sábado, 21 de maio de 2016

Emília Viotti da Costa – cinquenta anos do clássico sobre a Abolição

20 de maio de 2016 - 15h32 



Divulgação
 
Emília Viotti foi parte de uma série de professores que escreveram obras influentes e inovadoras. E destaca-se, entre eles, como historiadora marxista que não aceitou os modismos e foi fiel à maneira originária de Marx e Engels

Da Senzala à Colôniafoi baseado na tese de livre docência defendida em 1964, na USP, com o título: Escravidão nas áreas cafeeiras, aspectos econômicos, sociais, políticos e ideológicos da transição do trabalho servil para o trabalho livre – longo para um estudo igualmente extenso, que tinha três volumes e mais de 1000 páginas.

Foi uma renovação nos estudos sobre a Abolição e a transição para o trabalho livre. Não apenas do ponto de vista da documentação usada, mas, principalmente, na maneira renovadora de encarar as contradições do processo social brasileiro.

Além das fontes tradicionais (periódicos, relatos de viajantes, livros de memórias etc.), Emília Viotti consultou documentos até então pouco usados, como relatórios oficiais, atas de congressos agrícolas, documentação policial, etc.

Tudo isso para esclarecer o processo social vivido durante a Abolição e, depois dela, na intensificação da imigração europeia – italiana sobretudo. 

Não foi apenas o processo da Abolição, ou da passagem do trabalho escravo para o trabalho livre que Emília Viotti da Costa analisou em seu livro seminal, mas o relato da revolução que ocorreu no Brasil na segunda metade do século 19, cuja culminância foi o fim do modo de produção escravista colonial e a aceleração da transição para a plena hegemonia do modo de produção capitalista.

A importância daquele livro decorre da meticulosa descrição que faz do movimento das classes sociais nos anos finais do escravismo. Que ocorreu em uma sociedade complexa, na qual os interesses de classe se definiam mais claramente, e na qual ainda prevaleciam os interesses agromercantis exportadores, latifundiários e escravistas que dominavam desde a Independência. E que se mantém em nossos dias, mais de um século depois, na ação e no poder de seus descendentes de classe, a direita neoliberal e conservadora que impede o avanço democrático no Brasil.

 

Na sociedade da última metade do século 19 os interesses ligados à escravidão declinavam face ao impulso abolicionista que se generalizava. 

Nela, prevaleciam ainda os grandes senhores de terras e as categorias ligadas a eles, como os profissionais que atuavam nas tarefas de administração das fazendas, na intermediação entre elas e os exportadores do café, na manutenção da ordem e também na organização do consenso ideológico em torno do escravismo (com destaque para parte do clero católico).

Naqueles anos a estrutura de classes brasileira mudava rapidamente, na esteira da divisão social do trabalho que se tornava mais complexa, refletindo, por sua vez, o desenvolvimento material e a urbanização que cresciam. 

Havia uma pequena burguesia urbana formada por médicos, engenheiros, jornalistas, funcionários públicos, advogados etc., que tinham interesses próprios, independentes da oligarquia latifundiária e escravista dominante. 

Começava a surgir uma incipiente burguesia industrial, embora muito frágil e ainda subordinada aos interesses comerciais, latifundiários e bancários da classe dominante. E tinha um traço limitador: era uma burguesia industrial que nascia num contexto mundial dominado pelo imperialismo que tinha entre seus aliados, no Brasil, justamente a classe dominante latifundiária, escravista, agromercantil e exportadora. 

Nas cidades crescia a classe operária, com destaque para os trabalhadores ferroviários. Ela inaugurava sua presença e começava a defender interesses próprios. Embora de maneira ainda muito frágil, aquela classe operária iniciava suas lutas e organização.

Isto é, formava-se, dentro da sociedade escravista, um conjunto crescente de interesses que se diferenciavam e entravam em oposição à velha oligarquia. Descrever esses setores e a dinâmica de suas lutas é o grande mérito de Da senzala à colônia

Emília Viotti da Costa mostrou que foi entre os grupos sociais urbanos novos, “menos dependentes do trabalho escravo e desejosos de adquirir autonomia em relação às oligarquias rurais de cuja clientela dependiam e de cuja patronagem frequentemente se ressentiam” que os abolicionistas conseguiram maior número de adeptos.

De maneira realista, a historiadora estudou a luta abolicionista sem cair na armadilha de tentar ver nela uma revolução de escravos. Ela houve, os escravos foram protagonistas da luta pelo fim do escravismo, mas a revolução foi mais ampla e envolveu outros setores sociais que estavam em conflito com a oligarquia escravista.

Emília Viotti foi parte de uma série de professores que escreveram obras influentes e inovadoras. E destaca-se, entre eles como historiadora marxista que não aceitou os modismos e foi fiel à maneira originária, de Marx e Engels, encarar o desenvolvimento das relações entre os homens, a sociedade e a natureza.

O preço que pagou por essa opção foi sua cassação em 1969, pelo AI-5, como professora da USP e o exílio nos EUA onde, desde 1973, lecionou na Universidade de Yale. Sorte dos estudantes norte-americanos! 

Ela foi sempre uma crítica rigorosa dos modismos historiográficos. Se em Da Senzala à Colônia a opção metodológica que tem a ação prática dos homens no centro da explicação histórica já era nítida, ela a explicitou na notável introdução a um de seus últimos livros (Coroas de glória, lágrimas de sangue - a rebelião dos escravos de Demerara em 1823, publicado no Brasil em 1998). 

Rigorosamente dentro do método marxista, ela recusa duas posturas costumeiras. Uma, que esteve em grande evidência nas décadas de 1980 e 1990, rejeita a compreensão da história como ciência e valoriza o singular, o individual, o subjetivo. E não aceita também as grandes narrativas da ação coletiva, mas enfatiza o relato artístico, literário da atividade do historiador. 

A outra postura criticada por ela é a que, a pretexto de que a história é uma ciência, busca a “objetividade” em uma assim chamada impessoalidade dos processos históricos. e atribui a sucessão de eventos a fatores que agiriam independentemente da ação prática dos homens.

Contrapondo-se a estas duas tendências, Emília Viotti afirma que “nem a história é o resultado de uma ‘ação humana’ misteriosa e transcendental, como querem uns, nem os homens e mulheres são fantoches de ‘forças históricas’, como querem outros. As ações humanas constituem o ponto em que se resolve momentaneamente a tensão constante entre liberdade e necessidade”. 

A história, diz – fincando o pé na melhor tradição legada por Marx, Engels e Lênin - “é feita por homens e mulheres, embora eles a façam sob condições que não escolheram. Em última instância, o que interessa é a maneira como as pessoas interagem, como pensam e agem sobre o mundo e como, ao transformar o mundo, transformam-se a si mesmas”.

Os homens fazem sua própria história, mas não em condições que escolhem – fazem marcados pelas ações das gerações anteriores e dos outros homens com quem vivem e tecem sua passagem pelo mundo. Este é o ensinamento de Marx e Engels. E, em nosso tempo, da professora marxista Emília Viotti da Costa. 

Referências
Livros de Emília Viotti da Costa. 
Da senzala à colônia, São Paulo, 1998 (1ª edição: 1966) 
Da monarquia à república: momentos decisivos, São Paulo, 1977
Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue: a rebelião dos escravos de Demerara em 1823, São Paulo, 1998
O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania, São Paulo, 2006

Sobre Emília Viotti da Costa
José Geraldo Vinci de Moraes e José Márcio Rego. Conversas com Historiadores Brasileiros, São Paulo, 2002






Do Portal Vermelho
http://www.vermelho.org.br/noticia/281215-1

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