segunda-feira, 9 de maio de 2016

Pesadelo numa noite de primavera, e logo com o fantasma de Simone de Beauvoir ao lado

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9 de Maio de 2016, 08:27

Por


E
stava um meu amigo a dormir tranquilamente numa destas chuvosas noites de primavera quando lhe entrou pelo sonho dentro uma figura imponente: ele próprio, regressado do seu passado. Mais jovem, cheio de ilusões e de generosidade, ia transformar o mundo, lia tudo, conversava sobre tudo. Vinha acompanhado de uma senhora de meia idade, “trouxe a Simone de Beauvoir para te lembrar as minhas leituras, tanto que eu discuti o Segundo Sexo no meu tempo”, disse logo para o seu eu mais velho, ali deitado e perplexo.

Achas tu que, como dizia o Dr. Johnson, a mulher é “um cão andando sobre as patas traseiras” (p.137, vol. 1)?, perguntou de chofre ao seu velho eu. Não, como te atreves a perguntar tal baboseira, murmurou o visado, naturalmente desconfiado do que vinha a seguir. Foi inútil a negação, o eu mais jovem continuou a insistir: achas que, como Rousseau, “toda a educação da mulher deve ser relativa ao homem. A mulher é feita para ceder ao homem e suportar-lhe as injustiças” (p.140), ou que, como no “Emílio”, o homem deve ser educado para a causa pública, mas que Sofia deve ser educada para a causa privada de cuidar de Emílio? Nem esperou pela resposta e persistiu: achas, como Comte, que a feminilidade é uma “infância contínua” ou, como Balzac, que “o destino da mulher e a sua única glória são fazer bater o coração dos homens” (p.144)?
Nem um sussurro e o eu jovem martelou mais uma vez: lembras-te do que leste no Segundo Sexo sobre a genealogia da discriminação? Eu sei, porque eu sou tu, que nunca leste o Aristóteles, menos ainda o Tomás de Aquino, mas leste o que o Segundo Sexo resumiu deles?, e virou-se para Simone. Ela riu-se e citou: para Aristóteles, “a fêmea é fêmea em virtude de uma certa carência de qualidades. Devemos considerar as mulheres como sofrendo de certa deficiência natural” e, para São Tomás de Aquino, ela é só um ser “ocasional” e “incompleto” (p.10). Este é o eterno discurso da supremacia masculina e foi ele que moldou a nossa história e a nossa civilização bem como a linguagem que falamos, disse o jovem, era isto que tu dizias quando ainda não tinhas esquecido tudo.
Mas eu, a igualdade, tanto que respeito as mulheres, ama o teu próximo, etc. e tal, atreveu-se o velho… Deixa-te de coisas, atalhou o mais jovem, essa lenda do amar o próximo é a semântica da submissão, não te vais atrever agora a dizer-me que a mulher nasceu de uma costela do Adão, pois não? Se queres ser exacto, riu-se Simone, todos os homens é que nasceram do útero de alguma mulher, mas “a sociedade codificada pelos homens decreta que a mulher é inferior” (p.552, vol.2).
O eu jovem sentou-se à beira da cama do eu velho, deixa-me lembrar-te o que leste, nessa altura repetias a frase como se fosse um refrão, ela era tão importante para ti: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, económico, define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produtor intermédio entre o macho e o castrado que qualificamos de feminino. Só a medição de outrem pode constituir um indivíduo como um outro” (p.13, vol. 2).
Mas então são iguais, não há diferenças?, tentou o mais velho, agora o mundo é plano, repetem-me ideias de há cinquenta anos e querem que eu fique ancorado no passado? Tudo tretas, querem acabar com a língua portuguesa, isto tem regras, temos que obedecer ao que está fixado nos tratados e nas gramáticas, é assim e sempre há-de ser assim para todo o sempre, foi acrescentando.
Deixa-te de superficialidades, lembrou-lhe Simone, eu escrevi e na altura tu concordavas, como concordavas!, que “Haverá sempre certas diferenças entre o homem e a mulher; tendo o seu erotismo, o seu mundo sexual, uma figura singular, não poderá deixar de engendrar nela uma sensualidade, uma sensibilidade singular: as relações com o seu corpo, o corpo do homem, o filho, nunca serão idênticas às que o homem mantém com o seu corpo, o corpo feminino, o filho; os que tanto falam de ‘igualdade na diferença’ mostrar-se-iam de má fé em não admitir que possam existir diferenças na igualdade” (p.567, vol. 2). Claro que há diferenças, enormes, são a vida, mas algumas dessas diferenças são construídas e impostas de modo que a mulher não se reconheça, que se aceite como inferior, como parte do homem.
Os modos de comportamento, a educação, o discurso público, a selecção social, as normas e muitas vezes as leis criaram essa personagem que é a mulher subordinada e submissa. Até te digo mais, acrescentou Simone de Beauvoir, já cansada do susto do eu velho com o que o eu jovem tinha lido, lê de novo: “A mulher reconhece que o universo, no seu conjunto, é masculino; os homens modelaram-no, dirigiram-nos e ainda hoje o dominam” (p. 416, vol. 2).
Já sabia que era aí que querias chegar, rezingou o velho. Pois tens razão, era mesmo aí que eu queria chegar. Lembras-te do que leste e concordavas: “O homem representa a um tempo o positivo e o neutro, a ponto de dizermos ‘os homens’ para designar os seres humanos. (…) O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro” (p. 9-10, vol. 1). Leste bem, disse o jovem, lê outra vez: “O homem representa a um tempo o positivo e o neutro, a ponto de dizermos ‘os homens’ para designar os seres humanos. (…) O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro.”
Que espanto, acrescentou Simone, a mulher tornou-se invisível, o que não é dito não existe, pois a linguagem é uma forma de selecionar o discurso e ele pode ser opressivo e muitas vezes desprezante: se o Homem é o Sujeito, a Mulher desapareceu, é o resíduo do sujeito. Podemos por isso começar por falar de nós própria para que sejamos ouvidas e para isso usaremos a linguagem em que existimos. Vais ouvir-me muitas vezes, segredou então ao eu mais velho.
Foi só então que o eu velho acordou, estremunhado. O pior pesadelo dos últimos anos, porque o seu terror era ele próprio. Nada mais assustador do que fazer contas consigo mesmo. Levantou-se, banhou-se, matabichou e foi para o trabalho. Ainda bem que me esqueci de tudo o que pensei, a vida é mais fácil assim, tudo gramática e nada de tretas, resmungou. Assim é e assim será para todo o sempre.
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