quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Luís Miguel Queirós - Produção de Beckett cancelada por restringir audições a homens

 Teatro

Produção de Beckett cancelada por restringir audições a homens

Encenador cumpriu instruções do dramaturgo, mas foi acusado de violar política de inclusão da universidade holandesa de Groningen.

Luís Miguel Queirós

7 de Fevereiro de 2023

A peça À Espera de Godot, encenada por Gábor Tompa, no Teatro Nacional São João, em 2021 TUNA

Uma encenação de À Espera de Godot, de Samuel Beckett, cuja estreia estava prevista para Março no Centro Cultural de Estudantes Usva, da universidade holandesa de Groningen, foi cancelada quando a instituição soube que as audições para os cinco papéis masculinos da peça só tinham sido abertas a actores desse mesmo sexo.

O jovem irlandês que estava a dirigir a encenação, Oisín Moyne, de 24 anos, tentou argumentar que o próprio Samuel Beckett deixara instruções para que a peça fosse representada por cinco intérpretes do sexo masculino, e que desrespeitar essa indicação colocava a companhia em risco de ser processada pelos herdeiros do dramaturgo, mas a Universidade de Groningen manteve a sua decisão de cancelar o espectáculo, alegando que este violara a sua “política de inclusão”.

O responsável pela programação teatral do Usva, Bram Douwes, secundou a posição da universidade. “Se se tratasse de uma peça com cinco tipos brancos para a qual tivessem aberto audições, estaria tudo bem, mas o que não podem é banir pessoas logo à partida”, afirmou Douwes ao jornal universitário Ukrant.

A assessora de imprensa da Universidade, Elies Kouwenhoven, reconhece que Beckett “declarou explicitamente que esta peça devia ser interpretada por cinco homens”, mas argumenta que “os tempos mudaram” desde que a peça foi apresentada pela primeira vez em 1953, e que “a ideia de que só os homens são adequados a estes papéis está datada e é mesmo discriminatória”. E concluiu: “Nós, como universidade, defendemos uma comunidade aberta e inclusiva, na qual não é apropriado excluir outros seja com que bases for.”

A administradora do Usva, Fay Sterken, explicou ao Ukrant que o centro só soube que as audições tinham sido exclusivamente para homens há cerca de duas semanas, quando a preparação do espectáculo já ia adiantada, com ensaios a decorrer desde Novembro. “Descobrimos que a companhia [intitulada GUTS – acrónimo de Groningen University Theatre Society] tinha assinado a cláusula ‘só homens’, e isso foi um choque, porque realmente não podemos concordar com ela por razões de princípio”.

Oisín Moyne, que estudou Física na Universidade de Groningen e acabou por se radicar na cidade holandesa, onde hoje trabalha, explicou ao jornal irlandês Irish Times que tinha considerado abrir as audições a todas as pessoas, mas que não o fez por causa das regras estabelecidas por Beckett pouco antes da sua morte, as quais têm sido defendidas pelos herdeiros legais da sua obra, que só entrará no domínio público em 2059.

A produtora da peça, Medeea Anton, em declarações ao mesmo jornal, defendeu que a decisão de cancelar a peça se centrou nos actores, ignorando o papel de toda a restante equipa. “Havia uma restrição quanto aos actores, que são apenas cinco, mas o resto da equipa de produção é maioritariamente feminina, e também temos pessoas trans e não-binárias”, informou Medeea Anton, acrescentando que “a maioria da equipa de produção é da comunidade LGTB”.

A produtora diz que tentou explicar aos responsáveis da universidade que se tratava apenas de uma questão legal, mas que não conseguiu fazê-los mudar de ideias. “Somos uma pequena companhia amadora, que não se pode arriscar a ser processada”, observou.

E não faltam precedentes para demonstrar que o risco seria real. Recordando que o próprio Beckett, em 1988, pouco antes de morrer, processou uma companhia holandesa por ter aberto as audições da peça a mulheres, o Irish Times observa que os seus herdeiros se têm mantido fiéis às instruções deixadas pelo dramaturgo.

Em 1991, a companhia Brut de Beton tentou apresentar um À Espera de Godot com um elenco exclusivamente feminino no Festival de Avignon e o caso chegou a tribunal, com o juiz a proferir uma decisão algo salomónica, permitindo a apresentação da peça, mas obrigando a que fosse lida, antes de cada récita, a carta em que os representantes legais do autor expunham as suas objecções.

Outra encenação da peça com cinco actrizes foi cancelada em 2019 num colégio do Ohio, nos Estados Unidos, por assumido receio de que os herdeiros de Beckett processassem a instituição.

Já a companhia de teatro londrina Silent Faces criou, em 2021, uma paródia às regras de género impostas à obra de Samuel Beckett com o espectáculo Godot Is a Woman (Godot É Uma Mulher), cujo texto promocional abria com esta cronologia: “Em 1953 um homem escreveu uma peça sobre esperar; em 1988 processou cinco mulheres por tentarem interpretá-la; em 2001 Madonna lançou What It Feels Like for a Girl; estamos em 2021 e continuamos à espera.”

Em Dezembro de 2021, depois de uma estreia cancelada em Março – mas esta por causa da pandemia –, o encenador romeno Gábor Tompa levou ao palco do Teatro Nacional São João, no Porto, uma nova encenação de À Espera de Godot na qual o papel de Lucky é interpretado pela actriz Maria Leite, escolha que, tanto quanto se sabe, não deu origem a nenhum processo judicial.

Quando percebeu, neste início de 2023, que não ia mesmo conseguir apresentar a sua encenação da peça na Universidade de Groningen, Oisín Moyne, provavelmente ironizando com o facto de o próprio texto de Beckett tratar do absurdo da existência, confessou ao jornal Irish Times: “Diria com inteira sinceridade que a minha vida, nestas últimas semanas, se tornou totalmente absurda.” E o encenador contou ainda que, no elenco e na equipa de produção, já corria a piada de que agora estavam, todos eles, à espera de Godot.

Moyne adianta que está a procurar outro espaço que receba a peça, para que o trabalho já feito não seja desperdiçado, e manifesta a esperança de que o centro cultural Usva use as datas agora libertadas no calendário da programação para acolher "uma iniciativa que promova a inclusão no teatro".

https://www.publico.pt/2023/02/07/culturaipsilon/noticia/producao-beckett-cancelada-restringir-audicoes-homens-2038010?

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