* José Pacheco Pereira
Estas vidas que temos no arquivo, ferroviários, costureiras, operários industriais, estivadores, são a nossa história, tanto mais real quanto menos escrita.
Há dias, numa intervenção que fiz numa cerimónia, citei um
célebre poema de Bertold Brecht, “Perguntas de um Operário Letrado":
O objectivo era referir-me ao Arquivo
Ephemera que trata de César e do cozinheiro, da grande história e da
história invisível dos pequenos, da multidão que faz o mundo em que vivemos
como se não tivesse nome, nem identidade. Na sequência, recebemos pelo correio
um conjunto de documentação e uma série de notas manuscritas sobre uma família
lisboeta das “classes populares” nos últimos cem anos, retratando muitas das
coisas desse quotidiano, da condição feminina, da mortalidade infantil, da
doença, da violência doméstica, da luta contra a deficiência, a embriaguez, a
tuberculose. Local: Alcântara, Lisboa, uma zona pobre da cidade. Personagens:
uma família muito numerosa, seis filhos numa geração, oito na geração seguinte
e “muitos outros que não chegaram a nascer”. Profissões dos homens: empregados
do comércio, carpinteiros, ferroviários. Profissões das mulheres: “criada”,
doméstica. Anos: dos anos vinte a cinquenta do século XX.
Dos oito filhos, dois nasceram cegos e viveram em asilos
para cegos em Campo de Ourique, o asilo Nossa Senhora da Saúde e o Asilo Escola
António Feliciano de Castilho. Um outro filho morreu de meningite com dois
anos, outro de difteria com seis e, por último, outro, com um ano, de sarampo e
pneumonia. Parece uma família especialmente vítima de desgraça, mas não, é o
regulador natural destas famílias numerosas e pobres, que viviam em péssimas
condições de habitação e salubridade. A heroína desta história é uma mulher, a
mãe dos oito filhos, que foi “forçada a casar” em 1924, presume-se porquê,
estava grávida e teve o seu primeiro filho poucos meses depois de casar. Os
homens desta história verdadeira são de um modo geral mais educados do que as mulheres,
embora estejamos a falar da 2.ª ou 3.ª classe. Mas são “estroinas, boémios,
mulherengos”, sem dinheiro e, por fim, alcoólicos. Um deles, correspondendo
também a um perfil comum nas “classes populares” lisboetas destes anos, era
“ateu” e do contra.
A violência doméstica fazia parte do quotidiano. Como o pai
era ateu, nenhum dos filhos era baptizado e, por isso, a mãe não conseguia
obter a ajuda das instituições da igreja. Um dia roubou umas moedas em casa e
levou os filhos à igreja para os baptizar. Quando do funeral de uma filha, ele
descobre o averbamento do baptizado e, nesse mesmo dia, dá uma “tareia” à sua
mulher.
Depois há toda uma história sentida como sendo de
humilhações. Por exemplo, o filho mais velho, cego de nascença, teve que se
apresentar à inspecção para a tropa. E lá foi, nu, mostrar à evidência de que
não podia ser apto… Ou a filha mais nova, que nos ofereceu este espólio, e que
relata a sua experiência na primária com uma professora “gorda, feia e má” que
batia nos alunos “agarrando pelos dedos para baixo, o que fazia com que a
reguada apanhasse o pulso cujas veias ficavam inchadas”. Mas no espólio vem uma
micro-história infantil, O Patinho
Feio, oferecida pela mesma professora com uma inscrição a um canto que
dizia “por saberes bem a lição”…
É cómodo e fácil achar hoje que esta história ou histórias
como esta são pejorativamente vistas como sendo um “choradinho”, ou um daqueles
fados da desgraça, que também nestes anos eram vendidos em folhas volantes
pelas feiras. Estas pessoas viviam no centro da grande cidade, mas pouca gente
das classes médias ou altas, para usar estes eufemismos, passava por lá. Nestes
anos, vinte, trinta, quarenta do século XX, a pobreza urbana nas grandes
cidades Lisboa e Porto (nas “ilhas” do Porto, por exemplo…) era enorme, mas
estava acantonada fora da vista, fora da literatura, e fora dos jornais que só
visitavam os “bairros insalubres” quando estes se tornavam um perigo por causa
das epidemias. Na verdade, estas vidas tinham como que um escudo invisível
protegendo seu interior e mesmo a mendicidade tendia a ser tratada como uma
colecção de “tipos” mais ou menos folclóricos.
Voltando ao cozinheiro, ou melhor, aos “cozinheiros” que
temos no arquivo, ferroviários, costureiras, operários industriais,
estivadores, são a nossa história, tanto mais real quanto menos escrita.
2 de Janeiro de 2021, 0:05
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