Breves histórias
Flores certas, morada errada
“Procura um cartão que explique as flores, debalde, não há nada, nenhuma pista”.
16 Outubro 2011
A florista recebe a encomenda de um cliente, que lhe diz uma morada. Ela pergunta-lhe se quer enviar um cartão junto, ele responde-lhe que não. A florista compõe o ramo, agrafa-lhe o papel da morada. O motorista coloca-o na carrinha das entregas, inicia a volta.
Ao chegar à morada, arranca o papel agrafado, toca à campainha do terceiro esquerdo sem notar que o ramo é para o terceiro direito. Ela vive sozinha, sem esperança. Adormeceu tarde com um livro a escorregar-lhe das mãos. É trazida lentamente à superfície da consciência pelo besouro insistente que vai entrando no seu sonho, até que se apercebe que tocam à campainha. Levanta-se, embrulha-se num roupão, acode à porta, estremunhada.
Bom-dia, florista, anuncia o homem, assine aqui, por favor. Ela pisca os olhos ensonados, segura a caneta que ele lhe empresta, põe a custo um rabisco no papel da encomenda. Fecha a porta, confusa, retira lentamente o celofane, procura um cartão que explique as flores, debalde, não há nada, nenhuma pista. Perplexa, vai à sala buscar uma jarra, à cozinha enchê-la de água, distrai-se a compor as flores, pensativa. Coloca-a em cima da mesa de apoio à frente do sofá, senta-se a olhar para elas.
Sem conseguir encontrar uma explicação, suspira, levanta-se, vai tomar banho. No duche, dá consigo a sorrir. Escolhe um vestido ligeiro, amarelo, decide sair para dar um passeio, aproveitar o dia.
No átrio do prédio encontra o vizinho do segundo andar, o gestor do condomínio. É um homem solitário, tímido, muito correcto. Ele cumprimenta-a, pergunta-lhe recebeu o que lhe enviei? Ela estaca, incrédula, gagueja que sim... recebi. E o que achou? Adorei!, exclama, sorridente. Ele arregala os olhos, sem perceber como é que ela gostou tanto da conta absurda que lhe colocou na caixa do correio, força um sorriso, diz ainda bem, dirige-se para o elevador. Ela chama-o, espere! Ele volta-se. Então, e agora não me convida para sair? Ele coça a cabeça, para sair?, estranha. Ela abre as mãos, perguntando-se se ele terá perdido a coragem. Sim, vamos tomar um café? Ele fica sem reacção, ela insiste, é só um café, pode ser? Ele rende-se, está bem, diz.
Vão a uma esplanada, ela está tão empolgada que não se cala, diz coisas divertidas. E ele, que nunca imaginou que ela tivesse qualquer interesse, solta-se, brinca também. Acabam a almoçar juntos, bebem uma garrafa de vinho, ela comenta as flores, vai tão embalada que o trata por tu. Foste amoroso, adorei as flores, afirma. Ele solta uma risada aguda, quais flores?, pergunta. Ela engasga-se num gole de vinho. E então descobrem o engano, mas já é tarde para recuarem, porque as flores já fizeram o seu feitiço, já mudaram as suas vidas.
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