sábado, 21 de outubro de 2023

Relatora da ONU para a Palestina: “A operação militar viola os princípios da distinção, da precaução e da proporcionalidade”

GUERRA ISRAEL-HAMAS  18 OUTUBRO 2023

Relatora da ONU para a Palestina: “A operação militar viola os princípios da distinção, da precaução e da proporcionalidade”

Muito crítica do que crê ser benevolência excessiva da comunidade internacional para com Israel, Francesca Albanese aponta crimes de guerra e contra a Humanidade. A seu ver, os palestinianos estão indefesos

 

Tomás Guerreiro

Francesca Albanez concedeu esta entrevista ao Expresso enquanto viajava para os Estados Unidos da América, horas antes do chumbo da resolução de cessar-fogo no Conselho de Segurança das Nações Unidas. A relatora especial da ONU para os territórios palestinianos ocupados condena a operação de Israel por perpetuar violações sistemáticas do direito humanitário internacional e da Convenção de Genebra. Denuncia a política de ocupação e o regime de apartheid imposto ao povo palestiniano. Advoga pela urgência de um cessar-fogo para se travar “uma catástrofe humanitária de dimensões olímpicas”, com nuances de “limpeza étnica” e de “crime contra a Humanidade”.

Como descreve a situação humanitária em Gaza?
Há uma catástrofe humanitária de dimensões olímpicas. Já antes de 7 de outubro Gaza estava sob bloqueio ilegal há 16 anos. Não há recursos, sete em cada dez pessoas dependem de auxílio humanitário, metade da população está desempregada, há muita mortalidade infantil, todos os indicadores demonstram quão devastador é o bloqueio. É uma punição coletiva e enquadra-se num crime de guerra. O território está ocupado mesmo sem a permanência do exército, Israel controla entradas e saídas. Desde 7 de outubro, mais de 2800 palestinianos foram mortos, dos quais 700 eram crianças e 500 mulheres. Há 50 mil grávidas em risco. Esta população já enfrentou guerras de grande escala com Israel em 2008, 2009, 2012, 2014, 2021 e 2022. Antes de 7 de outubro foram mortos pelo conflito em Gaza 4200 adultos e 1200 crianças. Agora, cerca de 100 escolas abrigam um milhão de deslocados, dezenas de milhares de habitações estão destruídas, hospitais saturados e sem medicamentos. Sem água, os palestinianos bebem a do mar, salinizada e contaminada. Israel impede a entrega de ajuda humanitária, os bombardeamentos terraplanam áreas civis. Independentemente da legitimidade de autodefesa de Israel contra o Hamas, sob o artigo 51 da Carta das Nações Unidas, esta operação militar viola os princípios da distinção, precaução e proporcionalidade. Deram a ordem de evacuação a um milhão pessoas no Norte da Faixa de Gaza, mas o Sul está a ser bombardeado e não tem hospitais. Há ocupação de grandes franjas do território palestiniano, 60% da Cisjordânia está anexada e o resto é controlado “de facto” por Israel, Jerusalém foi conquistada, agora pressupõe-se que será a Faixa de Gaza. Apesar de a limpeza ética não ser conceito jurídico, encapsula elementos legais, como atrocidades e intenções genocidas. Há precedente no Tribunal Penal Internacional para a Jugoslávia. Antes da fundação do Estado de Israel, os palestinianos foram deslocados à força pelo Mandato Britânico da Palestina. Israel já deslocara 350 mil entre maio e novembro de 1948, antes da guerra com os países árabes. Seguiram-se mais 400 mil. Quando se assinou o armistício em 1949, com o Líbano, Jordânia, Síria e Egipto, havia 750 mil palestinianos refugiados. Antes do Mandato Britânico, só 10% da população nesse território era judia. A limpeza étnica sob pretexto de guerra aconteceu em 1949, mas também em 1967, com a ocupação da Cisjordânia, Jerusalém Leste e a Faixa de Gaza, resultando na expulsão de 350 mil palestinianos que nunca puderam regressar. Agora, há esta ordem de evacuação dada a 1,1 milhões de pessoas para o Sul de Gaza. Porque não se abrem corredores humanitários através de Israel ou da Cisjordânia? Os palestinianos temem a continuação da Nakba. Métodos menos visíveis de ocupação têm sido usados por Israel: recusa de vistos de residência a palestinianos, expropriações de terra ou a violência dos colonos. Há vilas inteiras despovoadas.

Regressando ao presente conflito. Como avalia as posições políticas da comunidade internacional, das Nações Unidas, dos Estados Unidos e da União Europeia?
O secretário-geral tem a obrigação jurídica, moral e política de apelar a um cessar-fogo, é o coração das Nações Unidas, humanitarismo sem “mas”. Os Estados Unidos sempre foram um pilar de defesa e apoio de Israel em detrimento dos palestinianos e do bem-estar da região. Protegendo de escrutínio um empreendimento colonial, legitima-se a violência estrutural. Há uma linguagem desumanizante e sem precedentes contra os palestinianos. A tendência americana pró-Israel bloqueia resoluções da ONU e concede apoio incondicional, alheio às violações dos Direitos Humanos e do direito humanitário internacional. A União Europeia tem menos envolvimento no processo político da Palestina, só desde os Acórdãos de Oslo, e muitos Estados têm posições individuais. No entanto, as instituições europeias desenvolveram um mantra conjunto: a solução de dois Estados. Esta desmoronou-se debaixo dos seus olhos. É impossível quando um Estado insiste em colonizar o outro. A História impede estados europeus de condenarem Israel, sem compreenderem que o “nunca mais” se aplica a todos os povos. A comunidade internacional descobriu o valor do direito internacional na Ucrânia, com a anexação ilegal, os colonatos, a violação do direito de autodeterminação, o crime de agressão… nada disto se aplica aos palestinianos?

Relatora da ONU para a Palestina: “A operação militar viola os princípios da distinção, da precaução e da proporcionalidade” 

Considera que essas violações do direito internacional estão a ocorrer, agora, na Palestina?
Israel viola o direito humanitário internacional e as convenções de Genebra. Os colonatos são crime de guerra, a transferência forçada de população é crime de guerra, a não conceção de julgamentos justos e detenções arbitrárias em massa são crimes de guerra. Quando estas violações são integradas numa motivação mais ampla e sistemática, configuram um crime contra a Humanidade. Por exemplo, o cerco militar é uma punição coletiva e, se resultar numa crise de fome, é um crime de guerra; intencionalmente provocada, é um crime contra a Humanidade. O caso de genocídio contra a população palestiniana deve ser considerado.

A comunidade internacional baseia-se no direito de autodefesa de Israel para legitimar a operação. Este direito elimina o cumprimento dos outros?
Os ataques, assassínios e raptos de civis pelo Hamas são crimes de guerra hediondos. Os crimes do Hamas foram bárbaros e não representam os palestinianos. Israel impõe um regime de apartheid que segrega os palestinianos de Gaza dos da Cisjordânia, há uma violação do direito de autodeterminação, o direito desse povo de ser livre e digno. Os colonos e os soldados israelitas exercem violência contínua contra o povo palestiniano: 400 pessoas foram assassinadas nos primeiros seis meses do meu mandato. É evidente, que o Hamas cometeu crimes de guerra e Israel tem o direito a defender-se, mas que significa autodefesa? O uso de força deve ser justificado pela necessidade. Terraplanar Gaza não é legitimo, é desproporcional, não respeita o principio da distinção, é desnecessário e brutal. Em nenhum país seria possível o bombardeamento de edifício atrás de edifício. O Hamas surgiu 20 anos após a ocupação de Israel e teve a sua conivência para enfraquecer a Fatah. Há declarações políticas genocidas contra a Palestina há anos. “Animais, selvagens” é a narrativa padrão de Israel.

Adania Shibli, escritora

 

Considera que o uso de poderio militar de Israel contra a Palestina tem intenções secundárias?
Sim, é necessário ler este acontecimento num contexto. Os políticos israelitas querem terra sem pessoas, é uma questão demográfica. Não só lançaram a violência de guerra atrás de guerra, mas também a dos colonatos, a do exército, a dos burocratas, a dos assassínios diários. Há um milhão de palestinianos deslocados entre 1949 e 1967, que nunca receberam visto de residência. Como é que o bombardeamento de Gaza elimina o Hamas? Depois das guerras em 2008, 2012, 2014, o Hamas ficou enfraquecido? Venceu as eleições sob observação da União Europeia e ninguém se pronunciou. Os bombardeamentos distinguem os militantes do Hamas da população civil? Ou são atacados todos pela mesma medida?

Dada a situação em Gaza, qual é o ambiente na Cisjordânia?
Horrível, na última semana, 55 palestinianos foram assassinados por colonos acompanhados pelo exército. Os palestinianos são mortos e detidos arbitrariamente todos os dias. Há mais de 1200 em centros de detenção sem acusações formais, sem julgamento ou garantias de direito. Os dirigentes europeus veem em Israel a única democracia do Médio Oriente. É democracia para os judeus, mas é um Estado de apartheid para os árabes. Nos territórios ocupados da Palestina há uma ditadura militar.

Qual é a importância de um cessar-fogo?
É tudo, é essencial. As Nações Unidas têm de pedir um cessar-fogo e a comunidade internacional deve acompanhar essa posição. Depois, é preciso trabalhar a opressão do povo palestiniano, não há forma de paz sem parar a impunidade de Israel, é apartheid por definição: enquanto colonatos ilegais estão sob a lei civil, os palestinianos estão sob a lei militar. A obrigação da comunidade internacional é garantir o cumprimento do direito internacional, é o único instrumento que pode delimitar as ações políticas, a correção de abusos. O caso da Palestina é distópico.

 https://expresso.pt/politica/2023-10-19-Israel-Hamas-as-ligacoes-historicas-do-PCP-e-a-dificuldade-do-Bloco-em-ler-tentativas-de-clivagem-64b3846a


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