Opinião
Durante anos, a Igreja Católica punha o chefe de Estado atrás nos cortejos. Até Marcelo Caetano se queixou. O encobrimento dos padres pedófilos faz parte dessa procissão.
18 de Fevereiro de 2023
“Se V.ª Ex.ª ontem tivesse estado, na Igreja de S. Vicente,
onde eu estava (no transepto, na tribuna fronteira à do corpo diplomático),
decerto teria tido, à entrada do chefe de Estado, o mesmo sentimento de
humilhação e de indignação que eu tive e que tiveram as demais pessoas
presentes.”
Já vai perceber porquê. Antes queria fazer uma pausa para
imaginar o cenário: Caetano, futuro “primeiro-ministro”, era presidente da
Câmara Corporativa, um peculiar órgão consultivo que funcionava na Assembleia
da República, e por isso viu a cerimónia de um ângulo diferente do de Salazar.
Terá pensado que, estando ele num braço transversal da igreja, e não no centro,
teria visto uma coisa diferente.
Continuo:
“Passou majestoso o cortejo pontifical. Em glória, de mitra e
báculo, o patriarca abençoava os fiéis a um lado e outro. E no couce, a seguir
aos caudatários de Sua Eminência, o chefe de Estado português apagado entre
algumas fardas sem brilho, parecendo eles todos a escolta da retaguarda do
prelado. Quando o cortejo à frente parava, o Chefe de Estado parava também, à
espera: nem em Canossa o poder civil andava tão de rastos...”
Nova pausa. O patriarca é Manuel Gonçalves Cerejeira, cardeal
amigo íntimo de Salazar desde os tempos da Universidade de
Coimbra e muitíssimo influente durante o Estado Novo.
Atrás do cardeal Cerejeira, no “couce”, estava o Presidente
da República, Francisco Craveiro Lopes.
Hoje, no site oficial da Presidência da República, a
eleição de Craveiro Lopes, em 1951, é contada assim: “Disputou a campanha eleitoral indicado
pela União Nacional. Pela oposição democrática e republicana concorreu o
almirante Quintão Meireles. Pelo Partido Comunista apresentou-se o professor
Ruy Luís Gomes. Este último foi considerado sem idoneidade, portanto não
elegível, pelo Supremo Tribunal. O almirante Quintão Meireles desistiu. Foi
forçado a retirar a sua candidatura na véspera das eleições. Não houve, pois,
opositores à eleição, tendo Craveiro Lopes ganho com cerca de 80% dos votos.”
Parece meio esquisito Caetano falar dos “caudatários” como se
fosse uma coisa estranha. Ainda hoje a cauda do manto do patriarca de Lisboa é
levada pelos “caudatários”. O que é que o incomodou?
A carta — que li em Salazar e Caetano, Cartas Secretas,
1932-1968, de José Freire Antunes, Círculo de Leitores, 1993 — continua:
“Qualquer diplomata dos presentes, funcionário ou homem
político formado decerto no respeito da supremacia do Estado dentro do seu
território (à boa maneira da monarquia, em que os bispos formavam apenas uma
das ordens do reino) informará os seus governos de que Portugal é o país mais
clerical do mundo. Na verdade, em Espanha, onde a Igreja pode e manda muitíssimo,
o chefe de Estado é recebido nas igrejas debaixo do pálio e o prelado, cardeal
que seja, acompanha-o respeitosamente, sendo aquele o centro da procissão.”
Caetano está triste por ver que “Portugal é o país mais
clerical do mundo” e que o padre vai à frente e o político vai atrás. Em
Espanha, diz ele, Francisco Franco vai debaixo do dossel sustido por varas que
protege, também, o sacramento, mas Franco é o “centro da procissão”.
Podemos desvalorizar a indignação de Caetano por sabermos que
Craveiro Lopes, na altura, já era visto como “um verdadeiro estorvo para o
regime”, diz o texto oficial da Presidência, cuja autoria é do Museu da
Presidência da República, e que, entre Craveiro Lopes e Salazar, “as relações
foram sempre frias e formais” e “nunca amistosas”.
Sabemos também que, “com o decorrer dos anos”, Craveiro Lopes
foi-se “sentindo cada vez mais humilhado e vexado”, que os seus “discursos eram
modificados, os projectos recusados ou protelados, as convocações da
Presidência ao Governo ignoradas”, e que ele “não estava habituado a ser apenas
um elemento decorativo”.
Mas repare no resto da carta:
“Sou dos poucos portugueses com certa posição política que
hoje dão muita importância às formas, porque estas são, como os ritos, a
maneira de tornar tangíveis ou sensíveis ao vulgo as instituições e os
princípios. O que se passou ontem achei indecoroso. Tenha V.ª Ex.ª a paciência
de se ocupar do caso. Se não houver cerimonial melhor na igreja, que o chefe de
Estado passe a representar-se apenas por um funcionário: é preferível isso.” A
carta acaba aqui.
Tenho para mim que o “i” de igreja em letra minúscula da
última frase não foi um lapso de Caetano, mas intencional.
Por mais que o regime não gostasse de Craveiro Lopes, com
quem “foi nascendo a esperança de mudança”, diz o texto do Museu da Presidência
da República, Caetano achava errada a forma como a Igreja tratava o poder
político, colocando o chefe de Estado em posição subalterna, como um caudatário
ou membro da escolta da retaguarda.
No dia seguinte, 24 de Janeiro de 1955, Salazar responde:
“A sua carta impressionou-me vivamente [...], porque eu próprio, estando aliás a ver as coisas de outro ângulo, tive a mesma sensação. Vou ver como hei-de pôr o assunto: mas temos de chegar a uma conclusão conveniente.”
A conveniência — não melindrar a Igreja Católica — só acabou
50 anos depois quando, em 2006, foi aprovada a lei das precedências do protocolo do Estado, que retirou
privilégios à Igreja Católica.
O debate foi fascinante. Ainda me lembro de ler sobre o
artigo apresentado por João Bosco Mota Amaral, do PSD, e Manuel Alegre, do PS,
que propunha que, nas cerimónias oficiais, o patriarca de Lisboa, os cardeais,
o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa e o núncio apostólico tivessem
“tratamento protocolar equivalente ao dos ministros e precedência face a
estes”, ou seja, que a Igreja Católica ficasse antes dos políticos eleitos pelo
povo. A proposta foi chumbada.
Lembrei-me desta carta ao ler o relatório final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, que concluiu que o número “absolutamente mínimo” de crianças vítimas de abuso por padres e pessoas ligadas à Igreja é 4815. Os anos de ocultação, seguidos de anos de negação, seguidos de anos de obstrução foram possíveis por muitas razões. Uma delas
https://www.publico.pt/2023/02/18/sociedade/opiniao/procissao-portuguesa-2039413
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