terça-feira, 11 de agosto de 2015

F Scott-Fitzgerald - TRÊS HORAS ENTRE DOIS AVIÕES


* F Scott-Fitzgerald 

Era uma probabilidade longínqua, mas Donald estava bem-disposto, cheio de saúde e aborrecido, com a sensação de ter cumprido um dever maçador. Ia agora ter a sua compensação. Talvez.
Quando o avião aterrou ele saiu para uma noite de Verão do médio-oeste e dirigiu-se para o isolado aeroporto do «Pueblo», como se convencionara chamar a velha «estação de caminho-de-ferro» vermelha. Não sabia se ela estava viva, nem se vivia naquela terra, nem qual era o seu nome actual. Com crescente excitação procurou na lista telefónica o nome do pai dela, que também podia ter morrido em qualquer altura, durante aqueles vinte anos.
Mas não. Juíz Harmon Holmes - Hillside 3194. Quando perguntou por Miss Nancy Holmes respondeu-lhe uma voz divertida de mulher:
- A Nancy está casada com Mr. Walter Gifford. Quem é que fala?
Mas Donald desligou sem responder. Descobrira o que queria saber e só dispunha de três horas. Não se lembrava de nenhum Walter Gifford e houve outro momento de expectativa enquanto consultava rapidamente a lista. Podia estar casada fora da cidade.
Não. Walter Gifford - HilIside 1191. O sangue voltou-lhe às pontas dos dedos.
- Está lá? Mrs. Gifford está? Fala um velho amigo dela.
- Sou eu própria.
Lembrou-se, ou julgou lembrar-se, da estranha magia da voz dela.
- Fala o Donald Plant. Já não te vejo desde os meus doze anos.
- Ah-h-h! - O tom era de completa surpresa, muito delicado, mas não conseguiu distinguir nele alegria, nem qualquer sinal de que fora reconhecido. - Donald! - acrescentou a voz. Desta vez havia nela mais do que uma luta de memória.
- ...quando foi que voltaste? - E depois com cordialidade. - Onde estás?
- Estou no aeroporto; só por algumas horas.
- Bem, vem até cá ver-me.
- Tens a certeza de que não estavas para ir para a cama?
- Não, santo Deus! - exclamou ela - estava aqui sentada a tomar um whisky sozinha. Diz ao homem do táxi...
Durante o caminho Donald analisou a conversa.
As suas palavras «no aeroporto» indicavam que tinha conservado a sua posição na alta burguesia. A solidão de Nancy podia ser sinal de que se transformara numa mulher sem atractivos e sem amigos. O marido podia ter saído, ou já estar deitado. E- porque ela tinha sempre dez anos nos seus sonhos - o whisky chocou-o. Mas recompôs-se com um sorriso - ela estava muito perto dos trinta.
No fim de uma curva viu uma pequena beldade de cabelos escuros contra a porta iluminada, com um copo na mão. Surpreendido por a ver finalmente materializada, Donald saiu do táxi dizendo:
- Mrs. Gifford?
Ela voltou-se na luz do átrio e encarou-o com olhos muito abertos e perscrutadores. Um sorriso irrompeu da expressão de espanto.
- Donald - és mesmo tu - todos mudamos tanto. Oh, é extraordinário.
Ao entrarem, as vozes de ambos diziam as palavras «todos estes anos», e Donald sentiu uma fraqueza no estômago. Era em parte motivada pela recordação do último encontro, quando ela passara por ele de bicicleta quase o atropelando, e em parte pelo receio de não terem nada para dizer. Era como uma reunião de colégio - mas aí a dificuldade de encontrar o passado era disfarçada pela ocasião alegre e confusa. Aterrado, apercebeu-se de que aquela podia ser uma hora longa e vazia. Mergulhou nela em desespero.
- Sempre foste encantadora. Mas estou um pouco chocado por te ver tão linda como estás.
Deu resultado. O reconhecimento imediato da mudança de ambos, o cumprimento ousado transformou-os em estranhos interessantes em vez de desajeitados amigos de infância.
- Tomas um whisky? - perguntou ela. - Não?
Por favor, não penses que me transformei numa bebedora solitária, mas esta noite era para esquecer. Estava à espera do meu marido mas ele telegrafou a dizer que tem de ficar mais dois dias. É muito simpático, Donald, e muito atraente. Mais ou menos do teu tipo e cor de pele. - Hesitou. - E acho que está interessado em alguém em Nova Iorque, não sei.
- Depois de te ver acho que é impossível - assegurou ele. - Estive casado durante seis anos e houve uma altura em que me torturava com essas coisas. Então um dia expulsei para sempre o ciúme da minha vida. Depois da minha mulher morrer fiquei contente por isso. Deixou-me uma recordação muito rica - nada veio perturbar, ou estragar, ou endurecer a sua memória.
Enquanto ele falava ela olhava-o com atenção e depois com simpatia.
- Lamento muito - disse. E depois de um momento da praxe: - Mudaste muito. Volta a cabeça. Lembro-me de o meu pai dizer: «Aquele rapaz tem miolos.»
- Se calhar não estiveste de acordo.
- Fiquei impressionada. Até aí achava que toda a gente tinha miolos. Foi por isso que me ficou na cabeça.
- Que mais te ficou na cabeça? - perguntou ele sorrindo.
De repente Nancy levantou-se e afastou-se um pouco.
- Ah, não - censurou ela. - Não há direito! Se calhar eu era "muito mazinha.
- Não eras - disse ele resoluto. - E agora vou tomar uma bebida.
Enquanto ela o servia, ainda com o rosto desviado, ele continuou.
- Pensas que foste a única rapariguinha que foi beijada?
- Agrada-te o assunto? - perguntou ela. A irritação momentânea desvaneceu-se e ela disse: - Que diabo! Divertimo-nos bem. Como na cantiga.
- No passeio de trenó.
- Sim. E no pic-nic não sei de quem, da Trudy James.
E em Frontenac naquele, naqueles Verões.
Era do passeio de trenó que ele se lembrava melhor e de lhe beijar as faces frescas na palha a um canto, enquanto ela ria para as estrelas brancas e frias. O par ao lado estava de costas voltadas e ele beijou-lhe o pescoço delicado e as orelhas, e nunca os lábios.
- E a festa do Mack, onde brincaram aos correios e eu não pude ir porque estava com papeira disse ele.
- Não me lembro disso.
- Ora, estavas lá. Beijaram-te e eu fiquei danado com ciúmes como nunca mais tive.
- É esquisito, não me lembro. Talvez tenha querido esquecer.
- Mas porquê? - perguntou ele divertido. Éramos dois miúdos perfeitamente inocentes, Nancy. Sempre que eu falava com a minha mulher acerca do passado, dizia-lhe que tu foste a rapariga que eu amei quase tanto como a ela. Mas acho que realmente te amei tanto como a ela. Quando saímos da cidade levei-te dentro de mim como uma bala de canhão.
- Estavas assim tão entusiasmado?
- Santo Deus, se estava! - De repente ele apercebeu-se de que estavam a meio metro um do outro, que estava a dizer coisas como se estivesse apaixonado por ela naquele momento, que ela o olhava com os lábios semi-cerrados e um olhar embaciado.
- Continua - disse ela. - Tenho vergonha de o dizer, mas estou a gostar. Não sabia que estavas tão transtornado nessa época. Julgava que eu é que estava.
- Tu! - exclamou ele. - Não te lembras de me teres mandado passear no café? - Riu-se. - Deitaste-me a língua de fora.
- Não me lembro de todo. Parecia-me que tu é que me tinhas mandado passear. - A mão dela tocou-lhe no braço ao de leve, quase consoladora. Tenho lá em cima um álbum de fotografias; não olho para ele há anos. Vou descobri-lo.
Donald ficou sentado durante cinco minutos com dois pensamentos: primeiro, a desesperante impossibilidade de conciliar o que diferentes pessoas recordavam sobre o mesmo acontecimento; e depois que, de uma forma assustadora, Nancy o impressionava como mulher como o impressionara como criança.
Em meia hora sentira uma emoção que não conhecia desde a morte da mulher, que nunca esperara voltar a conhecer.
Lado a lado no sofá, puseram o álbum aberto entre os dois. Nancy olhou para ele sorrindo e muito feliz.
- Ah, isto é tão engraçado - disse ela. - Tão engraçado que tu sejas tão gentil e que te lembres assim de mim, de uma maneira tão bela. Deixa-me dizer-te: quem me dera ter sabido disso então! Depois de te teres ido embora fiquei a odiar-te.
- Que pena - disse ele amável.
- Mas agora não - tranquilizou-o ela; e depois, num impulso: - beija-me para compensar.
- ...isto não é ser uma boa esposa - disse ela passado um minuto. - A verdade é que não beijei dois homens desde que me casei.
Ele estava excitado, mas acima de tudo confuso.
Tinha beijado Nancy? ou uma recordação? ou aquela encantadora desconhecida que, tremendo, desviou os olhos dele e voltou uma página do álbum?
- Espera! - disse ele. - Acho que por uns segundos não posso ver nem mais uma fotografia.
- Não vamos recomeçar. Eu também não me sinto muito calma.
Donald disse uma daquelas coisas triviais que têm tanto alcance.
- Não era horrível se nos apaixonássemos outra vez?
- Pára com isso! - Ela riu-se mas quase sem respiração. - Já acabou. Foi só um momento. Um momento que vou ter de esquecer.
- Não contes ao teu marido.
- Porque não? Geralmente conto-lhe tudo.
- Vais magoá-lo. Nunca contes coisas destas a um homem.
- Está bem, não conto.
- Beija-me uma vez mais - disse ele sem convicção, mas Nancy virara uma página e apontava entusiasmada para uma fotografia.
- Aqui estás tu - gritou. - Aqui mesmo!
Ele olhou. Era um rapazinho de calções num cais com um barco ao fundo.
- Lembro-me - e ria-se triunfante - do próprio dia em que foi tirada.
Foi a Kitty que a tirou e eu roubei-lha.
Por um momento Donald não conseguiu reconhecer-se na fotografia; depois, olhando mais de perto, não conseguiu de todo reconhecer-se.
- Esse não sou eu - disse.
- És sim. Foi em Frontenac, no Verão em que costumávamos ir para a cave.
- Qual cave? Só estive três dias em Frontenac. - E de novo fixou os olhos na fotografia ligeiramente amarelada. - E esse não sou eu. Esse é o Donald Bowers. Éramos um bocado parecidos.
Agora ela olhava-o espantada, - inclinada para trás, parecendo querer fugir-lhe.
- Mas tu és o Donald Bowers! - exclamou ela elevando um pouco a voz. - Não, não és. És o Donald Planto
- Eu disse-te ao telefone. Ela pôs-se de pé com uma expressão de horror.
- Plant! Bowers! Devo estar louca. Ou foi da bebida! Fiquei um tanto baralhada quando te vi. Olha cá! O que foi que eu te disse?
Tentou aparentar uma calma monástica enquanto virava uma página do álbum.
- Não disseste nada - afirmou. Fotografias onde não aparecia surgiam e voltavam a surgir - Frontenac - uma cave - Donald Bowers - «Tu mandaste-me passear!»
Nancy falou do outro lado da sala.
- Nunca contes esta história - disse ela. - As histórias têm sempre tendência para se espalharem.
- Não há nenhuma história - disse ele hesitante.
Mas pensou: então ela era mesmo uma rapariguinha marota.
E agora, de repente, estava cheio de loucos ciúmes do pequeno Donald Bowers, ele que banira para sempre o ciúme da sua vida.
Nos cinco passos que deu através da sala liquidou vinte anos e a existência de Walter Gifford.
- Beija-me outra vez, Nancy - disse ele tombando sobre um joelho ao lado da cadeira dela e pondo-lhe a mão no ombro. Mas Nancy desviou-se.
- Disseste que tinhas de apanhar um avião.
- Não interessa. Posso perdê-lo. Não tem importância.
- Por favor, vai - disse ela com voz fria. - E por favor tenta imaginar como me sinto.
- Mas estás a agir como se não te lembrasses de mim - gritou ele. - Como se não te lembrasses do Donald Plant!
- Lembro-me. Também me lembro de ti... mas foi tudo há tanto tempo. - A voz dela tornou-se mais dura. - O número dos táxis é Crestwood 8484.
No caminho para o aeroporto Donald abanava a cabeça de um lado para o outro. Estava de novo em si mas não conseguia digerir a experiência. Só quando o avião rugiu em direcção ao céu negro, e os passageiros se transformaram numa entidade diferente do mundo organizado lá em baixo, é que ele estabeleceu um paralelo a partir da realidade do seu voo. Durante cinco minutos estonteantes vivera como um louco, em dois mundos ao mesmo tempo. Tinha sido um garoto de doze anos e um homem de trinta e um, indissolúvel e irremediavelmente ligados.
Donald perdera muito, também, naquelas horas entre dois aviões; mas como a segunda metade da vida é um longo processo de nos desfazermos das coisas, aquela parte da experiência não tinha provavelmente importância.

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