OPINIÃO
Todos vimos,
todos sabemos. Travar a morte em Gaza é honrar enfim a memória do Holocausto
Há uma nova geração para a mudança. A libertação do trauma que aprisiona a Europa onde o Holocausto aconteceu, com a cumplicidade de tantos. Que a Europa a ouça, porque eles sabem tudo sobre urgência.
Alexandra
Lucas Coelho
18 de Outubro
de 2023,
1. A
Europa está refém da culpa do Holocausto desde
a II Guerra Mundial. Mas honrar a memória do Holocausto será travar a
mortandade em Gaza agora. E honrá-la enfim, porque essa memória foi traída até
chegarmos a isto: 2,3
milhões de pessoas trancadas num gueto, bombardeadas dia e noite,
metade das quais deslocadas, sem água, comida, assistência.
E foi traída
também no gueto-arquipélago da Cisjordânia, onde quase três milhões de
palestinianos enfrentam a violência de colonos cada vez mais radicais. Os hoje
700 mil colonos que Israel foi plantando com betão e alcatrão, bem agarrados ao
chão, tanto na Cisjordânia como em Jerusalém Oriental, todos ilegais à luz do
que a Europa assinou. E que assim impedem a “Solução Dois Estados”, como os
líderes mundiais — todos eles — estão cansados de saber.
2. O
mundo está cansado de saber. Não há guerra mais mediatizada. Nenhum outro lugar
está incrustado em tantos humanos, pela fé, pela história, pelo pensamento. Ao
mesmo tempo, é como se o mundo de cada vez não soubesse. Há quem fosse criança
na Primeira ou na Segunda Intifada, ainda há pouco, agora. Haverá sempre quem
esteja a acordar, e quem possa acordar ainda. Como haverá sempre quem não
pense.
Não pensar é
muito perigoso. No epílogo de Eichmann em Jerusalém — um livro
sobre o
julgamento do nazi responsável pelo transporte de milhões de judeus
para o extermínio —, a judia Hannah Arendt fala do não-pensamento que viabiliza
o crime.
Escrevemos
muito depois de Auschwitz,
apesar do buraco que parecia ter engolido a poesia. Temos ecos de muitas
canções, muitos filmes. Depois de Auschwitz houve Hiroxima, e de cada vez nada
vimos: nada vimos que nos faça melhores.
A prova é
estarmos aqui. É o Estado
de Israel — fundado para que nunca mais o Holocausto acontecesse, e à
custa de muito combate, incluindo ataques terroristas sionistas — ter erguido
um muro em torno de cinco milhões de pessoas, e essas vidas desaparecerem do
lado de lá.
Valiam menos que as dos israelitas? Valem menos que a nossa, cada uma, agora? Valem menos porque em Telavive a vida é uma festa de gente branca e bonita onde o Ocidente se imagina melhor? Cinco milhões é metade de Portugal. E metade desses cinco milhões são crianças. Desapareceram da nossa vista, mas perante a nossa vista, no lugar mais televisionado do mundo.
3. Escrevo
estas palavras num jornal de um país europeu de maioria cristã. Muitos terão
ido lá ou sonham com isso, a Terra Santa, onde Cristo nasceu e morreu
crucificado. Os que a visitaram nos últimos anos já viram Belém atrás de um
muro. O Santo Sepulcro cercado de soldados. A Via Dolorosa cheia de
metralhadoras. Fora os colonos, para cima e para baixo, desafiando esse coração
de Jerusalém. Alguns leitores deste texto terão até atravessado o checkpoint para
Ramallah, visto a Cisjordânia.
Mas raríssimos
puderam entrar em Gaza. A primeira vez que lá entrei, em 2002, auge da Segunda
Intifada, já era difícil. Um viajante normal não podia, só sendo jornalista
credenciado, membro de ONG ou diplomata/político. E foi ficando pior.
Em 2006, o
Hamas ganhou as eleições gerais palestinianas, uma vitória limpa — e não
surpreendente, dado o falhanço da Fatah —, mas que a UE decidiu não reconhecer,
colando-se aos EUA nisso, contribuindo para alienar e radicalizar o Hamas. Uma
oportunidade perdida. Tudo mudou para pior. Isolado, em ruptura com a
Autoridade Palestiniana, o Hamas passou a governar Gaza, e ficou ainda mais
difícil ir lá.
Tudo isto
serviu a colonização israelita.
Entretanto,
Israel proibia os seus cidadãos de entrar em qualquer cidade palestiniana. Há
muito que os israelitas perderam o contacto civil com o horror do outro lado.
Só quando estão dentro de uma farda, com uma arma na mão. Ou quando são
colonos, essa espécie de milícia, carne para canhão do apartheid. O
que também ajudou a triturar a esquerda e a empatia.
Portanto, muito
pouca gente no mundo entrou em Gaza. As novas gerações de Israel não conhecem a
Palestina senão como soldados. E foi debaixo de fogo e ocupação, atrás de um
muro, entre checkpoints humilhantes, que as novas gerações
palestinianas nasceram.
Alguém acha
mesmo estranho que se “radicalizem” jovens assim, presos, sem perspectiva,
rodeados de morte? Alguém acha que manteria a cabeça no lugar? Que não
enlouqueceria? Não pensaria em tudo para se libertar?
Vivi um ínfimo
daqueles checkpoints, daqueles massacres, daqueles dias e noites
sob bombas em Gaza. No mesmo quarto de crianças que jamais conheceram uma noite
sem pesadelos. Sempre senti que o milagre na Palestina, mas sobretudo em Gaza,
era a vida apesar de tudo. A hospitalidade, a entreajuda. Toda a gente não ter
enlouquecido, apesar de tudo.
Apesar de os
pais já terem sido presos, ocupados e mortos, e os avós idem, e tudo a cada dia
ser pior. E apesar de o mundo — mesmo sem entrar em Gaza, mesmo com o muro —
ver, saber e permitir.
4. E
quem vai justificar isso para as novas gerações pelo mundo? Quem lhes explica
porque é que a Europa não trava esta matança? Porque é que os pais deles, os
avós ficaram tão presos na própria culpa, no seu próprio medo, ou seja, em si
mesmos, que não são capazes de honrar os mortos de ontem salvando os vivos de
hoje?
A memória do
que foi o Holocausto vai da concentração dos judeus em guetos até ao
extermínio. Também de meio milhão de ciganos, também de homossexuais e doentes
mentais, mas acima de tudo, esmagadoramente, de judeus: um genocídio
sem precedentes, sucedendo a perseguições milenares. Incluindo em Portugal.
Somos todos herdeiros dessa memória, de uma forma colectiva e contínua que se
pode resumir assim: nunca mais.
Nunca mais é o
espelho que está diante de cada um agora, e esse espelho diz: ainda sou humano?
A Europa
fala pelos direitos humanos, a paz e a civilização. Mas, quando isso é violado
pelo Estado de Israel, os responsáveis da UE não questionam que Israel seja uma
democracia, e não forçam a aplicação do que assinaram. A inacção da Europa é
uma acção contra a sua própria palavra
5. Desde
o ataque
do Hamas a 7 de Outubro, os líderes da União Europeia (UE) não tiveram
palavras novas para a escuridão inédita em que estamos. A declaração que
penosamente articularam dia 15 era tão velha quanto as muitas décadas que estão
para trás. Tão oca como centenas de declarações anteriores. Procurei a palavra
“ocupação” no texto. Não é um adjectivo nem uma opinião. É Direito
Internacional, resoluções da ONU assinadas pelos países da UE e boa parte do
mundo. Mas essa palavra não estava lá.
Ao longo de
todas estas décadas, a Europa falhou em estar à altura do que ela mesma votou.
Fala pelos direitos humanos, a paz e a civilização. Mais, como fundadora e
guardiã disso. Mas, quando isso é violado pelo Estado de Israel, os
responsáveis da UE não questionam que Israel seja uma democracia, e não forçam
a aplicação do que assinaram.
A inacção da
Europa é uma acção contra a sua própria palavra.
6. O
brutal 7 de Outubro foi o maior trauma que o Estado de Israel já viveu na
guerra com os palestinianos. Em cada casa israelita agora há luto, conversas
sobre evacuações por barco para Chipre, hipóteses de emigração ou pelo menos um
soldado, um reservista, filhos dos amigos. Gente que morrerá numa invasão
terrestre de Gaza. E penso também na angústia dos ditos árabes-israelitas, ou
seja, palestinianos que vivem no território de Israel. Israel voltou-se para
dentro, e o abismo só servirá a extrema-direita,
e esse parasita da guerra que é Netanyahu.
Vimos, estamos
a ver e veremos imagens que nunca tínhamos visto, ou julgámos não voltar a ver.
É uma noite muito escura em várias direcções.
7. Alguns
dos leitores deste texto ainda não tinham nascido a primeira vez que fui a
Gaza. Eles não entendem que a gente não faça nada. Tal como não entendem que a
gente não faça nada quando não há planeta B. E como entender? O que há para
entender? É fazer.
Esta é uma
geração madura para uma mudança que não aconteceu na minha. Para uma libertação
do trauma que aprisiona a Europa onde o Holocausto aconteceu, com a
cumplicidade ou inacção de tantos, além dos alemães. Que a Europa ouça esta
geração, porque eles sabem tudo sobre urgência. Era ontem, é já.
Falo da Europa
porque sou europeia, e precisamos muito que os líderes da Europa ousem
contrapor-se às armas que os EUA empunham já, aliando-se ao governo de
Netanyahu.
Além do livro
de Hannah Arendt — que a 7 de Outubro eu estava a ler na tradução portuguesa,
acabei entretanto, e para mim ficou fundido com o que estamos a viver agora —,
tenho na mesa Nós, filhos de Eichmann, do também filósofo judeu
Günther Anders, que foi marido de Hannah.
Sim, nós,
filhos de Eichmann. Maus animais, como
escrevi sábado neste
jornal. Para quem leu, o meu amigo W. voltou a responder. Amigo de muitos anos
em Gaza, e que muito sofreu às mãos do Hamas. Mesmo com dificuldade em
caminhar, tentou ir para sul, seguindo a ordem de evacuação de Israel. Apanhou
uma explosão no caminho, dezenas de mortos. Voltou para trás. Voltou a fazer
uma fractura, ele que nunca recuperou das torturas. Comida não era importante,
escreveu-me, mas água sim. Uns vizinhos ajudaram. Alguém sempre ajuda, é o que
há, é o que têm. Foi o que sempre vi, em 21 anos de idas a Gaza: têm-se uns aos
outros.
Jornalista
e escritora, ex-correspondente do PÚBLICO em Jerusalém
Jornalist
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