Opinião
* José Pacheco Pereira
A crítica à IgrejaCatólica não pode ficar apenas pela
condenação genérica, implica discutir as causas do abuso sexual de menores e
perceber que as raízes do silêncio estão tão dentro como fora dela.
18 de Fevereiro de 2023
A Igreja e os que a desculpam ganham nestes dias o campeonato
da hipocrisia em relação à pedofilia. O artigo
do PÚBLICO de Susana Peralta mostra e bem que não há nesta matéria qualquer
elogio a fazer-lhe, nem ontem, nem hoje. Bem pelo contrário, com Comissão ou
sem ela, foi forçada a revelar o que sempre quis e quer esconder. A Igreja
Católica Apostólica Romana continua enredada numa moral sexual, na qual se
inclui a questão contra naturam do celibato, assim como a menorização
das mulheres, que não tem legitimação em qualquer dogma de fé, nem sempre
existiu, e é tão histórica como a sua sistemática violação século após século.
Há, no entanto, muito mais hipocrisia para além da que emana
da poderosa instituição da Igreja, um verdadeiro poder fáctico, onde a
invisibilidade da pedofilia e dos abusos sexuais – convém fazer a distinção –
contava com uma rede de cumplicidades de dentro e de fora. Ou seja, a Igreja
não foi apenas cúmplice no seu interior, mas contou com uma sociedade à sua
volta, nas cidades, nos campos, entre os católicos praticantes e os
não-praticantes, entre os incréus, porque um número tão elevado de abusos não
podia existir sem muita gente saber e calar.
Aliás, isto não espanta quem conheça a história e saiba que a
história destes abusos e a sua forte condenação nos dias de hoje nem sempre foi
assim. Como acontece com muito crimes que hoje consideramos hediondos, eles
eram razoavelmente consentidos num passado muito próximo. Em grande parte por
contiguidade com o local privilegiado da família, que era e continua a ser o
terreno mais fértil para todo o tipo de abusos e de crimes. A família só é
idílica na literatura cor-de-rosa e no discurso político dos reaccionários,
fora disso é um sítio propício a todas as violências, desde a violência
doméstica ao bullying e à pedofilia. E, acima de tudo, coberto pelo
silêncio de que “entre marido e mulher não metas a colher”, nem entre pai e
filha, nem entre tio e sobrinho, etc... E embora seja um regra com muitas
excepções, onde há muita miséria, onde se vive amontoado, onde se agride muito
porque há pobreza, onde há uma vida de todas as misérias, onde nada se tem,
pode-se “servir” de quem está à mão.
Isto explica porque, lá por se passarem numa sacristia ou num
seminário, estes crimes não eram vistos assim como tão “violentos” e
reprováveis. Era como a mancebia dos padres, ou as suas diligentes “sobrinhas”
e “afilhadas”. Milhares de páginas da literatura portuguesa falam de forma
séria ou jocosa da distância entre a imposição do celibato e a realidade da sua
violação. Os republicanos no seu anticlericalismo não deixaram de tratar os
padres, em particular os jesuítas, como uma associação de criminosos, e
denúncias de abusos sexuais faziam parte das acusações ao comportamento do
clero.
É certo que a pedofilia — e insisto de novo: em muitos casos
é abusivo falar de pedofilia, devendo antes falar-se de abusos sexuais de
menores, que podem incluir a violação — era pouco nomeada e apenas sugerida.
Mas a relação de poder entre os padres e freiras em relação aos seus
discípulos/as era uma questão que estava bem presente no anticlericalismo
republicano, e só foi mitigada nos anos do Estado Novo porque a Censura cortava
todas as notícias que sugeriam um comportamento abusivo dos padres. Ou seja,
isto não é novo.
Fechava-se os olhos e fecha-se os olhos. Espantam-se com o
presente do verbo? Não se espantem. A invisibilidade da pedofilia nos
espectáculos, nas artes, na literatura é bastante, mesmo em sectores que vivem
da exposição pública e onde é gritante o que se passa. E ninguém se incomoda. O
que é que pensam que Gide ia fazer a Marrocos? E nós também temos os nossos
Gides, tão explícitos e tão públicos, naquilo que antigamente se chamava
pederastia, uma palavra que se tornou maldita pela associação entre a pedofilia
e a homossexualidade masculina.
Um caso que várias vezes referi, espantando-me por não
provocar qualquer réstia de indignação, é o de um artista de variedades que
viveu durante algum tempo às claras, com publicidade, com uma criança, seu
“afilhado”, que de uma certa maneira “comprou” aos pais seus empregados. Várias
revistas do jetset mostravam a criança, na piscina, em restaurantes, com
um padrão comum a outros casos: homem poderoso e com fama e dinheiro que vive
numa relação pelo menos ambígua com uma criança filha de uma governante ou de um
jardineiro.
Somos todos culpados? Não, não somos todos culpados. Por
isso, a crítica à Igreja Católica não pode ficar-se apenas pela condenação
genérica, implica discutirem-se as causas dessa atracção pela pedofilia e, em
muitos mais casos, pelo abuso sexual de menores, e perceber que as raízes do
silêncio face ao comportamento de muitos padres estão tão dentro como fora da
Igreja.
Por ambígua que seja a ideia da “miséria sexual”, que não
explica a questão bem mais complexa daquilo a que chamamos perversões, onde ela
existe o caminho para os abusos está aberto. A Igreja tem todo o direito de
pedir aos seus padres a obrigação do celibato, mas deve estar consciente, e
estou certo de que está, das “tentações” do mundo. O Demónio e o Dr. Freud
sabiam muito bem disso.
O autor é colunista do PÚBLICO
https://www.publico.pt/2023/02/18/opiniao/opiniao/igreja-demonio-dr-freud-2039414
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