* Paulo Baldaia
Ser de um destes bairros,
levantar de madrugada para trabalhar e só regressar noite feita, ao mesmo tempo
que educam os filhos, dá a estas pessoas o estatuto de heróis, não o de eternos
suspeitos
Num mundo tão desigual como
aquele que habitamos, a mais dura das discriminações é aquela a que sujeitamos
os mais pobres dos pobres, porque a esses apontamos a culpa da sua própria
condição. Queremos acreditar, e fazê-los acreditar a eles próprios, que
só é pobre quem quer. Repetimos por descargo de consciência: são
pobres porque não estudaram, são pobres porque não querem trabalhar, são pobres
porque querem viver à custa dos outros (RSI). Não ocorre à generalidade dos
privilegiados que estes pobres que geram pobres, geração atrás de
geração, são o fruto da sociedade que construímos. Esquecemos que a grande
maioria dos pobres são trabalhadores e isso mostra-nos que a mão que tem o
indicador apontando a culpa aos outros é a mesma que tem três dedos que se
dobram apontando responsabilidades a nós próprios.
Sim, é verdade que ser cigano (a
etnia mais odiada e mais discriminada) ou afrodescendente, a que se juntam
agora também os indostânicos, é condição suficiente para sofrer na pele
diariamente algum tipo de discriminação. Mas se forem pessoas abastadas (uma
pequeníssima minoria) e puderem comprar um lugar ao sol (nos bairros ricos da
cidade) e pôr os filhos no colégio, a discriminação a que são sujeitos será,
mesmo que apenas ligeiramente, atenuada. Pelo contrário, quanto mais
pobres são, mais são vistos como ciganos, afrodescentes ou indostânicos e não
como cidadãos de plenos deveres e direitos.
Cresci num bairro de vivendas
geminadas, mandado construir durante o Estado Novo, em parceria com
organizações corporativas, em cidades como Lisboa e Porto, para as famílias dos
funcionários desse mesmo Estado, mas não só. As Casas Económicas, como passaram
a ser designadas, são habitações independentes de que os moradores se tornaram
proprietários ao fim de determinado número de anos, mediante o pagamento de
prestação mensal. No momento seguinte, construíram-se, junto dessas vivendas,
bairros sociais de blocos (assim chamados por se tratar de prédios de
construção muito simples e que permanecem pertença das autarquias). Na
altura, dizia-se que a construção destes bairros camarários junto às
vivendas tinha o objectivo político de dar aos mais pobres o convívio com a tal
classe média que se formava e assim aprenderem a sair da pobreza. Outrora,
como agora, havia a ideia peregrina de que só era pobre toda a vida quem
queria.
O meu avô materno, que nem
cheguei a conhecer, era polícia municipal e talvez isso tenha ajudado para os
meus pais terem direito a uma vivenda, onde puderam criar uma família que só
parou nos nove filhos. Eram da classe média, na relativa pobreza que isso
significava ser classe média naquela altura, concorreram e foi-lhes entregue
uma casa que passou a ser deles ao fim de 25 anos. O meu pai tinha
estudos médios e isso fez com que eu não tenha nascido predestinado a viver na
pobreza, mas quis o destino que crescesse a olhar para ela. A casa, que foi
crescendo à medida que crescia a família, ficava paredes-meias com o bairro
social onde o que crescia era a pobreza e a discriminação. Sou testemunha do
esforço titânico que aquelas pessoas (alguns andaram na escola primária comigo)
faziam para serem vistos como cidadãos de corpo inteiro. O país mudou, diminui
o número de pobres, cresceu a classe média, mas até isso travou às quatro
rodas. A certa altura, ficamos conformados com a ideia de que o país tem de
viver com dois milhões de pobres.
Para evitar vermo-nos ao espelho
quando olhamos para esta pobreza económica que reflecte a pobreza dos nossos
valores, empurramo-la para cada vez mais longe da elite dominante.
A condição social em que me encontro faz de mim um privilegiado, mas a
consciência que tenho do privilegiado que sou obriga-me a olhar ainda com mais
humanidade para os que apenas podem ambicionar sobreviver um dia de cada
vez. Ser de um destes bairros, levantar de madrugada para trabalhar e
só regressar noite feita, ao mesmo tempo que educam os filhos, dá estas pessoas
o estatuto de heróis, não o de eternos suspeitos.
Ainda assim, este ano, algures
num destes bairros poderá ter nascido alguém que, daqui a 20 anos, terá uma
vida ligada ao crime. Nessa altura, vamos todos apontar o dedo ao criminoso e
exigir repressão policial, continuando a não ver os três dedos que se dobram e
nos apontam a responsabilidade por pouco ou nada termos feito para evitar que o
bebé de hoje se tornasse um criminoso no futuro. No mesmo bairro, poderá ter
nascido também este ano alguém que vai ser polícia, porque é uma das formas de
sair da pobreza onde nasceu, e ao entrar no bairro, traído pela má memória do
perigo que lá mora, vai disparar à mais pequena ameaça. Nessa altura, vamos
todos querer justiça, não cuidando de perceber que para lhe apontar um dedo há
três que se dobram apontando a todos nós, porque não lhe demos condições de ser
um justo braço da lei. Está nas nossas mãos fazer com que a realidade mude.
Expresso 2024 10 28
Sem comentários:
Enviar um comentário