quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Manuel Augusto Araújo - Pode a Esquerda renunciar à Cultura?

* Manuel Augusto Araujo
2020.11.25

Quando já nada me indignar (e só então) terei começado a envelhecer – André Gide

O meu amigo António Cabrita, a quem enviei a carta de despedida aos meus colegas da Câmara Municipal de Setúbal, fez o favor de a publicar na Revista Caliban antecedendo-a de um texto muito incisivo, como é seu timbre.

Ilustrou-a com a imagem dos Paços do Concelho de Setúbal em que está impressa mais uma brutalidade de iniciativa da Dores Meira. Além da tinta utilizada ser completamente inadequada a um edifício de qualquer centro histórico, a cor deve fazer o Raul Lino, autor do projecto, dar voltas no túmulo. Um dia alguém com um mínimo de cultura e bom senso terá que as corrigir. Agora mais uma selvajaria feita na Casa da Cultura e a proclamação de Setúbal Cidade Taurina, que remendos mal colados apressadamente não disfarçam

. São mais algumas das muitas iniquidades a acrescentar ao catálogo do Bestiário dessa prepotente e ignorante personagem.

Dores Meira é uma populista suburbana, uma pequeno-burguesa alumiada por deslumbramentos com rascas tiques dondocas. Os seus grandes desvios de direita são contumazes. Vão da concordância com algumas medidas dos governos do PS e até do PSD-CDS, em dissidência com as posições do PCP, cedências a grandes empresas sediadas em Setúbal travadas à beira do precipício, conflitos constantes com as estruturas sindicais alinhando com políticas reaccionárias, um comportamento na autarquia reiteradamente pidesco de que até faz gala, o público e repetido apoio a personagens como Tomás Correia nas eleições e assembleias do Montepio, são algumas dessas evidências. Na Câmara de Setúbal o que de bom foi e é feito deve-se sobretudo ao trabalho de outros de que ela arrecada os louros. O que de bom há de arte pública em Setúbal nenhuma é de iniciativa dela e do seu adorado decorador.

A Dores Meira é uma fraude, um embuste bem emplumado. Reconheça-se que o que lhe falta em inteligência, cultura e saberes sobra-lhe em esperteza e neste mundo sem dignidade os chicos-espertos são os que melhor caminho fazem. O seu fundo ideológico é o que colhe nas peregrinações a Fátima alumbrada com os pastorinhos, as aparições, os milagres, as revelações. Sobre esta personagem, o seu perfil, atitudes e decisões é muito o que se atira para debaixo do tapete por oportunismo político em concessão aos resultados que obtém por um desbragado populismo sempre num dá cá o pé toma lá o pé vicioso. Isto acaba sempre por ter um custo, já conhecido com outros personagens e em diversas circunstâncias que, mais tarde ou mais cedo de um ou de outro modo, se irá pagar

 

Quem ignora efectivamente que os lobos andam em alcateia, perguntava Deleuze, e a inquietação não nos deve largar o pé, porque não é incomum que os lobos se queiram dissimular de cães nossos amigos.

Infelizmente, no reino da Esquerda aflora como noutros quadrantes o pior dos cinismos. Tempos houve em que ser de Esquerda implicava uma moral e uma cultura, mas os piores vícios institucionais infiltraram os partidos e vemos como o mau exemplo de uma “política da indiferença” contagiou a acção política. Aí avançam os medíocres, e com eles apodrecem os ideais.

Quando abandonamos qualquer pauta para os valores na cultura e a exigência da dignidade no alvor das novas sensibilidades e seguimos a estratégia de esvaziamento do mercado, é de admirar que gradualmente a Esquerda perca votos?

Como achar que é aceitável, por exemplo, que em Setúbal, na Praça José Afonso, um partido de Esquerda acolha em época eleitoral o espectáculo de um cantor kitsch como o Toy? Não faz doer a alma, uma tão grande rendição à venalidade mais inconsciente? É um exemplo do desnorte que chegou às Câmaras e das más escolhas dos Partidos nos seus cabeças-de-listas, esses novos cínicos que “sabem sempre do que povo gosta”.

É de Calvino, um líder religioso muito antigo, a seguinte observação: «os governantes de um povo devem envidar todo o esforço a fim de que a liberdade do povo pelo qual são responsáveis não desvaneça de modo algum em suas mãos. Mais do que isso: quando dela descuidarem, ou a enfraquecerem, devem ser considerados traidores da pátria.» A bondade deste postulado não deve ser encarado como ingénuo e é exigível que seja reivindicado como fundamento. Se associarmos este pronunciamento às políticas culturais de tantas câmaras ligadas a partidos de Esquerda ficamos deprimidos com a facilidade com que afinal também se acostam a derivas populistas e como isso encurta a dignidade, o primeiro plinto para a consciência livre.

Não há ressalvas para aqueles que se abandonam à oportunidade e fazem do populismo o cerne do seu poder — sejam de Direita ou de Esquerda. Quem nadifica nadificado fica.

Há coisas irrenunciáveis no projecto de Esquerda e uma das mais perenes é a reconstrução da justiça por meio da qualidade da cultura que se promove e cultiva — são cegos aqueles líderes camarários que se entregam cegamente à facilidade e aos baixos ditames do mercado, em nome de uma ignorância que o actual momento político já não consente.

É preciso fazer a crítica e a rectificação dos modelos.

O que aconteceu na Câmara de Setúbal nos últimos anos, como nos mostra o retrato pungente e pouco menos que indignado que dela faz Manuel Augusto Araújo é um bom exemplo dos maus exemplos em que a Esquerda se deixa encurralar.

Mas deixemos que esta Carta de Despedida com que Manuel Augusto Araújo reagiu à sua dispensa da vereação cultural da Câmara fale por si. Leiam-na.

António Cabrita



e o exigente espírito de Bocage continua a ser traído

UMA BREVE CARTA PARA UM LONGO ADEUS

Caros colegas, amigos e camaradas

A presidente da Câmara de Setúbal , Dores Meira, e o vereador da Cultura, Pedro Pina, decidiram que sou um excedentário e que a autarquia dispensa a existência de um assessor cultural por, segundo eles, ser desnecessário. Julgo que com todos trabalhei bem e de muitos com quem trabalhei fiquei amigo. Obrigado a todos. O mesmo não poderei dizer de quem ocupa os mais altos cargos executivos relacionados com a cultura.

Durante estes anos tenho a consciência de ter cumprido com o que me foi possível, dado o contexto existente. A maioria dos projectos que delineei não conseguiram ultrapassar a espessura óssea que protege a noz de massa cinzenta encerrada naquelas cabeças dos mandantes em Setúbal. Alguns realizaram-se com êxito. Outros ainda, como no ano passado o Festival de Poesia “O Som Da Tinta”, de que com a Maria João Cantinho elaborei o programa a quem muito agradeço a colaboração, e o assinalar dos 150 anos da Abolição da Escravatura no território sob administração portuguesa, foram roídos até não ficar quase nada, mau grado o empenhamento da Mónica Duarte e da Teresa Neto, que salvaram o que era possível salvar, que foi muito pouco, enquanto outros, como um Encontro Nacional sobre Cultura, nem sequer foram considerados. Os propostos para 2020, recuperando alguns adiados, outros erodidos e um de grande exigência e que tinha a ambição de ter impacto nacional, foram detalhados e enviados para avaliação. Devem ter caído da corda bamba do funambulismo cultural.

Do que consegui fazer — o rol apesar de tudo não é curto — refiro, em particular, O Museu está na Rua, no Bairro da Bela Vista, o ter conseguido que o escultor Virgílio Domingues fizesse uma importante doação das suas obras à cidade de Setúbal, o ter proposto que os escultores Sérgio Vicente e João Duarte fizessem obra pública — fiz mesmo uma montagem de esculturas de João Duarte a situar em Setúbal que apresentei à Dores Meira, numa reunião em que participou a Ana José Carvalho, na altura chefe de Divisão da Cultura, a presidente Meira nem sequer sabia que existia um escultor João Duarte — que se distinguem da banalidade que por aí abunda, quando não são mesmo coisas obscenas e culturalmente abjectas, como os chocos ou aquela decoração da entrada dos Paços do Concelho que devem deixar roxas de inveja as mais bem sucedidas madames blanches. Dirão que é o que muita malta gosta. Haverá quem goste, também gosta das rosinhas, dos barreiros, dos gouchas, dos famosos, dos mais reles aos mais polidos. É a degradação generalizada do gosto que abre caminho aos conservadores e ao pior reaccionarismo, mas uma câmara, sobretudo uma câmara comunista, não pode nem deve alimentar e incentivar populismos rasteiros, as predilecções dos beócios. Contribuir para a corrupção do gosto e do espírito crítico acaba sempre por ter custos elevados. Como escreveu Albert Camus, “tudo o que degrada a cultura encurta o caminho para a servidão”. O aviltamento que se promove a médio, mesmo a curto prazo, contribui para o crescimento da direita. Só por oportunismo e estupidez é que os filisteus não o percebem, já que confundem que contrariar a escória é elitismo .

Dos muitos projectos que foram parar ao caixote do lixo há dois que me ferem particularmente. O primeiro, praticamente no princípio de vir para cá, quando Setúbal integrou o Clube das mais Belas Baías do Mundo. Propus e elaborei o projecto de se realizar um Festival de Literatura de Viagens em que as viagens muitas vezes são pretexto de grandes dramas humanos. Quando falei no projecto à Dores Meira, então vereadora da Cultura, apercebi-me da sua perplexidade. Apesar disso, pus mão à obra, falei com alguns escritores e editores meus conhecidos, que se entusiasmaram com o projecto. Detalhei-o entregando para avaliação da vereadora. Embati num tremendo silêncio. Quando voltei à carga disse que aquilo não interessava. Devia ter imediatamente percebido que para ela, Lord Jim, A Ilha do Tesouro, Ultramarina, Peregrinação, Pela Estrada Fora, O Coração nas Trevas, Viagens na Minha Terra, As Cinco Semanas em Balão, Moby Dick, na sua imensa diversidade, lhe eram completamente desconhecidos, um desconhecimento que se estende mesmo aos Guide Bleu da Hachette ou os de Portugal do Raul Proença. Para aquela ignorante, com tiques de snobeira suburbana, literatura de viagens são os guias que se vendem nos quiosques da esquina.

O outro foi quando a autarquia adquiriu o Quartel do 11 e se chegou a pensar aí instalar a Divisão de Cultura. Obtive uma planta, fiz uma distribuição pelos espaços sem grandes alterações à estrutura, para minimizar custos. Nessa planta — deve estacionar numa gaveta qualquer se é que não foi já destruída — figuravam uma galeria de arte e um auditório onde até seriam possíveis realizar espectáculos de pequeno formato. Mais tarde a Câmara chega a acordo com o Turismo de Portugal para aí se instalar uma escola de hotelaria. A arquitecta encarregada do projecto foi Teresa Pontes que, enquanto fazia levantamento do existente, estabeleceu vários contactos para apresentar um programa de ocupação de espaços. Uma dessas reuniões foi com a Ana José Carvalho e comigo. Expus-lhe a ideia da galeria e do auditório. A galeria a ser gerida autonomamente pela Câmara, o auditório partilhado entre a Câmara e a escola de hotelaria. Aceitou-as imediatamente, passou à prática. Deve ter ficado algo surpreendida quando a autarquia nomeia o Luís Liberato e o José Luís Catalão para acompanharem a obra da galeria. Talvez por isso teve a delicadeza de, nalgumas das vezes em que visitou a obra, dirigida no terreno pelas arquitectas Karoline e Lígia, me convidar para a acompanhar. Nesses encontros surgiu-nos a ideia de a primeira exposição a realizar na galeria ser sobre o projecto de reabilitação do Quartel do 11, a sua relação com o Centro Histórico de Setúbal, contextualizar esses conteúdos com as questões mais gerais da reabilitação dos edifícios históricos, organizando-se um amplo debate sobre essa problemática com a participação da Ordem dos Arquitectos. Iniciaram-se trabalhos nesse sentido. Na câmara, as dras. Maria Francisca Ribeiro e Ana Catarina Stoyann começaram a recolher elementos sobre o centro histórico de Setúbal. A Teresa Pontes e eu, no atelier dela, a tratar do guião da exposição e das questões a propor e discutir com a Ordem dos Arquitectos. Subitamente, tudo foi suspenso e descartado. A presidente, com a prepotência e a incultura que a caracterizam, tinha decidido organizar uma exposição muitíssimo mais relevante: a Vida e a Obra de José Mourinho!!! exposição que inaugurou aquela galeria de arte. A cabal demonstração do gabarito intelectual e cultural dessa gente e do populismo mais rasca.

Pouco depois Pedro Pina chega à câmara, é-lhe atribuído o pelouro da cultura e tive a esperança, ainda que bruxeleante, de alguma coisa mudar. Enviei-lhe mail com alguns projectos e algumas mudanças estruturais no pelouro da cultura, que considerava e continuo a considerar nucleares. As mais relevantes eram integrar as bibliotecas no pelouro da cultura; assumir a direcção das galerias municipais no referente às exposições, aliás projecto e plano amplamente discutido e aprovado no Departamento antes da inauguração da Galeria do 11, discussão inútil como o tempo transcorrido comprovou. Isso vinha na sequência das exposições nos Claustros do Palácio Frixel do IPS, colaboração entre a CMS/IPS que coordenei e teve impacto. Destaquem-se, entre as realizadas, as de Paula Rego, Bartolomeu Cid dos Santos, José Santa Bárbara, Teresa Dias Coelho, Isabel Sabino. Libertar a Divisão da Cultura de acções que são sobretudo entretenimento, em que a cultura é mais que residual, de que o exemplo mais flagrante são as marchas populares que deveriam ser produzidas pelo turismo e afins e não pela Cultura. Encontrei o Pina, já impante como vereador da Cultura, que afirmou nada ter recebido. Reenviei o mail, a mesma resposta. Esquece o Pina que o gmail tem uma coisa chamada mailtrack que comprova a recepção dos mails, embora lhe dê o benefício da dúvida de não ter lido o mail por ter ficado encalhado nos fradelins da sua adjunta.

Pouco tempo decorrido, quando da finalização de O Museu está na Rua, projecto em que só os pormenores finais, insignificantes para o projecto, aconteceram no princípio do mandato Pina, houve uma sessão que assinalou o seu término e que precedeu a visita à obra acabada. Foi exibido um pequeno vídeo onde eu, que tinha desenhado a ideia e acompanhado o projecto criativa e brilhantemente realizado por João Limpinho, tinha sido rasurado. Mais, o vereador Pina tinha nomeado para coordenadora do projecto a sua adjunta Ana Luísa Domingues, uma presunçosa e pretensiosa personagem de saberes colhidos no google e na wikipédia, que não tinha percebido nada de nada de O Museu está na Rua, a obra e os objectivos, como demonstrou na exibição de um parvóide power-point na Casa da Baía. Quando se pensou instalar um Centro de Interpretação de O Museu está na Rua, fiz um texto justificativo teorizando sociológica e esteticamente as suas bases, tem cerca de cem páginas, texto que até chegou a ser enviado ao editor da Abysmo, João Paulo Cotrim, para ser publicado e integrado nesse Centro. Deve andar por aí a caminho de algum contentor.

Confrontado com esse espectáculo, ausentei-me sem aviso o que, por um azar dos távoras, pelo meu telemóvel ter ficado sem bateria do que só dei conta já em casa em Lisboa, provocou algum alarido. A conclusão do Pina é que tenho mau feitio. É um facto. Tenho mau feitio perante a prepotência, a videirice, a ignorância, o oportunismo, a rasquice, o populismo, as mentirolas grandes ou pequenas.

O segundo sinal foi quando, pouco tempo antes de ser inaugurada a exposição das obras de Virgílio Domingues, no primeiro andar da Galeria Municipal, ter detectado que três esculturas tinham desaparecido. Rebobinando. As esculturas do Virgílio Domingues estavam já há muito tempo estacionadas num armazém em Azeitão. Enquanto não se encontrava um espaço para as colocar definitivamente, fiz mesmo

algumas propostas para exposições parciais em locais possíveis para dar a conhecer parte do espólio cedido à CMS. Nos impasses fizeram-se algumas exposições, uma primeira na Casa da Baía, outras duas por cedência temporária à Câmara da Amadora e à galeria do SPGL. Estas duas a pedido expresso do Virgílio Domingues, exasperado por as esculturas não serem exibidas — entre a entrega das obras à autarquia e a sua instalação na Galeria Municipal decorreram cinco anos! — mas sempre e só com as esculturas sujeitas a rigoroso inventário e comprovativos de seguro à saída e à reentrada. Aconteceu mesmo que, no caso da cedência à C.M. Amadora, o primeiro transporte retornou sem nenhuma escultura porque traziam a listagem das esculturas mas tinham-se esquecido do comprovativo do seguro, não se aceitaram as reiteradas garantias telefónicas. O Liberato, director do Departamento, decidiu e bem transferi-las para outro armazém na Bela-Vista, onde existiam melhores condições de segurança. Quando soube, fui verificar como estavam depositadas. Estavam lá todas, bem distribuídas num espaço autónomo em relação ao restante armazém. A segurança era garantida por um fiel de armazém. Sucede, quando aconteceu o seu desaparecimento, que o fiel de armazém tinha sido removido por ordem do Liberato que, com essa decisão, assumiu a responsabilidade do que pudesse suceder. É o mínimo que a melhor boa vontade lhe pode conceder sem, no entanto, deixar de registar a ligeireza, a leviandade de tal, decisão dado o que ali estava estacionado, mas para ele esculturas, candeeiros, latas de tinta, etc., devem ter equivalente valor. O armazém estava sem qualquer controlo. Pós-inauguração, passados quase seis meses sem novas nem mandados, o Virgílio, que delicadamente se absteve de referir o facto na inauguração, escreve à presidente para saber que medidas tinham sido tomadas para se conhecer o paradeiro das esculturas. Aqui del-rei, o Pina e o Liberato foram tirar o sucedido debaixo do tapete. O caso foi parar à Judiciária, um pró-forma para se procurarem ilibar dado o tempo decorrido. Face a negligência tão grave da autarquia o Virgílio poderia se quisesse, disso foi alertado por várias vias, colocar um processo à Câmara para ser indemnizado, o que nunca iria fazer. Nada paga o desaparecimento de uma obra de arte. Se a Mona Lisa do da Vinci, é subtraída ao Louvre, o Nascimento de Vénus do Boticelli aos Uffizi, As Les Demoiselles de Avignon de Picasso ao Moma, que interessam as indemnizações? Nada. Nada paga o desaparecimento de uma obra de arte. O caso aqui era o da responsabilidade directa e indirecta do Liberato por ter retirado segurança, qualquer que fosse, ao armazém o que facilitou aquela ocorrência. Abriram um inquérito interno para se irresponsabilizarem, se possível tentar entalar alguém. Até hoje nada de relevante sucedeu. Há responsáveis, pelo menos morais, pelo sucedido. Fora um outro funcionário da autarquia e seria objecto de rigoroso processo disciplinar.

Para terminar e não me alongar numa lista que poderia ser bem longa, a Dores deve-me um favor, não é pequeno. No centenário do Lopes-Graça houve uma reunião para definir um programa comemorativo. Seis elementos da Associação Lopes-Graça, a Dores e eu. A Dores entrou em grande estilo afirmando a sua admiração pelas CANÇÕES ERÓTICAS DO LOPES-GRAÇA!!! Silêncio, olhares constrangidos nos outros sete participantes em que se discutia uma proposta elaborada pelo Alexandre Branco Weffort, a que dei algumas contribuições, de gravação da obra coral do Lopes-Graça, projecto a ser liderado pela Câmara de Setúbal, que a Dores anulou porque não admitia que os coros de Setúbal fossem seleccionados em função do reportório e da tipologia dos coros pelos maestros José Robert, José Luís Borges Coelho e Alexandre Branco. Seria ela, com toda a sua ciência musical, quem decidiria a apuração dos coros, obviamente para distribuir benesses, o que é mais que risível sobretudo se se soubesse de outro sucesso de que tive, por acaso, conhecimento. Fiz parte, durante uma dezena de anos, de um júri de atribuição de bolsas de artes visuais da Fundação Gulbenkian, conhecia muita gente de outros departamentos da FCG. No intervalo de uma dessas reuniões fui abordado por um dos directores do sector da música que, entre o assombrado e o sarcástico, me inquiriu do que se passava em Setúbal. O caso era que a Dores tinha ido à FG angariar apoios para o Concurso de Canto Lírico Luísa Todi. No decorrer da conversa esse director perguntou-lhe porque é que a Câmara de Setúbal/Cultura não tinha dado resposta a uma oferta, já com um ano, de dois concertos da Orquestra da Gulbenkian em Setúbal. A resposta da Dores deixou-o siderado: em Setúbal não havia público para esse género de música (sic)!!! Caramba, era aquilo uma vereadora da Cultura!!! Mais tarde teve um raro acesso de bom senso convidando o João Pereira Bastos para dirigir o FLT embora com o propósito de “Setúbal ser Capital do Peixe e da Música ” (sic).

Retornando às Canções Eróticas do Lopes-Graça. Com tanta gente naquela reunião, naturalmente afirmação tão altissonante ultrapassou as paredes da sala. Umas semanas depois fui assediado por dois jornalistas, um de um diário outro de um semanário, que me pediam que a confirmasse. Fiz tudo para tirar a espoleta da bomba, sem nunca ter a certeza de o ter conseguido. Obviamente avisei quem devia avisar caso se desse a explosão. Tive sucesso sem saber bem como. A Dores deveria ter ficado devedora de agradecimento por a ter libertado desse ónus. Deve ter ficado desagradada, mesmo furiosa, por a ter impedido de ser, com as Canções Eróticas do Lopes-Graça, quiçá mais célebre que Santana Lopes e os Concertos de Violino de Chopin.

Em conclusão, para não me alongar nesta listagem, dado o perfil intelectual, cultural e político destes dois edis, que é nulo ou muito próximo do zero, passarem-me a ferro é natural. Podem alegar que pouco contribuí para as políticas culturais, uma inexistência em Setúbal tal como no país. As Divisões de Cultura praticamente são variantes das agências de promoção de espectáculos afirmando estar a valorizar a formação e a captação de novos públicos, consigna que atravessa o país de lés a lés e que de tanto ser repetida perdeu qualquer significado. As excepções, as raras excepções de algumas iniciativas, só confirmam a regra. As outras são biombo para uma sucessão de entretenimentos ditos culturais, uns melhores outros piores, uns com mais substância cultural outros nem por isso, outros em que a alienação subjacente, na melhor das hipóteses, é disfarçada com tiques modernaços, segue a lógica perversa das modas das indústrias culturais e criativas da gestão das artes, em que não se promove ou só se promove muito residualmente a humanização e a socialização dos sentidos, são de pouca memória cultural e política. Globalmente alienam as artes e a cultura, numa sucessão de espectáculos e eventos que tanto podem ser aqui como numa câmara PS, PSD ou CDS, anulando qualquer perspectiva de democratização da cultura, o que deve, deveria, ser o objectivo de uma Câmara liderada pela CDU.

Fiz o que consegui fazer entre boicotes, incompreensões, rasteiras. O que consegui fazer, pouco mas relevante, foi feito com seriedade intelectual, cultural e política. O que não consegui fazer a eles pode ser assacado. Nunca poderiam esperar que alinhasse no popularucho, nos populismos miseráveis objectivamente retrógados que invadem a cultura já de si frágil, por se submeterem sobretudo à lógica do entretenimento, em que a cultura disfarça o vazio desta sociedade, dissimulando-o.

Como escreveu Musil no Homem sem Qualidades”se de dentro a estupidez não se assemelhasse tanto à inteligência, se de fora não pudesse passar por progresso, génio, esperança, aperfeiçoamento ninguém quereria ser estúpido e a estupidez não existiria. Ou pelo menos seria mais fácil, combate-la”. Tudo se agrava quando a estupidez tem êxitos, alguns pontuais outros factícios. Torna-se mais convencida e arrogante, até se ufana de ser aplaudida pelos reaccionários que deles tirarão dividendos. Nunca contribuirei para esse triunfo, que será mais que previsível com a continuidade desses comportamentos.

Aparentemente somos do mesmo Partido. Não somos nem nunca seremos. Eu sou militante, eles inscritos tal como poderiam ser de uma qualquer associação ou de um clube de futebol.

Até sempre, com um obrigado a todos com quem trabalhei a navegar nesse mar de escolhos.

Manuel Augusto Araújo

https://revistacaliban.net/pode-a-esquerda-renunciar-%C3%A0-cultura-30a4b08aed67

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