DIÁRIO DE UM PSIQUIATRA
* José Gameiro
“Senhor doutor, venho cá porque não sei o que hei de fazer à minha vida. Na minha idade já devia saber, era ficar sossegado e rezar para ter saúde até ao fim.”
Não me canso de ouvir histórias originais, e esta ‘cheirou-me’ logo que ia ser bem diferente. Quase todos os psiquiatras têm um lado coscuvilheiro, com a vantagem de o conseguir pôr a render...
“Tenho 82 anos, sou um tipo saudável, enviuvei há três anos, vivo sozinho, mas tenho grande apoio dos meus filhos e netos. Sou completamente autónomo, ainda tenho alguns amigos e amigas, com quem me encontro, mas, antes que me pergunte, digo-lhe já que não voltei a ter mulher. Bem, não é bem assim, já vai perceber que o que me traz cá não é bem uma namorada, mas não anda longe.”
Já tinha a garantia de que ia ouvir uma boa história, só faltava adivinhá-la.
“Sempre procurei ajudar os meus filhos com os netos, agora faço-o com os bisnetos. Sabe como é, ir buscar à escola, levar à natação, uma vez ou outra ficam lá em casa quando os avós não podem. Há uns três meses, a minha bisneta mais velha, que já tem 8 anos, disse-me que tinha de fazer uma redação sobre o bisavô. Fiquei espantado, mas a mãe explicou-me que ela falava muito com a professora sobre mim e sobre a minha vida. Passei uma tarde com a bisneta, a contar-lhe histórias da minha vida. O meu tempo em África, as minhas aventuras no deserto, as minhas viagens para locais aonde, naquela época, pouca gente ia. Claro que também lhe falei da minha profissão, mas nunca foi muito interessante. Sempre lidei com uns chatos da finança, que só queriam ganhar dinheiro e não conseguiam ter uma conversa de jeito. Passaram uns dias e, com espanto, a professora pediu se me importava de lá ir contar estas histórias para a classe. Confesso-lhe que fiquei contente. Não é para me gabar, mas sempre tive jeito para falar com crianças. Não começou bem, devia ter arranjado uma desculpa para me vir embora.”
Perguntei ingenuamente: “Foi maltratado?”
“Não, de todo”, respondeu. “É mais nova do que eu, não sei se se lembra do que era o estereotipo das professoras primárias? Feias, zangadas, sempre prontas a dar-nos com o ponteiro na cabeça. Deparei-me com uma mulher linda, com uns olhos verdes que transbordavam ternura. Mas não sou tonto, pensei: ‘Podia ser minha neta, deixa-te de ideias e porta-te bem.’ Foi uma conversa muito animada, os miúdos fartaram-se de fazer perguntas, sobretudo sobre África. Levei o computador e mostrei-lhes umas fotos de animais. Contei-lhes a história da proteção dos gorilas na Floresta Impenetrável no Uganda. Ficaram a saber um pouco da raça humana, que mata os que querem proteger as outras espécies. Ficámos um pouco a conversar no intervalo depois da aula e já na despedida convidou-me para almoçar. Gostava de ouvir mais histórias de África. Hesitei uma fração de segundo, mas disse-lhe que sim. Levou-me a um desses restaurantes com comida de fusão, o couvert vinha numa caixa de Lego. Já não me lembro se comi robalo com salsichas ou bacalhau com caviar, só sei que saí de lá completamente doido. Desconfio que estou a ficar senil. Pode-me fazer uma avaliação cognitiva?”
“Posso ouvir o resto da história e depois decidimos?”, perguntei.
“O senhor doutor é que sabe. Mas tenho alguma urgência. No fim desse almoço, perguntou-me se tinha gostado? Disse-lhe que sim. Propôs-me jantarmos lá na noite de fim do ano.”
“Qual é o problema”, quis saber.
“É muito sério. Quando aceitei o convite, os restaurantes fechavam às 2h da manhã. Agora têm de fechar às 22h30. O convite mudou para casa dela, assim podemos acabar à hora que quisermos. Continua a ter dúvidas sobre a necessidade de avaliar o meu estado mental?”
“Tenho mesmo a certeza de que está muito bem”, disse-lhe. “Só lhe vou passar uns comprimidos, que vão tirar a ansiedade de desempenho. A partir de hoje toma um todos os dias. E agradeça à covid.” Boa passagem de ano.
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