Textos e Obras Daqui e Dali, mais ou menos conhecidos ------ Nada do que é humano me é estranho (Terêncio)
sexta-feira, 29 de novembro de 2024
Carlos Matos Gomes - A cultura das tias de Cascais
Ricardo Araújo Pereira - Considerações sobre arte e bananas
quinta-feira, 21 de novembro de 2024
Operação Condor: A América do Sul sob botas
por Augusto Buonicore*
“Nos Estados Unidos, como sabe, simpatizamos com o que você esta tentando fazer no seu país (...) Desejemos sucesso ao seu governo” .
(Kissinger ao general Pinochet)
“Nós o seguimos. Você é o líder!”
(Pinochet à Kissinger)
Fotos:
Kissinger e Pinochet;
Pinochet no dia do golpe
e Cenas do golpe no Chile
***
Quando a justiça italiana começou a pedir extradição dos acusados de terem conspirado para assassinar opositores políticos das ditaduras militares latino-americanas, abriu-se novamente a Caixa de Pandora. A famigerada Operação Condor voltou às manchetes dos principais jornais. São 149 pedidos de extradição e envolvem militares argentinos, uruguaios, brasileiros, paraguaios e bolivianos. Do Brasil são onze os envolvidos no processo. Mas, o problema vai além de extraditar ou não essas pessoas. Trata-se de algo mais sério. Trata-se de se estabelecer a justiça e a verdade histórica. Nenhuma lei de anistia pode suplantar tais princípios.
O Brasil nas origens do Condor
O Brasil, desde o golpe militar de 1964, passou a ser uma espécie de gendarme dos interesses norte-americanos na América Latina. A ditadura brasileira procurava ser uma barreira à implantação de regimes democráticos, populares e antiimperialistas em nossa região. Em 1970, o general-presidente Garrastazu Médici ajudou na desestabilização do governo progressista de Juan José Torres e na implantação da ditadura sanguinária de Hugo Banzer na vizinha Bolívia.
Sobre esse triste acontecimento escreveu Moniz Bandeira: “A Casa Militar do presidente Garrastazu Médici, chefiada pelo general João Batista Figueiredo, ofereceu aos adversários do governo do general Juan José Torres, através do ex-coronel Juan Ayoroa, dinheiro, armas, aviões e até mercenários, bem como permissão para instalar áreas de treinamento perto de Campo Grande e em outros locais próximos da fronteira. E o golpe de estado, deflagrado, finalmente, pelo general Hugo Banzer, contou com aberto apoio logístico do Brasil, cujos aviões militares, sem ocultar as insígnias nacionais, descarregaram fuzis, metralhadoras e munições em Santa Cruz de la Sierra, enquanto tropas do 2º Exército, comandado pelo general Humberto Melo, estacionavam em Mato Grosso, prontas para intervir na Bolívia (onde alguns destacamentos penetraram), se necessário fosse”.
Um ano depois o Brasil preparava, secretamente, – com apoio estadunidense – uma ocupação militar do Uruguai, prevendo uma vitória da Frente Ampla (de centro-esquerda), encabeçada pelo general Líber Seregni. O plano foi denominado Operação Trinta Horas. Este era o tempo previsto para ocupação do território uruguaio. O ato extremado não foi necessário, pois a esquerda acabou sendo derrotada por uma coalizão de direita. Após a vitória do arqui-conservador Juan Maria Bordaberry, o delegado-torturador brasileiro Sérgio Paranhos Fleury se deslocou para Montevidéu para ajudar montar o esquema repressivo – leia-se esquadrões da morte – contra a guerrilha organizada pelos Tupamaros. O Uruguai começava a preparar o terreno para a implantação de uma ditadura.
O Brasil também se envolveu diretamente nos planos do imperialismo e dos conservadores chilenos para derrubar o governo socialista de Salvador Allende. “Sem dúvida alguma, afirmou Moniz Bandeira, a cumplicidade do Brasil foi, na verdade, muito maior do que transpareceu. Além de recursos financeiros, fornecidos por empresários de São Paulo, vários carregamentos de armas e munições, entre 1972 e 1973, saíram do porto de Santos, com destino a Valparaiso, em caixas de maquinaria agrícola e de outros produtos, importados pela firma do Senador Pedro Ibáñez Ojeda, a fim de abastecer a organização direitista Patria y Libertad”.
Continuou ele, “o Brasil reconheceu imediatamente a Junta Militar, chefiada pelo general Augusto Pinochet. Vários aviões da Força Aérea Brasileira voaram para Santiago, transportando não só mantimentos e remédios como também assessores da Polícia Federal e oficiais das Forças Armadas, que participaram de interrogatórios e treinaram seus colegas chilenos na arte da tortura”. Arte que, por sua vez, foi nos ensinada por técnicos da CIA e de potências ocidentais que já a havia empregado amplamente na Argélia e no Vietnã.
O Chile sob o governo socialista de Allende havia sido um porto seguro para aqueles que fugiam das ditaduras em nosso hemisfério. Centenas de brasileiros, de diversas organizações políticas oposicionistas, ali viviam e trabalhavam. O golpe de Pinochet significaria uma reversão dessa situação. A maior parte conseguiu fugir para Argentina – a única democracia restante na América do Sul. Uma ditadura militar havia sido implantada no Uruguai poucos meses antes do golpe no Chile.
Com os golpes no Uruguai e Chile as coisas mudaram de qualidade e a ditadura militar brasileira passou a contar com importantes aliados no Cone Sul. Os órgãos de repressão agora podiam estender suas garras sobre os exilados políticos que viviam naqueles países.
A partir de 1974, com a morte do presidente Perón e a posse de Isabelita, a situação também se desestabilizou na Argentina. O país foi atingido por uma crescente radicalização política. De um lado, havia os grupos guerrilheiros que aumentavam o nível de suas ações; de outro, os grupos para-militares de direita, como a Aliança Anticomunista Argentina, enraizados nos órgãos de repressão, que promoviam assassinatos sistemáticos de lideranças de esquerda.
Pressionado pelos conservadores, o governo de Isabel Perón decretou Estado de Sítio e concedeu amplos poderes para as forças armadas agir contra os grupos clandestinos de esquerda. O general Videla, comandante militar, afirmou “Se for preciso, na Argentina, vão morrer tantas pessoas quanto forem necessárias para que se alcance a paz no país”. Começava, assim, sob um regime formalmente democrático, um dos maiores massacres já visto nesta parte do planeta.
Em março de 1976, o próprio governo constitucional viria abaixo. A partir de então não haveria mais nenhum país democrático ao sul do continente americano. Neste momento o Condor, que era o símbolo da liberdade nos Andes, se transformou numa ave sombria a atormentar a vida dos exilados políticos em todas as partes do mundo.
Preparando o vôo do Condor
Mesmo antes de ser criada oficialmente a Operação Condor, já existia um intercâmbio ativo de informações e de ação entre os órgãos de repressão dos países da América do Sul. No período que vai de 1973 e 1975, por exemplo, haviam sido mortos três brasileiros exilados em território argentino e seis em território chileno.
O major Joaquim Cerveira, da Frente de Libertação Nacional, e João Batista Rita, do grupo Marx, Mao, Marighella (M3G), foram seqüestrados e torturados na Argentina numa operação conjunta de policiais brasileiros e argentinos. Depois foram transladados para o Brasil onde desapareceram. Em julho de 1974 um grupo de seis militantes – cinco brasileiros e um argentino – ligados à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) foram assassinados – e seus corpos desapareceram – no Paraná. Eles haviam ingressado no país através de Foz do Iguaçu. Sua ação estava sendo acompanhada pelos órgãos de repressão do Chile e da Argentina. Edmur Péricles Carvalho, também do M3G, foi preso em junho de 1975 no aeroporto de Buenos Aires por um grupo de policiais brasileiros e argentinos. Foi levado ao Brasil e assassinado.
A Argentina foi palco privilegiado da ação conjunta dos órgãos de segurança. Sendo a última democracia – ainda que frágil - dessa parte do continente, ela se tornou o abrigo de milhares de refugiados do Brasil, Chile, Uruguai, Paraguai e Bolívia. Existiam ali 15 mil exilados políticos. Ela se tornou uma “reserva de caça” para os órgãos de repressão da região.
Em março de 1974 o coronel chileno Manuel Contreras foi aos Estados Unidos pedir auxílio para montar seu aparato de “segurança interna”, a DINA. Uma equipe de oito agentes da CIA foi enviada para organizar cursos e seminários num tema que eram especialistas: repressão política. Não foi por coincidência que, justamente, no período que esses agentes estavam no Chile, entre junho e agosto, tenha ocorrido a primeira grande ofensiva da repressão contra a oposição clandestina, dobrando o número de desaparecidos políticos.
A primeira grande ação dos órgãos de repressão chilenos fora do país ocorreu em setembro de 1974. Neste mês o general Carlos Prats, que servira ao governo de Salvador Allende, foi morto num atentado à bomba na cidade de Buenos Aires. O explosivo foi colocado pelo agente da DINA, Michael Townley. Ele havia nascido nos Estados Unidos e tivera contato com a CIA. A conspiração para matar Prats foi realizada junto com grupos para-militares argentinos – como a Aliança Anticomunista.
Segundo John Dinges, a primeira experiência de ação conjunta entre vários órgãos de repressão do Cone Sul ocorreu em maio de 1975. Neste período foram presos, no Paraguai, o argentino Amílcar Santucho, líder montonero, e o chileno Jorge Fontes, dirigente do MIR. Ambos eram membros da Junta de Coordenação Revolucionária (JCR) – articulação de diversos movimentos revolucionários da região. Do interrogatório participaram policiais do Chile, Argentina e Paraguai, além de um agente do FBI. Os dois foram torturados e depois enviados para seus países onde foram assassinados.
Em agosto de 1975, o coronel Contreras voltou aos Estados Unidos, encontrou-se com Kissinger e recebeu, na sede da CIA, uma “recepção efusiva”. O chefe da Dina saiu animado da reunião e passou, imediatamente, a articular um encontro de representantes dos órgãos de segurança do Cone Sul. Três meses depois do encontro na sede da CIA, uma reunião “absolutamente secreta” daria origem à famigerada Operação Condor. Hoje é claro que a idéia de criar uma coordenação dos órgãos de repressão do Cone Sul nasceu nos Estados Unidos. Vários documentos comprovam isso.
A CIA tomou conhecimento da Operação Condor antes mesmo que ela fosse criada e tendeu a incentivá-la por considerá-la um esforço positivo no combate ao “terrorismo”. Desde o golpe militar no Chile ela vinha conclamando a coordenação do trabalho dos órgãos de repressão.
A Operação Condor entra em cena
Da primeira reunião oficial, ocorrida na cidade de Santiago em novembro de 1975, participaram representantes do Chile, Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia e Paraguai. O encontro foi aberto pelo próprio ditador Pinochet, que assumiu a paternidade do projeto, e presidido por Contreras. Os sócios da Operação ficaram surpresos quando souberam que o “grande irmão do norte” havia fornecido modernos sistemas computadores e assessoria técnica à DINA para que ela montasse um banco de dados que ajudasse na repressão aos grupos de esquerda.
O então chefe do SNI brasileiro, João Batista Figueiredo, recebeu um convite pessoal do Contreras, mas o nome do representante brasileiro na reunião até hoje continua sob segredo de Estado. No entanto, o país não assinaria o documento final aprovado na primeira reunião, embora participasse do grupo. Ele se juntaria oficialmente ao Condor na segunda reunião ocorrida em junho de 1976.
Numa carta de Contrera à Figueiredo, datada de agosto de 1975, podia se ler: “Também temos conhecimento das posições de Kubitschek e Letelier, o que no futuro poderá influenciar seriamente a estabilidade do Cone Sul de nosso hemisfério. O plano proposto por você para coordenar a ação contra certas autoridades eclesiástica e políticos da América Latina conta com o nosso decisivo apoio”. Em agosto do ano seguinte JK morreria num estranho acidente de carro e logo em seguida, em setembro, Letelier seria brutalmente assassinato. Antes que ano acabasse morreria outro ex-presidente do Brasil, João Goulart. Hoje são cada vez maiores os indícios que Jango tenha sido morto por agentes uruguaios a mando do governo brasileiro.
A Operação Condor foi planejada para ter três fases. A primeira seria basicamente a obtenção e troca de informações sobre a atuação de grupos oposicionistas no interior dos países envolvidos: Chile, Argentina, Uruguai, Brasil, Paraguai e Bolívia. A segunda fase era a operacional, ou seja, envolvia ação conjunta no seqüestro, tortura e execuções de militantes dentro da América do Sul. As fronteiras nacionais – e o direito ao exílio – agora caiam por terra quando se dizia respeito à repressão político-militar. A terceira fase – e a que mais chamou a atenção do mundo – envolvia assassinato de oposicionista fora da América Latina. Grupos de espiões e assassinos profissionais foram enviados para a Europa e Estados Unidos.
O governo do Brasil deu o seu aval e participou ativamente da 2ª e 3ª fase da Operação, mas resistiu quanto à última. Ele temia os efeitos negativos na opinião pública mundial. Naquele momento o general-presidente Geisel procurava “vender” a sua política de abertura lenta, gradual e segura. No entanto surgiram provas que existiu uma tentativa de articulação entre a DINA e o SNI para espionar opositores refugiados na Península Ibérica. Inclusive, cogitou-se assassinar o Almirante Aragão em Portugal.
Apesar da retórica da caça aos terroristas – entenda-se esquerda armada -, a ação dos órgãos de repressão se voltava cada vez mais para os políticos oposicionistas que não haviam ingressado na luta revolucionária e defendiam uma transição democrática e pacífica para seus países. Em cinco de outubro de 1975, Bernardo Leighton, ex-vice-presidente do Chile e líder democrata-cristão, sofreu um atentado enquanto se encontrava exilado na Itália. Dessa vez a DINA contou com apoio de um grupo fascista local chamado Vanguarda Nacional.
Em maio de 1976 seriam seqüestrados e friamente assassinados na cidade de Buenos Aires o ex-senador uruguaio Zelman Michelini e o ex-deputado Héctor Guttiérez Ruiz. Mais tarde, em 1º de junho, na mesma cidade, seria morto o ex-presidente da Bolívia, general Juan José Torres. Esses assassinatos faziam parte da segunda fase da Operação Condor.
O caso mais famoso – ocorrido na terceira fase – foi o assassinato do ex-ministro chileno Orlando Letelier em 21 de setembro de 1976. Seu carro explodiu nas ruas da capital dos Estados Unidos, Washington. Neste atentado morreu também uma jovem norte-americana, Michael Moffitt. O método foi o mesmo utilizado contra o general Prats. Novamente por trás do assassinato estava a figura sinistra de Townley.
A morte de Letelier foi um escândalo internacional que colocou o próprio governo dos Estados Unidos na parede. Afinal, tratava-se de um atentado terrorista organizado por um de seus principais aliados. O escândalo foi ainda maior quando se descobriu que a CIA e o Departamento de Estado poderiam ter evitado o ataque terrorista, pois sabiam que um grupo de agentes chilenos, com passaportes falsos, tinha planos de entrar no país. Portanto, a CIA foi omissa ou cúmplice do mais notório dos crimes da Operação Condor.
Num primeiro momento tentou-se jogar uma nuvem de fumaça sobre as possíveis origens do crime. Afirmou um jornal: “Os funcionários da Inteligência disseram que uma investigação paralela estava apurando a possibilidade de o sr. Letelier ter sido assassinado por extremistas esquerdistas chilenos como meio de romper as relações dos Estados Unidos com a Junta militar”. A mesma versão dada pela ditadura chilena. Era um verdadeiro escárnio à consciência do mundo. A imagem do governo Republicano se viu bastante abalada.
Mais tarde – já na prisão – Contreras afirmou que a ordem de execução veio diretamente de Pinochet e que a CIA teria ajudado a executá-la. Nada de estranho. A CIA esteve envolvida em tentativas de homicídios políticos em várias partes do mundo, como o do líder congolês Lumumba e do comandante-em-chefe das Forças Armadas do Chile, general René Schneider. O crime deste militar honrado teria sido “apoiar com firmeza a constituição chilena”.
No auge da repressão, o ministro das relações exteriores da Argentina, o almirante Guzzetti, visitou Kissinger e voltou animado com a acolhida recebida. Segundo ele, o secretário americano havia afirmado que “se o problema do terrorismo estivesse eliminado em dezembro ou janeiro (de 1977), ele acreditava que sérios problemas poderiam ser evitados nos Estados Unidos”. Isso enfureceu o embaixador norte-americano na Argentina que sugerira que o governo do seu país criticasse mais duramente a sistemática violação dos direitos humanos.
Os generais argentinos sempre afirmaram que a sugestão de uma guerra rápida contra o terrorismo havia sido feita pelo próprio Kissinger. Eles, como Pinochet e Contreras, apenas cumpriram ordem de seu líder. Em 1978, já fora do poder, Kissinger visitou o ditador Videla e elogiou “o trabalho extraordinário ao eliminar as forças terroristas”, mas advertiu que os métodos usados “não deviam ser perpetuados”. Esse era um endosso aos crimes nefandos cometidos pela ditadura Argentina até então.
Planos assassinos do Condor na Europa também foram descobertos e foi preciso desmontá-los rapidamente. A lista de possíveis assassinados era longa. Quando se descobriu que havia intenção de assassinar até mesmo um deputado democrata nos Estados Unidos as coisas se complicaram para o lado de Pinochet. Em dezembro de 1976 estavam suspensas as atividades do Condor fora do Cone Sul.
Jimmy Carter, candidato Democrata e que tinha como uma das bandeiras os direitos humanos, ganhou a eleição para a presidência dos Estados Unidos no final de 1976. As investigações do caso Letelier levaram à Pinochet e Contreras. Em agosto de 1977 a DINA foi fechada e Contreras saiu do Exército. Levaria ainda alguns anos para que ele fosse preso, julgado e condenado. Recentemente descobriu-se que ele estava na lista de pagamento da CIA.
O Condor, no entanto, continuou fazendo suas vítimas neste hemisfério, inclusive no Brasil da abertura. Em novembro de 1978 os uruguaios Lílian Celiberti e Universindo Diaz foram seqüestrados por policiais uruguaios e brasileiros na cidade de Porto Alegre. Depois de presos foram torturados e enviados de volta para o seu país. A pressão da imprensa nacional e internacional – que descobriu o seqüestro – impediu que os dois passassem a compor a lista de uruguaios desaparecidos, embora tivessem que passar cinco anos numa prisão.
O argentino Lorenzo Ismael Viña, desapareceu em junho de 1980 na cidade de Uruguaiana (RS). Horácio Campiglia, também argentino, foi preso no aeroporto do Galeão (RJ) em março de 1980. Os dois não tiveram a sorte de ter o seu seqüestro descoberto a tempo. Eles foram extraditados secretamente e desapareceram.
Baseado nestes dois casos – nos quais os assassinados tinham dupla nacionalidade: argentina e italiana – é que a justiça da Itália pediu a extradição de policiais e militares brasileiros. O pedido esbarrou com a nossa constituição que impede a extradição de brasileiros para julgamento em outros países. Esta garantia seria justa – e defensável - se as nossas autoridades – a partir de informação contidas no processo que corre na Itália – abrissem um processo contra os acusados. Eles não estão protegidos nem mesmo pela Lei da Anistia que abrange apenas os crimes realizados até o ano de 1979.
A Operação Condor foi responsável pela morte e desaparecimento de 135 uruguaios, 113 chilenos, 51 paraguaios e 11 brasileiros que estavam exilados em algum dos países envolvidos. Esta foi apenas uma pequena parte de um massacre ainda maior. Nestes anos sombrios de ditaduras militares morreram nas mãos da repressão política trinta mil argentinos, três mil chilenos, dois mil paraguaios, trezentos e cinqüenta brasileiros, duzentos uruguaios e cento e sessenta dois bolivianos. Os números do morticínio ainda são incompletos.
Em 1998 Pinochet foi preso por curto tempo em Londres a pedido do juiz espanhol Baltasar Garzón. Este foi um ato simbólico de grande importância. Na Argentina, Uruguai e Paraguai, vários comandantes militares e policiais também foram condenados e passaram algum tempo na cadeia por seus crimes odiosos. O Brasil ainda engatinha neste terreno. Nenhuma autoridade foi punida pelos crimes que cometeu.
É bom lembrarmos, também, que não foram punidos àqueles que mais se envolveram na desestabilização das democracias latino-americanas, apoiaram as ditaduras assassinas, ensinaram-lhe as técnicas modernas de tortura, deram-lhes suporte para impor o terrorismo de Estado, incentivaram e financiaram os órgãos de repressão (como a Operação Condor). Refiro-me às autoridades estadunidenses, aos Kissingers e Rockefellers. Contra esses não foi pedida nenhuma extradição nem se abriu nenhum processo. Esperamos que não apenas os seus fantoches, de casaca ou de farda, respondam perante os tribunais e a história.
Bibliografia:
Bandeira, Luiz Alberto Moniz – “Brasil e os golpes na Bolívia, Uruguai e Chile”; In: Espaço Acadêmico, nº28, setembro de 2003
Dinges, John – Os anos do Condor, Ed. Companhia das Letras, 2005
Krischke, Jair - Brasil e a Operação Condor,
*Augusto Buonicore, Historiador, mestre em ciência política pela Unicamp
* Opiniões aqui expressas não refletem, necessariamente, a opinião do site.
.
.
.
.
sábado, 16 de novembro de 2024
Carlos Coutinho - [a receita do Leão de Loures e Ascenso Simão: praticar o fascismo para "combatê-lo"]
Tiago Franco - SENSO E SENSIBILIDADE, CIRÚRGICOS |
sexta-feira, 15 de novembro de 2024
Mia Couto - Venenos de Deus, remédios do Diabo
- De onde tu és? - perguntou Deolinda.
- Sou da Guarda.
Ingénua malícia no olhar, ela sussurrou no ouvido de Sidónio Rosa:
- Tu és o meu anjo da guarda.
O riso dela ganhou espessura, inundando-lhe o corpo. Depois, o corpo já não lhe bastava e ela se encostou nele. O português viu as suas defesas desmoronarem. Os braços dele envolveram-na, a medo. Quando deram conta, estavam enleados, sem saber que parte pertencia a um e a outro. A Praça do Rossio, em Lisboa, ficou, de repente, despovoada. Um homem e uma mulher trocavam beijos e o seu amor desalojava a cidade inteira.
- Tens medo de fazer amor comigo?
- Tenho - respondeu ele.
- Por eu ser preta?
- Tu não és preta.
- Aqui, sou.
- Não, não é por seres preta que eu tenho medo.
- Tens medo que eu esteja doente ...
- Sei prevenir-me.
- É porquê, então?
- Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti.
Deolinda franziu o sobrolho. Empurrou o português de encontro à parede, colando-se a ele. Sidónio não mais regressaria desse abraço.
- Que olhar é meu nos olhos teus?
Nessa noite se solveram, mãos de oleiro, salvando o outro de ter peso. Nessa noite o corpo de um foi lençol do outro. E ambos foram pássaros porque o tempo deles foi antes de haver terra. E quando ela gritou de prazer o mundo ficou cego: um moinho de braços se desfez ao vento. E mais nenhum destino havia.
- Amar - disse ele - é estar sempre chegando.
Um ano depois, sentado sobre um banco de pedra, o português sente estar ainda chegando a Vila Cacimba enquanto convoca as memórias do encontro com a mulata Deolinda. O que faltava, agora, para que ele se sentisse já chegado?
Lembrou os versos que ele próprio rabiscara na ausência de Deolinda: «Eu sou o viajante do deserto que, no regresso, diz: viajei apenas para procurar as minhas próprias pegadas. Sim, eu sou aquele que viaja apenas para se cobrir de saudades. Eis o deserto, e nele me sonho; eis o oásis, e nele não sei viver.»
Na poesia, haveria oásis e desertos. Mas, em Vila Cacimba, havia apenas uma praça onde um médico estrangeiro se banhava nas lembranças de sua amada. É no meio dessa praça que esse médico aspira o ar fresco e sorri de satisfação: no seu país é outono e, àquela hora, ele estaria submerso entre o frio cinzento.
Esses são os pensamentos de Sidónio Rosa enquanto se dirige a casa dos Sozinhos. Desta vez, porém, não entra. Está um dia demasiado luminoso para ele se adentrar naquele escuro. Ronda a casa, em bicos de pés, e bate na janela do quarto de Bartolomeu. Ensonado, o rosto do velho, inquisitivo, enfrenta a claridade.
- Deixe a janela aberta que é para respirar este arzinho da manhã - convida o médico.
- É uma coisa boa desta nossa Vila: o ar aqui é muito abundante. Isto não é atmosfera. Isto aqui, caro Doutor, é artmosfera.
Passa por eles um grupo de mulheres que saúdam apenas o médico, evitando olhar para o velho sem camisa que se debruça sobre o parapeito da janela.
- Donas mal comidas - resmunga Bartolomeu.
As mulheres da Vila não gostam das manhãs. É o tempo em que os maridos saem de casa. Para Dona Munda sempre fora o oposto. Durante toda a vida aquela tinha sido a melhor parte do dia. A ausência de Bartolomeu só lhe trazia alívio. Agora, tudo se invertera. O marido era uma presença obsidiante, uma espécie de corcunda que pesava sem descanso sobre o seu dorso.
- Gosto de sentir a Vila, assim cedinho – disse o português. - Gosto de ver como se vai cobrindo de gente.
- Odeio gente - rosnou Bartolomeu.
- Não tarda que os passeios se encham de vendedeiras.
- Estes não são gente da Vila. Os que o senhor vê por aqui são os que ainda não saíram.
-Hoje está um dia límpido numa vila que se chama Cacimba. Porquê estragar esta luz, meu caro paciente?
- Eles não saíram da Vila. Eu não saí da Vida.
O médico olha o céu e abre os braços como se quisesse abraçar a imensidão. A intenção do gesto é clara: nada alterará o seu bom humor.
- Não quer mesmo entrar, Doutor?
O português argumenta que está de passagem, sem função profissional. O seu afazer, naquele dia, era apenas ser feliz.
- Eu tenho uma curiosidade muito impessoal diz Bartolomeu, após uma pausa.
- O que quer saber?
- Você não veio para A/rica apenas por causa de Deolinda.
- Então, foi porquê?
- Ninguém sai da sua terra só por causa de uma mulher. Você saiu por outro motivo.
- E porquê?
- Por exemplo, porque não era feliz.
Saímos para o estrangeiro quando a nossa terra já saiu de nós. Ele, Bartolomeu Sozinho, sabia disso, calejado que estava de remotos paradeiros.
- Eu não saí de Portugal. Apenas vim buscar uma mulher.
É assim que responde mas, de si para si, reconhece: na sua terra não era feliz. Mais grave ainda: ele não mais sabia o que era o desejo de ser feliz. Em Lisboa estava entre família, no meio de tanta gente conhecida. Quando saiu para África receou que passaria a sofrer de solidão. Todavia, agora sabia: há muito que estava só. Solitário entre parentes e conhecidos. Ou como diz Bartolomeu, há muito que Sidónio Rosa deixara de ter quem o abençoasse.
-Mundinha disse que o seu pai morreu aqui, em Africa. E verdade?
- É verdade - admitiu o português -, não me vai dizer que venho visitar o espírito dele.
- Os espíritos não se visitam. Nós é que somos visitados.
- De qualquer modo, o corpo do meu velho não mora aqui. Transladaram-no para a terra dele.
O pai de Sidónio tinha-se exilado pouco tempo depois de ele ter nascido. Acreditava estar a fugir do fascismo. Mas a ditadura era apenas a máscara daquilo que ele fugia. Escapava do vazio que está para além dos regimes políticos. Desse mesmo vazio estava fugindo, quarenta anos depois, Sidónio Rosa.
- Pois eu lhe digo: dói mais termos que fugir da democracia ...
- Isso não sei, eu fujo apenas da minha mulher, e já me chega por motivo.
Por outro lado, o reformado não se importava nada de fugir das Suacelências todas que pululavam no país. Desses, como ele diz, a quem o cu cresce mais que a cadeira.
- Noutro dia, você zangou-se comigo porque eu não o chamava pelo seu nome inteiro. Mas eu conheço o seu segredo.
- Não tenho segredos. Quem tem segredos são as mulheres.
- O seu nome é Tsotsi. Bartolomeu Tsotsi.
- Quem lhe contou isso? De certeza que foi o cabrão do Administrador.
Acabrunhado, Bartolomeu aceitou. Primeiro, foram os outros que lhe mudaram o nome, no batismo. Depois, quando pôde voltar a ser ele mesmo, já tinha aprendido a ter vergonha do seu nome original. Ele se colonizara a si mesmo. E Tsotsi dera origem a Sozinho.
- Eu sonhava ser mecânico, para consertar o mundo. Mas aqui para nós que ninguém nos ouve: um mecânico pode chamar-se Tsotsi?
- Ini nkabe dziua (1).
-Ah, o Doutor já anda a aprender a língua deles?
- Deles? Afinal, já não é a sua língua?
- Não sei, eu já nem sei. ; .
O português confessa sentir inveja de não ter duas línguas. E poder usar uma delas para perder o passado. E outra para ludibriar o presente.
- A propósito de língua, sabe uma coisa, Doutor Sidonho? Eu já me estou a desmulatar.
E exibe a língua, olhos cerrados, boca escancarada. O médico franze o sobrolho, confrangido: a mucosa está coberta de fungos, formando uma placa esbranquiçada.
- Quais fungos? - reage Bartolomeu. - Eu estou é a ficar branco de língua, deve ser porque só falo português ...
O riso degenera em tosse e o português se afasta, cauteloso, daquele foco contaminoso. Quase colide com Suacelência que acaba de cruzar a estrada. O Administrador vem esbaforido e cumprimenta, de forma esquiva, os presentes. Detém-se sob a janela, aproveita a sombra para enxugar meticulosamente o afogueado rosto.
- Então, Excelência - inquire o velho Sozinho - tão cedo e já anda a chatear as moscas?
- Que se passa, Suacelência? - pergunta o português, emendando a indelicadeza do seu paciente.
- A rapaziada da banda eleitoral - suspira, contendo uma emergente onda de fúria -, a rapaziada fugiu com os instrumentos.
- Mas isso é um bambúrrio de azar. Então os bandos roubaram-lhe a banda?
Ignorando o tom irónico da pergunta, o Administrador acena com gravidade. Não se tratava, segundo ele, de um simples furto. Aquilo era uma cabala política, manobra dos inimigos da Pátria.
- Um feiticeiro conhece todos os feiticeiros ... ironiza o velho Sozinho.
- Por que não me respeita, Bartolomeu? A mim que fiz tanto pelo país?
- O país preferia que o senhor não tivesse feito nada.
- Por que não gosta de mim?
- Eu gosto da minha terra, da minha gente. E o senhor gosta de quem?
Contudo, o Administrador já desandou, estrada fora, coxeando levemente. Bartolomeu e Sidónio ficam olhando a figura do dirigente desvanecer-se como se assistissem ao seu ocaso político.
- Sinto pena dele - admite o português.
- Pois eu estou-me merdando para o gajo - remata Bartolomeu.
Ri-se para reafirmar o desprezo. E logo lhe sobrevém um ataque de tosse que o deixa sem respirar.
- Puta de vida - diz -, não vivemos se não nos rimos e depois morremos por nos termos rido - e conclui, após recuperar fôlego: - O Doutor acha que sou uma anormalidade?
O médico olha para o parapeito e estremece de ver tão frágil, tão transitório aquele que é o seu único amigo em Vila Cacimba. O aro da janela surge como uma moldura da derradeira fotografia desse teimoso mecânico reformado.
- Posso fazer-lhe uma pergunta íntima?
- Depende - responde o português.
- O senhor já alguma vez desmaiou, Doutor?
-Sim.
- Eu gostava muito de desmaiar. Não queria morrer sem desmaiar.
O desmaio é uma morte preguiçosa, um falecimento de duração temporária. O português, que era um guarda-fronteira da Vida, que facilitasse uma escapadela dessas, uma breve perda de sentidos.
- Me receite um remédio para eu desmaiar.
O português ri-se. Também a ele lhe apetecia uma intermitente lucidez, uma pausa na obrigação de existir.
- Uma marretada na cabeça é a única coisa que me ocorre.
Riem-se. Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.
~~~~~~~~
[(') Ini nkabe dziua: expressão que significa «Eu não sei» (língua chisena]