segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Nuno Júdice - Epitáfio para uma Europa

* Nuno Júdice

Limpo do Espírito o unto da Europa, e deito-o

nas feridas do ocidente para que sequem mais

depressa. A Europa impregna-me com a sua febre,

que eu acalmo com a água de um ócio de

culturas. A Europa atravanca os passeios da memória,

e obriga a empurrá-la para deixar passar

os que chegam. Às vezes, a Europa encosta-se

às esquinas, como se não fizesse nada,

e confundem-na com a puta da noite, como

se ela estivesse à venda; mas o que ela faz

é oferecer o corpo a quem quiser. De outras

vezes, a Europa é a virgem que não quer

descer do altar, como se alguém a adorasse,

ainda, e lhe acendesse as velas de uma devoção

de milénios. "Tirem-me a Europa

da frente", dizem os que querem chegar

mais depressa aos lugares que a Europa

já descobriu, e perdeu, há muito. "Quero ser

como a Europa", dizem outros — os que

andaram atrás dela, e não souberam acompanhar-lhe

o passo, e caíram no primeiro obstáculo,

vendo acumularem-se por cima de si os corpos

de quem vinha atrás. A Europa enlouqueceu,

e pede que a fechem para que ninguém mais

acredite no que ela diz. A Europa é o mocho sábio

da fábula, e as crianças juntam-se à sua volta

a pensar que vão aprender alguma coisa. Tiro

a Europa do mapa e meto-a no bolso. E quando

alguém me pedir lume para o cigarro, vou puxar

por ela e acendo-a. Se o mundo arder, a culpa é

de quem me pediu lume; se a Europa se apagar,

deito-a fora e troco de isqueiro.


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