OPINIÃO
A ideia hoje muito corrente de que tudo pode ser
digitalizado e posto online esquece
que nós não somos biónicos, nem digitais – somos analógicos e limitados pelos
nossos sentidos.
30 de Janeiro de 2021, 0:10
Nos trabalhos de
biblioteca e arquivo que faço, contacto de perto com um mundo extinto: o
momento, há cerca de um século, em que há dezenas de jornais, revistas,
publicações, uma espécie de invasão de papel, que chegava às mãos de alguns
portugueses. Havia dezenas de jornais diários nacionais e locais, revistas com
bastante periodicidade, sobre tudo que queiram imaginar – moda, política,
teatro, fado, tauromaquia, vegetarianismo, jardins e hortas, folhetins,
“mecânica popular”, divulgação científica, arte, cinema, livros, saúde,
filatelia, sport, terra, mar e
ar, astronomia popular, locais próximos e estranhos, fantasmas, religiões
várias e espiritismo, “neomalthusianismo”, ou seja, simplificando, métodos de
controlo dos nascimentos, vida colonial, missões, pedagogia, “classes
laboriosas”, propaganda local, gastronomia, ilusionismo, jogos de cartas e
azar, “infância desvalida”, maravilhas do mundo, etc., etc. Vejam o tamanho do
período anterior e tripliquem-no na lista das matérias que tinham uma ou várias
revistas dedicadas, secções nos jornais, ou qualquer outra forma de chegarem ao
papel.
Agora vamos subtrair. Primeiro, o número de portugueses que
lia e tinha acesso a este mar de papel, de leituras e informações era muito
pequeno, num país em que a maioria da população era analfabeta e pobre.
Verdade, mas essa elite existia e consumia esta pluralidade de jornais e
revistas.
Segundo, o “modelo de negócios” da comunicação social, um
eufemismo que se usa sem escrutínio, era diferente. Não era um mundo rico,
havia muitas dívidas a tipografias, não se pagava ou pagava-se muito pouco as
colaborações, as redacções e os jornalistas, quando os havia, eram pobres,
vivia-se muito do voluntariado, havia mecenas e gente que tinha dinheiro e que
o “esbanjava” por aqui, seja por interesse político, seja por convicção e
gosto, mas também gente que comprava e assinava estes jornais e revistas. Havia
também alguma publicidade, algum investimento dos partidos políticos,
republicanos e monárquicos, moderados ou “esquerdistas”, de sindicatos –
a Batalha, órgão da
CGT, era diário – e de “sindicatos de negócios”, como a Moagem, ou os Tabacos,
que eram proprietários principalmente dos órgãos nacionais e os subsidiavam a
fundo perdido. O valor da publicidade só nos últimos tempos passou a ter um
papel significativo. E, do ponto de vista instrumental, publicar hoje, desde
que seja em pequenas tiragens (muitas das tiragens de há cem anos eram bastante
pequenas), é mais fácil e mais barato. Uma outra diferença é que não havia
subsídios do Estado.
Terceiro, é que, com excepção da ainda incipiente rádio, mas
que seria um sucesso em breve, a comunicação impressa não tinha de competir nem
com a televisão nem com a Internet. Essa competição não se faz apenas no
mercado do jornalismo clássico, nem das publicações especializadas e de grupos
de interesse, mas faz-se também – e este “também” é enorme – no tempo e no modo
como se lê, vê e pensa a informação ou o entretenimento.
Quarto, quase tudo isto está hoje na rede, em publicações
especializadas, mas registem o “quase tudo”. O “quase tudo” e o modo como está
é que não é o mesmo do papel. A ideia hoje muito corrente de que tudo pode ser
digitalizado e posto online –
que tem como corolário que nós estamos de um outro lado de uma máquina mesmo
que essa máquina cada vez mais “se cole” ao corpo – esquece que nós não
somos biónicos, nem digitais; somos analógicos e limitados pelos nossos
sentidos, que depois se manifestam em hábitos, práticas, maneiras que não são
substituídos pelo digital, nem no tempo, nem no modo.
Mesmo que alguém diga que tudo isto pode ser feito
online, o online não chega às portas de um supermercado, não se dobra e mete no
bolso, e acima de tudo não se leva para casa, nem se lê devagar, nem se
colecciona. E é menos solitário do que estar diante um computador
Um exemplo: ainda não percebo por que razão ninguém se
lembrou de fazer uma espécie de folha volante, ou em formato de edital para
colar nas paredes, diário, ou um boletim semanal para deixar à porta de
supermercados, mercearias, farmácias com um olhar diferente sobre o que se está
a passar, com notícias, textos e criatividade, seja para dizer “leia no Correio da Manhã esta notícia”,
“leia no PÚBLICO este artigo”, veja o novo cartaz do PS, ou como mudaram as
montras, ou as máscaras mais criativas, ou como estão as ruas de dia ou de
noite, e comentar o que há de interessante neste mundo em mudança que a pandemia está a criar.
Pode ser em português ou em crioulo, ou nos dois ao mesmo tempo. Não é, aliás,
precisa muita imaginação para sair do mundo estereotipado da comunicação social
tradicional. Pode ser gratuito ou quase, mas tenho a certeza que muita gente
que hoje tem mais tempo livre o ia levar para casa, e, mais, criar-se-ia uma
habituação. Vou fazer compras, mas onde está a folha do dia que estava aqui
ontem? Sim, eu trago-te o papelinho.
Todas as vantagens do analógico sobre o digital podem ser
exploradas, e mesmo que alguém diga que tudo isto pode ser feito online, o online não chega às portas de um supermercado, ou às mãos dos
polícias, não se dobra e mete no bolso, ou se leva num comboio de regresso do
matinal trabalho das limpezas, e acima de tudo não se leva para casa, nem se lê
devagar, nem se colecciona, não é da nossa dimensão física. E é menos solitário
do que estar diante um computador.
Historiador
https://www.publico.pt/2021/01/30/opiniao/opiniao/dimensao-humano-permanece-analogico-comecar-1948552
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