Produção de Beckett cancelada
por restringir audições a homens
Encenador cumpriu instruções do
dramaturgo, mas foi acusado de violar política de inclusão da universidade
holandesa de Groningen.
7 de Fevereiro de 2023
A peça À Espera de Godot,
encenada por Gábor Tompa, no Teatro Nacional São João, em 2021 TUNA
Uma encenação de À Espera de
Godot, de Samuel Beckett, cuja estreia estava prevista para Março no Centro
Cultural de Estudantes Usva, da universidade holandesa de Groningen, foi
cancelada quando a instituição soube que as audições para os cinco papéis
masculinos da peça só tinham sido abertas a actores desse mesmo sexo.
O jovem irlandês que estava a
dirigir a encenação, Oisín Moyne, de 24 anos, tentou argumentar que o próprio Samuel
Beckett deixara instruções para que a peça fosse representada por cinco
intérpretes do sexo masculino, e que desrespeitar essa indicação colocava a
companhia em risco de ser processada pelos herdeiros do dramaturgo, mas a
Universidade de Groningen
manteve a sua decisão de cancelar o espectáculo, alegando que este violara a
sua “política de inclusão”.
O responsável pela programação
teatral do Usva, Bram Douwes, secundou a posição da universidade. “Se se
tratasse de uma peça com cinco tipos brancos para a qual tivessem aberto
audições, estaria tudo bem, mas o que não podem é banir pessoas logo à
partida”, afirmou Douwes ao jornal universitário Ukrant.
A assessora de imprensa da
Universidade, Elies Kouwenhoven, reconhece que Beckett “declarou explicitamente
que esta peça devia ser interpretada por cinco homens”, mas argumenta que “os
tempos mudaram” desde que a peça foi apresentada pela primeira vez em 1953, e
que “a ideia de que só os homens são adequados a estes papéis está datada e é
mesmo discriminatória”. E concluiu: “Nós, como universidade, defendemos uma
comunidade aberta e inclusiva, na qual não é apropriado excluir outros seja com
que bases for.”
A administradora do Usva, Fay
Sterken, explicou ao Ukrant que o centro só soube que as audições tinham
sido exclusivamente para homens há cerca de duas semanas, quando a preparação
do espectáculo já ia adiantada, com ensaios a decorrer desde Novembro.
“Descobrimos que a companhia [intitulada GUTS – acrónimo de Groningen
University Theatre Society] tinha assinado a cláusula ‘só homens’, e isso foi
um choque, porque realmente não podemos concordar com ela por razões de
princípio”.
Oisín Moyne, que estudou Física
na Universidade de Groningen e acabou por se radicar na cidade holandesa, onde
hoje trabalha, explicou ao jornal irlandês Irish Times que tinha
considerado abrir as audições a todas as pessoas, mas que não o fez por causa
das regras estabelecidas por Beckett pouco antes da sua morte, as quais têm
sido defendidas pelos herdeiros legais da sua obra, que só entrará no domínio
público em 2059.
A produtora da peça, Medeea
Anton, em declarações ao mesmo jornal, defendeu que a decisão de cancelar a
peça se centrou nos actores, ignorando o papel de toda a restante equipa.
“Havia uma restrição quanto aos actores, que são apenas cinco, mas o resto da
equipa de produção é maioritariamente feminina, e também temos pessoas trans e
não-binárias”, informou Medeea Anton, acrescentando que “a maioria da equipa de
produção é da comunidade LGTB”.
A produtora diz que tentou
explicar aos responsáveis da universidade que se tratava apenas de uma questão
legal, mas que não conseguiu fazê-los mudar de ideias. “Somos uma pequena
companhia amadora, que não se pode arriscar a ser processada”, observou.
E não faltam precedentes para
demonstrar que o risco seria real. Recordando que o próprio Beckett, em 1988,
pouco antes de morrer, processou uma companhia holandesa por ter aberto as
audições da peça a mulheres, o Irish Times observa que os seus herdeiros
se têm mantido fiéis às instruções deixadas pelo dramaturgo.
Em 1991, a companhia Brut de
Beton tentou apresentar um À
Espera de Godot com um elenco exclusivamente feminino no Festival de
Avignon e o caso chegou a tribunal, com o juiz a proferir uma decisão algo
salomónica, permitindo a apresentação da peça, mas obrigando a que fosse lida,
antes de cada récita, a carta em que os representantes legais do autor expunham
as suas objecções.
Outra encenação da peça com cinco
actrizes foi cancelada em 2019 num colégio do Ohio, nos Estados Unidos, por
assumido receio de que os herdeiros de Beckett processassem a instituição.
Já a companhia de teatro londrina
Silent Faces criou, em 2021, uma paródia às regras de género impostas à obra de
Samuel Beckett com o espectáculo Godot Is a Woman (Godot É Uma Mulher),
cujo texto promocional abria com esta cronologia: “Em 1953 um homem escreveu
uma peça sobre esperar; em 1988 processou cinco mulheres por tentarem
interpretá-la; em 2001 Madonna lançou What It Feels Like for a Girl;
estamos em 2021 e continuamos à espera.”
Em Dezembro de 2021, depois de
uma estreia cancelada em Março – mas esta por causa da pandemia –, o
encenador romeno Gábor Tompa levou ao palco do Teatro Nacional São João, no
Porto, uma nova encenação de À Espera de Godot na qual o papel de Lucky
é interpretado pela actriz Maria Leite, escolha que, tanto quanto se sabe, não
deu origem a nenhum processo judicial.
Quando percebeu, neste início de
2023, que não ia mesmo conseguir apresentar a sua encenação da peça na
Universidade de Groningen, Oisín Moyne, provavelmente ironizando com o facto de
o próprio texto de Beckett tratar do absurdo da existência, confessou ao jornal
Irish Times: “Diria com inteira sinceridade que a minha vida, nestas
últimas semanas, se tornou totalmente absurda.” E o encenador contou ainda que,
no elenco e na equipa de produção, já corria a piada de que agora estavam,
todos eles, à espera de Godot.
Moyne adianta que está a procurar
outro espaço que receba a peça, para que o trabalho já feito não seja
desperdiçado, e manifesta a esperança de que o centro cultural Usva use as
datas agora libertadas no calendário da programação para acolher "uma
iniciativa que promova a inclusão no teatro".
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