sábado, 30 de janeiro de 2021

José Pacheco Pereira - O que na dimensão do humano permanece analógico (a começar por nós mesmos)

OPINIÃO


A ideia hoje muito corrente de que tudo pode ser digitalizado e posto online esquece que nós não somos biónicos, nem digitais – somos analógicos e limitados pelos nossos sentidos.

José Pacheco Pereira

30 de Janeiro de 2021, 0:10

Nos trabalhos de biblioteca e arquivo que faço, contacto de perto com um mundo extinto: o momento, há cerca de um século, em que há dezenas de jornais, revistas, publicações, uma espécie de invasão de papel, que chegava às mãos de alguns portugueses. Havia dezenas de jornais diários nacionais e locais, revistas com bastante periodicidade, sobre tudo que queiram imaginar – moda, política, teatro, fado, tauromaquia, vegetarianismo, jardins e hortas, folhetins, “mecânica popular”, divulgação científica, arte, cinema, livros, saúde, filatelia, sport, terra, mar e ar, astronomia popular, locais próximos e estranhos, fantasmas, religiões várias e espiritismo, “neomalthusianismo”, ou seja, simplificando, métodos de controlo dos nascimentos, vida colonial, missões, pedagogia, “classes laboriosas”, propaganda local, gastronomia, ilusionismo, jogos de cartas e azar, “infância desvalida”, maravilhas do mundo, etc., etc. Vejam o tamanho do período anterior e tripliquem-no na lista das matérias que tinham uma ou várias revistas dedicadas, secções nos jornais, ou qualquer outra forma de chegarem ao papel.

Agora vamos subtrair. Primeiro, o número de portugueses que lia e tinha acesso a este mar de papel, de leituras e informações era muito pequeno, num país em que a maioria da população era analfabeta e pobre. Verdade, mas essa elite existia e consumia esta pluralidade de jornais e revistas.

Segundo, o “modelo de negócios” da comunicação social, um eufemismo que se usa sem escrutínio, era diferente. Não era um mundo rico, havia muitas dívidas a tipografias, não se pagava ou pagava-se muito pouco as colaborações, as redacções e os jornalistas, quando os havia, eram pobres, vivia-se muito do voluntariado, havia mecenas e gente que tinha dinheiro e que o “esbanjava” por aqui, seja por interesse político, seja por convicção e gosto, mas também gente que comprava e assinava estes jornais e revistas. Havia também alguma publicidade, algum investimento dos partidos políticos, republicanos e monárquicos, moderados ou “esquerdistas”, de sindicatos – a Batalha, órgão da CGT, era diário – e de “sindicatos de negócios”, como a Moagem, ou os Tabacos, que eram proprietários principalmente dos órgãos nacionais e os subsidiavam a fundo perdido. O valor da publicidade só nos últimos tempos passou a ter um papel significativo. E, do ponto de vista instrumental, publicar hoje, desde que seja em pequenas tiragens (muitas das tiragens de há cem anos eram bastante pequenas), é mais fácil e mais barato. Uma outra diferença é que não havia subsídios do Estado.

 


Espelho, um jornal de parede colado em Lisboa ARQUIVO EPHEMERA

Terceiro, é que, com excepção da ainda incipiente rádio, mas que seria um sucesso em breve, a comunicação impressa não tinha de competir nem com a televisão nem com a Internet. Essa competição não se faz apenas no mercado do jornalismo clássico, nem das publicações especializadas e de grupos de interesse, mas faz-se também – e este “também” é enorme – no tempo e no modo como se lê, vê e pensa a informação ou o entretenimento.

Quarto, quase tudo isto está hoje na rede, em publicações especializadas, mas registem o “quase tudo”. O “quase tudo” e o modo como está é que não é o mesmo do papel. A ideia hoje muito corrente de que tudo pode ser digitalizado e posto online – que tem como corolário que nós estamos de um outro lado de uma máquina mesmo que essa máquina cada vez mais “se cole” ao corpo – esquece que nós não somos biónicos, nem digitais; somos analógicos e limitados pelos nossos sentidos, que depois se manifestam em hábitos, práticas, maneiras que não são substituídos pelo digital, nem no tempo, nem no modo.

Mesmo que alguém diga que tudo isto pode ser feito online, o online não chega às portas de um supermercado, não se dobra e mete no bolso, e acima de tudo não se leva para casa, nem se lê devagar, nem se colecciona. E é menos solitário do que estar diante um computador

Um exemplo: ainda não percebo por que razão ninguém se lembrou de fazer uma espécie de folha volante, ou em formato de edital para colar nas paredes, diário, ou um boletim semanal para deixar à porta de supermercados, mercearias, farmácias com um olhar diferente sobre o que se está a passar, com notícias, textos e criatividade, seja para dizer “leia no Correio da Manhã esta notícia”, “leia no PÚBLICO este artigo”, veja o novo cartaz do PS, ou como mudaram as montras, ou as máscaras mais criativas, ou como estão as ruas de dia ou de noite, e comentar o que há de interessante neste mundo em mudança que a pandemia está a criar. Pode ser em português ou em crioulo, ou nos dois ao mesmo tempo. Não é, aliás, precisa muita imaginação para sair do mundo estereotipado da comunicação social tradicional. Pode ser gratuito ou quase, mas tenho a certeza que muita gente que hoje tem mais tempo livre o ia levar para casa, e, mais, criar-se-ia uma habituação. Vou fazer compras, mas onde está a folha do dia que estava aqui ontem? Sim, eu trago-te o papelinho.

Todas as vantagens do analógico sobre o digital podem ser exploradas, e mesmo que alguém diga que tudo isto pode ser feito online, o online não chega às portas de um supermercado, ou às mãos dos polícias, não se dobra e mete no bolso, ou se leva num comboio de regresso do matinal trabalho das limpezas, e acima de tudo não se leva para casa, nem se lê devagar, nem se colecciona, não é da nossa dimensão física. E é menos solitário do que estar diante um computador.

Historiador

https://www.publico.pt/2021/01/30/opiniao/opiniao/dimensao-humano-permanece-analogico-comecar-1948552

 


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