* J.-M. Nobre-Correia
26 de
Fevereiro de 2023
Numa larga
ausência de sentido crítico, os média dão-lhe uma tal guarida que o levam
provavelmente a sonhar com outros altos voos…
Vivemos em
Portugal tempos espantosos. De grande originalidade. Mas bastante estranhos
também. Em termos políticos como mediáticos. Ou melhor: tempos que são fruto
precisamente da conjunção de uma singularidade política com uma não menor
singularidade mediático-jornalística.
De um lado,
temos um personagem que há cinquenta anos instrumentaliza compulsivamente os
média. Com a “criação de factos”. Com pseudoanálises da atualidade política,
mas de facto sobre toda a espécie de assuntos. Com constantes declarações a
propósito de tudo e de nada. Por uma obsessiva necessidade de fazer falar de
si, de levar os média a citá-lo a propósito dos mais inverosímeis temas. Nunca
esquecendo a dimensão manobreira do que diz ou escreve. Mantendo porém relações
de extrema cordialidade com os meios jornalísticos, guardando embora a
distância que convém entre gentes de condições diferentes.
Para além
mesmo dos numerosos anticorpos que suscitou no seu próprio meio e não só, tal
estratégia de afirmação pessoal manifestamente resultou. A tal ponto que,
chegado o momento de sonhar com uma candidatura à mais alta magistratura da
nação, o dito personagem quase não precisou de investir o esforço e os
montantes financeiros dos outros candidatos: graças aos média, era por demais
conhecido dos portugueses de aquém e além-fronteiras.
Investido na
função tão ambicionada, a estratégia de omnipresença quotidiana na vida dos
cidadãos deixou de deparar com o menor travão e a mais ínfima barragem. Até
porque os média portugueses, pobres de meios humanos, técnicos e financeiros,
não gozam verdadeiramente da força necessária para se oporem ao rolo compressor
das iniciativas provenientes de tal “criador de factos” e moinho de palavras,
provedor de matéria para encher espaço e tempo dos seus jornais. Muito menos
quando, historicamente, o jornalismo português se pratica largamente sentado,
tendo telefones e computadores como adjuvantes no conforto das redações. Ou
exercido entre colegas e “grandes deste mundo”, em conferências e demais
viagens de imprensa.
Média e
jornalistas são assim claramente incapazes de pôr em prática uma atitude
crítica, no melhor sentido da palavra, em relação a iniciativas e declarações
do personagem em questão. Calibrando-as em função do que diz a Constituição,
das atribuições que lhe reserva e das competências que poderão realmente ser as
suas em matérias que exigem maior ou menor conhecimento técnico ou científico.
Calibrando-as sobretudo em função dos mais elementares critérios de uma prática
exigente de um jornalismo de qualidade, de referência ou mesmo “popular”.
Esta
ausência de uma prática conforme aos melhores critérios do jornalismo faz que
sejamos assim assoberbados diariamente pelas mais diversas “peças” sobre as
iniciativas e declarações mais inacreditáveis, os média atribuindo-lhe
demasiadas vezes iniciativas que não são de facto dele, quando não são mesmo
risíveis. Contrariamente ao que se passa com os média europeus em relação aos
seus próprios chefes de Estado, quase sempre pouco e até mesmo raramente
presentes na atualidade coberta pelos média do próprio país.
Só que a
estreiteza do terreno de jogos político-mediático nacional já não satisfaz as
ambições desmedidas de tão ilustre personagem. Daí as numerosas visitas
oficiais a países estrangeiros que, a seus olhos, têm a vantagem de serem
igualmente tratadas pelos média desses países. E agora esta extraordinária
ideia de atribuir
o grande-colar da Ordem da Liberdade ao presidente da Ucrânia. Mais do que
isso: de ir entregar a dita condecoração a
Kiev, numa Ucrânia em guerra.
É claro que,
como é habitual, o autor de tal iniciativa se fará acompanhar por um séquito de
jornalistas devidamente convidados, que não deixarão de pôr em valor a ousadia,
se não a coragem, do visitante. E, claro está, um sem número de média
estrangeiros não deixarão de evocar o acontecimento, aumentando assim
grandemente uma visibilidade com que, tudo leva a crer, ele sonha há muito…
O autor
escreve segundo o novo acordo ortográfico
https://www.publico.pt/2023/02/26/opiniao/opiniao/tentacao-icaro-2040252
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