HISTÓRIAS QUE EU SEI
Ano II da Propaganda versus Jornalismo
por Frederico Duarte Carvalho // fevereiro 21, 2023
A Guerra na Ucrânia vai entrar
no seu segundo ano e é cada vez mais notória a luta da propaganda versus
jornalismo. A recente reportagem do jornalista veterano norte-americano Seymour
Hersh sobre a sabotagem do gasoduto Nord Stream 1 e 2 pelos militares dos
Estados Unidos, que foi classificada de “ficção”, é um exemplo do que está em
causa. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.
Tenho aqui à minha frente um
livro que comprei em 2018. É a autobiografia do jornalista norte-americano
Seymour Hersh. O título diz tudo sobre quem é esta pessoa: “Repórter”. Apenas
isso. E já é muito. Na capa, o repórter está ao telefone (com fios) e tem uma
máquina de escrever à sua frente. A foto foi captada em 1972 na redacção do
“The New York Times”.
Seymour Hersh é um nome assaz
conhecido – e reconhecido – nos Estados Unidos. A sua primeira grande
reportagem data de 1969, quando denunciou o massacre de My Lai, no sul do
Vietname, onde soldados norte-americanos mataram mais de 300 civis. Ao serviço
do The New York Times, Hersh investigou depois o Watergate e muitas
das suas reportagens fazem parte da história que, em Agosto de 1974, levou à
demissão do Presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon.
Com boas fontes juntos dos
militares e serviços secretos norte-americanos, denunciou depois, em Março de
1975, um plano da CIA para recuperar um submarino soviético afundado no Oceano
Pacífico desde 1968. Conhecido como “Project Azorian”, o plano envolveu a construção de um navio
capaz de transportar poderosas gruas que iriam trazer o submarino à tona,
permitindo assim aos Estados Unidos terem acesso aos segredos nucleares dos
soviéticos. A construção do navio custou, em números dos dias de hoje, o equivalente
a 4 mil milhões de dólares. E contou com o apoio do milionário Howard Hughes
como fachada para a operação secreta.
Dois meses depois daquela
história, Seymour Hersh assinou uma segunda reportagem onde denunciava
operações navais de espionagem com submarinos norte-americanos em águas
territoriais da União Soviética. Uma operação que levantava muitas críticas dentro dos
meios militares dos EUA por colocar em causa a détente da
Guerra Fria.
Não foram histórias de “ficção”, mas pareciam. Bem mais recente, lembremo-nos de que, em 2004, Seymour Hersh, ao escrever então para a revista The New Yorker, foi ainda o jornalista que revelou ao mundo como eram os processos de tortura norte-americana na prisão iraquiana de Abu Ghraib.
Por isso, quando, aos 85
anos, este repórter escreve num site da Internet dedicado a
artigos que não conseguem ter lugar na Imprensa generalista, que os militares
dos Estados Unidos levaram a cabo uma missão secreta para destruírem o gasoduto
russo Nord Stream 1 e 2, através de uma explosão que se registou a 26 de
Setembro, na zona próxima à Noruega, então temos de ter em consideração que não
estamos propriamente face a um qualquer jornalista.
Por muito que a Casa Branca venha desmentir e dizer que a história de
Hersh é “completamente falsa” e que mais parece saída de uma “ficção”, sabemos
que não podemos simplesmente descartar aquela sabotagem que, no fundo, tem uma
grande importância estratégica para o conflito na Ucrânia, que entra agora no
seu segundo ano.
No prefácio da sua autobiografia, Seymour Hersh explica que ele é “um sobrevivente da época dourada do jornalismo, quando os repórteres dos jornais diários não precisavam de competir com o ciclo noticioso de 24 horas da televisão por cabo, quando os jornais tinham dinheiro da publicidade e dos anúncios de procura de emprego”. Uma época em que ele tinha a possibilidade de “viajar para qualquer lugar, a qualquer hora, por qualquer motivo, com cartões de crédito da empresa”.
Havia tempo para relatar uma
notícia de última hora sem ter de depender do que estava constantemente a
aparecer na página de Internet do jornal. Mas o que não havia mesmo no tempo de
Seymour Hersh, segundo ele, eram os “especialistas” e jornalistas de TV por
cabo “que começam as respostas a todas as perguntas com as duas palavras mais
mortais do mundo dos média: ‘Eu acho’”.
O jornalismo actual, acrescenta
Hersh, é composto, essencialmente, por coisas como “pouco mais do que dicas ou
indícios de algo tóxico ou criminoso”. A falta de tempo, dinheiro ou equipas
qualificadas, desembocam em “histórias do tipo ‘disse ele, disse ela’, nas
quais o repórter é pouco mais do que um papagaio”.
Aponta ainda este norte-americano: “Sempre considerei que a missão do jornalista era a procura da verdade e não a mera notícia do conflito. Houve um crime de guerra? Os jornais ficam agora dependentes de um relatório negociado nas Nações Unidas que surge, na melhor das hipóteses, meses depois dos factos. E os média fizeram algum esforço significativo para explicar por que um relatório da ONU não deve ser considerado por muitos, à volta do mundo, como sendo a última palavra? Existem sequer relatórios críticos sobre a ONU?”.
As perguntas de Hersh deviam ser
as perguntas de todos os jornalistas que dizem fazer jornalismo. E, de forma
lapidar, afirma este repórter: “Toda a minha carreira tem sido sobre a
importância de contar verdades importantes e indesejadas e tornar a América num
lugar mais informado. Talvez seja por isso que é muito doloroso pensar que
nunca teria conseguido fazer o que fiz se estivesse a trabalhar no mundo
caótico e desestruturado do jornalismo de hoje. Claro que ainda estou a
tentar”.
A tentar.
E essa tentativa viu-se agora com
o descrédito votado à sua reportagem sobre a destruição do gasoduto russo que
fornecia gás à Alemanha e que, na prática, veio ajudar ao aumento dos gastos da
produção de energia na Europa e todas as consequências que vemos com os
aumentos dos produtos nos supermercados e nas taxas de juros do crédito à
habitação. No fundo, a inflação.
A guerra é uma coisa terrível. Não há honra, não há regras – apesar das convenções de Genebra que quiserem inventar. O pior do ser humano é revelado, embora também existam histórias de heroísmo de um e outro lado.
Portugal, como membro da NATO –
aliás, membro fundador da NATO ainda no tempo da ditadura de Salazar –, está do
lado da Ucrânia. Logo, qualquer notícia que seja suspeita de agradar aos russos,
deve ser ponderada com critérios mais apertados do que qualquer outra que seja
bem mais simpática ao “nosso lado”.
A isso não se chama jornalismo,
mas sim propaganda.
Um ano volvido sobre o início da
Guerra na Ucrânia, esta já levou muitos jornalistas a irem visitar o terreno em
aventuras controladas nos cenários de guerra, de onde saíram vivos para
contarem histórias idênticas a muitas outras desde que o homem inventou a
barbárie dos conflitos armados modernos.
Fugas em massa, pais separados de filhos, despedidas comoventes, reencontros emocionantes, mortes de inocentes, exemplos de bravura e resistência, relatos de massacres inimagináveis, crimes de guerra, avanços e recuos de tropas, armas inteligentes e humanos cada vez mais estúpidos. Há de tudo para que se escrevam belos discursos, poemas, textos emotivos, artigos importantes, livros de crónicas que engrandecem currículos de jornalistas ditos “de guerra”.
Entretanto, na retaguarda,
enquanto uns vão jantar fora à sexta-feira, há ainda jornalistas como Seymour
Hersh que arriscam a vida e reputação ao revelarem o que alimenta de verdade
esta guerra. São esses quantos, que insistem em tentar fazer jornalismo, mesmo
correndo o risco de serem acusados de criar ficções, que ainda mantém a chama
do jornalismo acesa.
Só que, para eles, soldados da
pena jornalística, não haverá medalhas nem sequer uma chama eterna como num
monumento ao soldado caído.
Frederico Duarte Carvalho é
jornalista e escritor
https://paginaum.pt/2023/02/21/ano-ii-da-propaganda-versus-jornalismo/
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