares - O livro

* Gonçalo M. Tavares

De manhã, quando passei à frente da loja
o cão ladrou
e só não me atacou com raiva porque a corrente de ferro
o impediu.
Ao fim da tarde,
depois de ler em voz baixa poemas numa cadeira preguiçosa do
jardim
regressei pelo mesmo caminho
e o cão não me ladrou porque estava morto,
e as moscas e o ar já haviam percebido
a diferença entre um cadáver e o sono.
Ensinam-me a piedade e a compaixão
mas que posso fazer se tenho um corpo?
A minha primeira imagem foi pensar em
pontapeá-lo, a ele e às moscas, e gritar:
Venci-te.
Continuei o caminho,
o livro de poesia debaixo do braço.
Só mais tarde pensei ao entrar em casa:
não deve ser bom ter ainda a corrente
de ferro em redor do pescoço
depois de morto.
E ao sentir a minha memória lembrar-se do coração,
esbocei um sorriso, satisfeito.
Esta alegria foi momentânea,
olhei à volta:
tinha perdido o livro de poesia.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Maria Teresa Horta - Morrer de amor

* Maria Teresa Horta

Morrer de amor
ao pé da tua boca

Desfalecer
à pele
do sorriso

Sufocar
de prazer
com o teu corpo

Trocar tudo por ti
se for preciso.