sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

José Gameiro - Vou ter saudades


DIÁRIO DE UM PSIQUIATRA

 * José Gameiro

Uma tarde, estava a lanchar no quarto, foi-se embora discretamente, como sempre viveu

Escrever sobre a relação com os doentes, em psiquiatria, não é fácil. Há uma ideia feita de que somos um bocado malucos e se decidimos ser psiquiatras alguma coisa de estranho temos. Nalguns casos é bem verdade... Costumo dizer, entre família e amigos, que só sou psiquiatra se me pagarem. Enquanto cidadão, posso reagir sem filtros, como qualquer de nós.

Mas ainda é mais difícil escrever sobre alguém que desapareceu subitamente e com quem tinha uma relação especial. Conheci-a há 35 anos. Foi enviada por um colega, estava eu, jovem psiquiatra, a iniciar o consultório. Durante todo este tempo acompanhei-a ou semanalmente, ou quinzenalmente. Apenas com interrupções para as férias ou quando precisou de cuidados mais intensivos.

Teve períodos muito difíceis, a viver numa realidade alternativa, em que fui frequentemente envolvido, e períodos de acalmia, em que parecia, aos olhos de um leigo, estar bem. Mas a doença não pára, apesar de muito termos evoluído no seu tratamento. A capacidade afetiva vai ficando mais pobre, os interesses cada vez mais restritos, o isolamento social e, por vezes, familiar, progressivo. O mundo fica confinado dentro da pessoa e quando ‘vem cá fora’ é frequentemente sobre a forma de delírio.

Esteve casada pouco tempo, tentou algumas vezes viver sozinha, mas não conseguia e descompensava. O acolhimento familiar foi a solução, mas não isento de problemas de quem queria ser autónoma mas não conseguia. Foi, nas fases mais complicadas, injusta para a família, mas nunca lhe faltou o apoio.

Quando, há uns anos, tive consultório em casa, nos períodos mais difíceis batia à porta a meio da noite, assustada com os seus demónios, à procura de proteção. Nas minhas férias, perguntava sempre quantas horas de avião durava a viagem, se lhe podia enviar uma mensagem quando chegasse... Tinha uma grande preocupação com a minha saúde. Se estava tudo bem, se já me tinha vacinado contra a gripe, se fazia análises regularmente. Mas nunca foi intrusiva. Não perguntava nada sobre a minha vida, nem fazia, como alguns doentes fazem, ‘interrogatórios’ às secretárias. Acabada a consulta, ficava a conversar com elas, numa espécie de segunda sessão.

Com o empobrecimento da sua vida emocional, o nosso diálogo era cada vez mais reduzido e rotineiro. Até que teve uma ideia que alimentou as consultas durante estes últimos anos. A sua formação era de filosofia, mas sempre gostou de história de arte. Propôs-me fazer um curso. Mandei vir os livros que me indicou e durante seis anos, preparou fichas, feitas à mão, em duplicado, que conservo em caixas que me ofereceu. Não seguia uma ordem cronológica e falámos sobretudo de pintores e escultores. Na última ‘aula’ estudámos Ingres, um discípulo de David.

A sua vida, além das coisas básicas, era a preparação destas fichas. Pouco ou nada sabia do que se passava em Portugal e no mundo. Com a pandemia, tudo ficou igual, já vivia há muito confinada. Nos últimos meses convencia-a a comprar uma televisão, que via no quarto. Passado umas semanas disse-me: “O que se passa lá fora interessa-me pouco, prefiro estudar e ler.”

Uma tarde, estava a lanchar no quarto, foi-se embora discretamente, como sempre viveu.

Vou ter saudades.

https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2515/html/revista-e/vicios/diario-de-um-psiquiatra/vou-ter-saudades

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