quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Carlos Coutinho - [As clarissas em Portugal]



* Carlos Coutinho

2024 10 16

JULGO que poucos serão os conhecedores de que as clarissas são as autoencurraladas monjas da Ordem de Santa Clara., organização católica romana que dispôs de um enorme poder económico e político-militar, instalada que foi num imponente convento edificado às suas ordens na foz de um rio desprovido de asas, o Ave, em Vila do Conde, terra do poeta presencista que ao vai “por aí”, José Régio e que era colecionador de crucifixos, além de irmão de um notável pintor, Júlio, que também escrevia versos.

   Muito menos ainda serão os que sabem ter a Ordem de Santa Clara, meio século após ter chegado a Portugal, abriu em Lamego, Alto Douro, em 1254, o seu primeiro convento, sob a jurisdição dos franciscanos, que gostavam de “escadas a subir para o céu”, tendo alegadamente surgido de um sonho que Teresa Martins e Afonso Sanches, filho bastardo de D. Dinis, em que um “fumo odorífero” brotava do interior da terra. Aliás, segundo o cronista franciscano Manuel da Esperança, na sua “Corte da Glória”, tal foi um fenómeno recorrente em Portugal, em diferentes séculos e lugares, tendo o também franciscano e cronista frei Fernando da Soledade deixado escrito que uma mulher de “aprovada virtude” sonhou igualmente, no século XVI, com os mesmos odores no mesmo lugar, o que levou  mais tarde a rainha D. Leonor, a das misericórdias, a  ter a mesma “visão” aromática e a mandar construir em Lisboa o Convento da Madre de Deus que agora, para desgosto de muitos turistas, tem as portas sempre encerradas, não vá o Diabo tecê-las.

      De acordo com a sua carta de fundação, o ascetário de Vila do Conde destinava-se a jovens fidalgas descendentes de famílias nobres caídas em ruina. O regime era de clausura absoluta e, em contraste com o riquíssimo património do mosteiro, “tudo era muito pobre”, garante frei Fernando da Soledade: as freiras andavam descalças e vestiam apenas uma túnica de sarja ou um silício  de tecido grosseiro; nas celas tinham como cama alguns ramos de carqueja e cobertas pobres; consumiam dietas frugais de peixe e vinho, água e pão.

   Francamente, para mim, andar sem cuecas ainda vá lá - já tenho visto gente assim -, mas dormir em cima de uns agrestes ramos de carqueja, só as brasas com que se cozia o pão e o arroz do forno na minha casa da infância.

   Havia, no entanto, fartura por ali. Pescava-se no rio Ave trutas, sáveis e lampreias e no porto de mar as embarcações dos pescadores locais prodigalizavam peixe todo o ano. As searas tinham abundância de trigo, milho e centeio, árvores de fruto e boas hortaliças. Duas vezes por mês, havia feira franca no largo principal e a pacatez estabelecida era apenas quebrada uma vez por ano, durante a grande Feira de Santo Amar, que durava três dias e era montada no terreiro da capela homónima. 

   A vila, segundo a investigadora Maria José Oliveira, era pequena, mas bem dotada de autoridades locais – tinha alcaide e três vereadores, juízes de fora, dos órfãos da alfândega, escrivães e tabeliães, procurador do concelho e almoxarife, instituições públicas – (câmara, tribunal, casa da misericórdia, hospital e cadeia). Nenhuma notabilidade, porém, conseguia competir com o poder das freiras de Santa Clara, proprietárias de um vasto conjunto de herdades, coutos, lugares e vilas que mantiveram ferreamente os seus bens, rendas, padroados e aforações durante mais de cinco séculos. Em alguns momentos, esse poder foi disputado e guerreado com corregedorias, provisores e cúpulas eclesiásticas. 

   Em 1511, por exemplo, o bispo de Ceuta excomungou-as, depois de elas se terem barricado no convento, trancando portas e encerrando as igrejas, como protesto contra reformas decretadas pela Igreja Curiosamente, diz a investigadora, o mesmo método foi replicado no ano passado num convento de Burgos, Espanha, por freiras também da Ordem de Santa Clara). 

   Por vezes, irrompiam motins e rebeliões internas, com as clarissas a exigirem mudanças na cúpula conventual, alegando inquietações e injustiças, como regista abundante documentação do século XVI, quando o mosteiro deixou de ter o senhorio de Vila do Conde, mas a sua influência a diminuiu: a abadessa continuava com o privilégio de nomear diretamente as autoridades administrativas da terra: mantinha, terras, rendas, direitos reais, dízimos, tributos sobre o peixe, o pão e o sal; e eram donatárias da barca de passagem do rio Ave que lhes garantia opulentas receitas. 

   Quem diria…

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