Crónica Acção Paralela
* António Guerreiro
10 de Fevereiro de 2023,
A ilusão biográfica consiste em
fazer do biografado um indivíduo coerente que se vai tornando naquilo que é.
Uma caricatura desta atitude é a das curtas biografias dos políticos nos
jornais.
Nos últimos anos, talvez por
influência da cultura anglo-americana, começaram a proliferar as biografias nas livrarias
portuguesas e algumas até já as acomodam numa secção exclusiva devidamente
assinalada, construindo assim um pequeno museu das grandes individualidades.
Outrora, a biografia era um género que devia quase tudo à erudição; actualmente
deve uma boa parte ao jornalismo e outra parte à edição, pois a biografia é
sobretudo um “género editorial”. Partilha essa condição com o romance, tal como
ele hoje é produzido, difundido e “encorajado” (um eminente crítico literário
italiano escreveu um livro a exortar: “Não encorajar o romance”).
Chamo “género editorial” a um
género que deve muito do seu sucesso e hegemonia à máquina editorial, por mais
emperrada que ela esteja. Isto não significa que todos os romances publicados
actualmente possam ser incluídos neste género. Mas tinha alguma razão um
avisado crítico, ou até hipercrítico, especialista em diagnósticos, que
escreveu: “o romance é o cancro da literatura”. Orientados pelo seu olhar
clínico, podemos dizer que as biografias produzidas para responder às
exigências do género editorial são metástases.
O volumoso caudal de matéria
biográfica com que estamos confrontados merece que mencionemos um ensaio,
publicado em 1930, por um génio da Alemanha de Weimar, que iniciou o
adolescente Adorno na leitura de Kant, andou por vezes na proximidade da Escola
de Frankfurt e atravessou diversas disciplinas sem obedecer aos protocolos de
qualquer uma delas. Esse génio chama-se Siegfried Kracauer e, em
1930, escreveu um texto a que deu o título: A Biografia — Forma de Arte da
Nova Burguesia.
Também ele começa por verificar
que a biografia se tornou, no seu tempo, uma produção literária muito
difundida. E sete anos mais tarde dará o seu contributo para alimentar o
fenómeno, escrevendo uma biografia de Jacques Offenbach. Em boa verdade,
apontar-lhe esta incoerência é um pouco injusto porque Offenbach é, para ele,
apenas um pretexto: Paris do Segundo Império é o grande protagonista desse
livro.
O texto de Kracauer é denso e
complexo. Simplificando, digamos que ele entende que a ilusão biográfica
fornece o sossego e bem-estar de que a “nova burguesia” carece. A ilusão
biográfica consiste em fazer do biografado um indivíduo coerente, consciente,
unitário, soberano, que se vai tornando progressivamente naquilo que é.
Uma caricatura desta atitude é a
das curtas biografias dos políticos que às vezes os jornais publicam: aí, a
história do biografado, desde a infância, torna-se quase sempre um destino.
Trata-se sempre de personagens fadadas desde a infância para se tornarem, sem
falhas, naquilo que são. Os biógrafos entendem quase sempre como obrigatória a
passagem da vida do biografado para a sua obra. Ora, partir da obra para a vida
é não apenas muito mais interessante, mas também mais próximo da verdade que toda
a biografia visa.
Kracauer escreve numa altura em
que a ideia da “morte do romance” era glosada convictamente, e ele também não
evita esse tema sem derrames lutuosos. Ora, sendo o romance o género burguês
que veio substituir a epopeia numa época em que já não era possível dar sentido
a um herói épico, a biografia conserva, mesmo que com baixo teor, uma
componente épica, uma positividade heróica.
O discurso de Kracauer sobre a
biografia tem um aspecto histórico e outra sociológico. Há nele uma forte resistência
ideológica à biografia que se deve essencialmente ao facto de se tratar de uma
forma de literatura que satisfaz plenamente quem não quer arriscar um único
passo para além do seu limite individual e para além da sua própria classe. É
verdade que a forma literária da biografia, escreve Kracauer, é o signo de uma
fuga, ou antes, de uma esquiva. Mas de uma esquiva muito conservadora, que só
serve para dar algum suplemento de frescura ao lugar que se habita em
segurança.
A elite da nova burguesia que concede
tempo e privilégios à forma biográfica não se compromete seriamente em qualquer
tipo de dialéctica e sente-se confortada com um género que tem a pretensão de
erigir monumentos, mesmo que efémeros, aos grandes heróis. Heidegger, num
célebre curso de 1924 sobre Aristóteles, resolveu de maneira categórica, como
um epitáfio, a questão da monumentalização biográfica, dizendo que a única
coisa a registar na biografia de um filósofo é que nasceu em tal época,
trabalhou e morreu.
Livro de recitações
“[Héctor Bellerín] É um
futebolista improvável: defensor de causas progressistas como a luta LGBTQIA+ e
a luta antirracismo”
Carmo Afonso, in PÚBLICO, 6/2/2023
É possível vislumbrar um
pressuposto ou mesmo um princípio ideológico no modo como se declina aquela
série de letras maiúsculas que começam com um L e acabam com o sinal + . Há
quem só escreva LGBT, há quem acrescente a contragosto mais umas letrinhas, há
quem se sinta exausto quando chega ao + e reclame contra a perniciosa
“ideologia do género”. Carmo Afonso, pelo contrário, é tão generosa na
declinação que parece pertencer à categoria de quem cumpre sem protestos a
longa justaposição de letras maiúsculas, com um + a rematar. A quem acha que há
ali letras a mais, é preciso dizer que o que é próprio do género é a
proliferação e a invenção. O sinal + serve para dizer que a série tende para o
infinito e não há letras maiúsculas que cheguem, haverá sempre quem fica fora
da representação. Isto é novo? Não, foi sempre assim. Só que era quase tudo sem
nome.
https://www.publico.pt/2023/02/10/culturaipsilon/cronica/biografias-2038081
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