- Fernando Miguel Bernardes
Papiniano Carlos
Presente ainda hoje e sempre
Presente ainda hoje e sempre
A voz e o gesto de Papiniano Carlos colocam-nos desde o primeiro contacto com a sua pessoa perante uma personalidade muito apreciável. Um misto de modéstia e de firmeza clamam perante nós que há um Homem em nossa frente que nos quer ouvir e nos quer falar, dar e receber o que de melhor houver no ser complexo que cada um de nós constitui e ali está presente.
A sua serenidade impõe-se, sem que de qualquer modo Papiniano dê mostras de querer suplantar-se a quem o acompanhe. Antes pelo contrário, Papiniano amodesta-se, como que oferece ao seu interlocutor a oportunidade de conduzir a relação amigável.
Um ser ameno e calmo foi o que sempre senti ao meu lado quando com ele tive a oportunidade de me encontrar. Um homem que sabe também não ser devedor de gentilezas, pois desta qualidade possui ele avonde no seu íntimo generoso.
Quando em 1958 obtive o seu livro de poemas Caminhemos Serenos não pude deixar de sorrir perante o título: onde um casamento mais perfeito entre a epígrafe de um livro e o seu autor? E pensei: se me propusessem a adivinha, mostrando-me a capa e ocultando-me em cima o nome do escritor, «Quem é ele?», perguntavam-me, e se principalmente no Porto nos encontrássemos, creio ainda hoje que não podia deixar de acertar: «Papiniano Carlos, pois quem mais poderá ser?»
Mas, atenção!, serenidade em Papiniano não rima com forçada calma; e muito menos com indiferença. Abro, para matar saudades, aquele velho livro e à sorte sai-me o poema:
INSCRIÇÃO
Aqueles que para vencer-te pulverizaram
tua carne teu último reduto grita-lhes
que no centro do último átomo resistes
esperas a primavera
Para consolo nosso, deixem-me pôr mais este:
RETRATO
Eis a montanha brava
mai-la sua face mansa:
É no fundo que dormem
as torrentes de lava:
Violado, mísero homem,
em ti próprio guardas
tua cólera, tua esperança.
Aqui está, quanto a mim, nestes simples exemplos, o que diríamos um auto-retrato do autor: na sua face mansa guardadas andam sua cólera, sua esperança – e a Primavera. E sua revolta, sua confiança, acrescentarei, com a devida vénia eu, seu amigo de mais de meia vida.
Guardo na memória, rica de trágicos mas também de exaltantes acontecimentos vividos, uma passagem nos dias de Papiniano, que talvez tu, caro poeta e sensível autor de textos para crianças, tenhas olvidado: lembrar-te-ás certamente do julgamento, no Tribunal Plenário do Porto, dos 52 réus acusados de actividades contra a segurança interna e exterior do Estado, e recordarás que deles foste testemunha de defesa; aliás, como tantos outros homens e mulheres de prestígio em todo o País. O que talvez te tenha esquecido, pouco pensando em ti próprio como sempre, foi o episódio da tua identificação naquela qualidade. Perante os réus, os corajosos advogados que nos acompanhavam, e a assistência que, contra a vontade do tribunal e do regime que representava, sempre comparecia com o seu calor humano, perguntou-te o juiz presidente, às formalidades, o nome e a profissão. Declinaste a primeira parte, fizeste uma pausa; e o juiz: «Profissão?» Aí respondeste, sereno: «escrevo»... «Não lhe perguntei o que faz, pergunto-lhe a profissão!» Então tiveste mesmo de deixar a modéstia para outras ocasiões e, em voz alta, o que em ti era raro, avançaste: Sou escritor! Não calculas, querido amigo, como corei de prazer a essas palavras tuas. Ali tínhamos mais uma testemunha por inteiro, um homem assumido, uma profissão esclarecida, um humanista, um poeta que todos admirávamos.
E o melhor ainda foi depois: a defesa sincera, sentida, vivida, que fizeste, daquelas dezenas de jovens e outros já não tanto; e que com brio soubeste e quiseste assumir como um inconformado que também te sentias.
Assim apresentaste naquele acto, como testemunha de defesa, um libelo de acusação contra o regime que nos oprimia e ali nos julgava; como um resistente que tu próprio eras – e em nós serás, pois hoje não podemos de igual modo deixar concretizar aos «de cima» todas as iniquidades que pretendem, tal como naquelas datas não deixávamos o campo livre para que executassem todos os malefícios dos seus programas e respectivas intenções e práticas.
Assim interveniente, escritor comprometido, te vi e vejo, te conheci e conheço: mesmo agora, que em corpo nos deixaste.
Até sempre, companheiro!
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CAMINHEMOS SERENOS
(Para Julius e Ethel Rosemberg)
Sob as estrelas, sob as bombas,
sob os turvos ódios e injustiças,
no frio corredor de lâminas eriçadas,
no meio do sangue, das lágrimas,
caminhemos serenos.
De mãos dadas,
através da última das ignomínias,
sob o negro mar da iniquidade,
caminhemos serenos.
Sob a fúria dos ventos desumanos,
sob a treva e os furacões de fogo
dos que nem com a morte podem vencer-nos,
caminhemos serenos.
O que nos leva é indestrutível,
a luz que nos guia connosco vai.
E já que o cárcere é pequeno
para o sonho prisioneiro,
já que o cárcere não basta
para a ave inviolável,
que temer, ó minha querida?:
caminhemos serenos.
No pavor da floresta gelada,
através das torturas, através da morte,
em busca do país da aurora,
de mãos dadas, querida, de mãos dadas, caminhemos serenos.
In «Caminhemos Serenos» - 1958
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