segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Paulo Baldaia - ou neto de um polícia e sou um privilegiado, outros há que não são

Opinião

* Paulo Baldaia

Ser de um destes bairros, levantar de madrugada para trabalhar e só regressar noite feita, ao mesmo tempo que educam os filhos, dá a estas pessoas o estatuto de heróis, não o de eternos suspeitos

Num mundo tão desigual como aquele que habitamos, a mais dura das discriminações é aquela a que sujeitamos os mais pobres dos pobres, porque a esses apontamos a culpa da sua própria condição. Queremos acreditar, e fazê-los acreditar a eles próprios, que só é pobre quem quer. Repetimos por descargo de consciência: são pobres porque não estudaram, são pobres porque não querem trabalhar, são pobres porque querem viver à custa dos outros (RSI). Não ocorre à generalidade dos privilegiados que estes pobres que geram pobres, geração atrás de geração, são o fruto da sociedade que construímos. Esquecemos que a grande maioria dos pobres são trabalhadores e isso mostra-nos que a mão que tem o indicador apontando a culpa aos outros é a mesma que tem três dedos que se dobram apontando responsabilidades a nós próprios.

Sim, é verdade que ser cigano (a etnia mais odiada e mais discriminada) ou afrodescendente, a que se juntam agora também os indostânicos, é condição suficiente para sofrer na pele diariamente algum tipo de discriminação. Mas se forem pessoas abastadas (uma pequeníssima minoria) e puderem comprar um lugar ao sol (nos bairros ricos da cidade) e pôr os filhos no colégio, a discriminação a que são sujeitos será, mesmo que apenas ligeiramente, atenuada. Pelo contrário, quanto mais pobres são, mais são vistos como ciganos, afrodescentes ou indostânicos e não como cidadãos de plenos deveres e direitos.

Cresci num bairro de vivendas geminadas, mandado construir durante o Estado Novo, em parceria com organizações corporativas, em cidades como Lisboa e Porto, para as famílias dos funcionários desse mesmo Estado, mas não só. As Casas Económicas, como passaram a ser designadas, são habitações independentes de que os moradores se tornaram proprietários ao fim de determinado número de anos, mediante o pagamento de prestação mensal. No momento seguinte, construíram-se, junto dessas vivendas, bairros sociais de blocos (assim chamados por se tratar de prédios de construção muito simples e que permanecem pertença das autarquias). Na altura, dizia-se que a construção destes bairros camarários junto às vivendas tinha o objectivo político de dar aos mais pobres o convívio com a tal classe média que se formava e assim aprenderem a sair da pobreza. Outrora, como agora, havia a ideia peregrina de que só era pobre toda a vida quem queria.

O meu avô materno, que nem cheguei a conhecer, era polícia municipal e talvez isso tenha ajudado para os meus pais terem direito a uma vivenda, onde puderam criar uma família que só parou nos nove filhos. Eram da classe média, na relativa pobreza que isso significava ser classe média naquela altura, concorreram e foi-lhes entregue uma casa que passou a ser deles ao fim de 25 anos. O meu pai tinha estudos médios e isso fez com que eu não tenha nascido predestinado a viver na pobreza, mas quis o destino que crescesse a olhar para ela. A casa, que foi crescendo à medida que crescia a família, ficava paredes-meias com o bairro social onde o que crescia era a pobreza e a discriminação. Sou testemunha do esforço titânico que aquelas pessoas (alguns andaram na escola primária comigo) faziam para serem vistos como cidadãos de corpo inteiro. O país mudou, diminui o número de pobres, cresceu a classe média, mas até isso travou às quatro rodas. A certa altura, ficamos conformados com a ideia de que o país tem de viver com dois milhões de pobres.

Para evitar vermo-nos ao espelho quando olhamos para esta pobreza económica que reflecte a pobreza dos nossos valores, empurramo-la para cada vez mais longe da elite dominante. A condição social em que me encontro faz de mim um privilegiado, mas a consciência que tenho do privilegiado que sou obriga-me a olhar ainda com mais humanidade para os que apenas podem ambicionar sobreviver um dia de cada vez. Ser de um destes bairros, levantar de madrugada para trabalhar e só regressar noite feita, ao mesmo tempo que educam os filhos, dá estas pessoas o estatuto de heróis, não o de eternos suspeitos.

Ainda assim, este ano, algures num destes bairros poderá ter nascido alguém que, daqui a 20 anos, terá uma vida ligada ao crime. Nessa altura, vamos todos apontar o dedo ao criminoso e exigir repressão policial, continuando a não ver os três dedos que se dobram e nos apontam a responsabilidade por pouco ou nada termos feito para evitar que o bebé de hoje se tornasse um criminoso no futuro. No mesmo bairro, poderá ter nascido também este ano alguém que vai ser polícia, porque é uma das formas de sair da pobreza onde nasceu, e ao entrar no bairro, traído pela má memória do perigo que lá mora, vai disparar à mais pequena ameaça. Nessa altura, vamos todos querer justiça, não cuidando de perceber que para lhe apontar um dedo há três que se dobram apontando a todos nós, porque não lhe demos condições de ser um justo braço da lei. Está nas nossas mãos fazer com que a realidade mude.


Expresso  2024 10 28

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