sábado, 21 de maio de 2016

José Saramago - Camões" e a "Fala do velho do Restelo ao astronauta"

* José Saramago  


"Viagem à Lua" de Friedrich Wilhelm Murnau 


Fala do velho do Restelo ao astronauta




Aqui, na Terra, a fome continua, 
A miséria, o luto, e outra vez a fome. 

Acendemos cigarros em fogos de napalme 
E dizemos amor sem saber o que seja. 
Mas fizemos de ti a prova da riqueza, 
E também da pobreza, e da fome outra vez. 
E pusemos em ti sei lá bem que desejo 
De mais alto que nós, e melhor e mais puro. 

No jornal, de olhos tensos, soletramos 
As vertigens do espaço e maravilhas: 
Oceanos salgados que circundam 
Ilhas mortas de sede, onde não chove. 

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa 
Onde come, brincando, só a fome, 
Só a fome, astronauta, só a fome, 
E são brinquedos as bombas de napalme. 


(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)


http://www.jornaldepoesia.jor.br/1saramago.html#fala



Poema para Luís de Camões 


Meu amigo, meu espanto, meu convívio, 
Quem pudera dizer-te estas grandezas, 
Que eu não falo do mar, e o céu é nada 
Se nos olhos me cabe. 
A terra basta onde o caminho pára, 
Na figura do corpo está a escala do mundo. 
Olho cansado as mãos, o meu trabalho, 
E sei, se tanto um homem sabe, 
As veredas mais fundas da palavra 
E do espaço maior que, por trás dela, 
São as terras da alma. 
E também sei da luz e da memória, 
Das correntes do sangue o desafio 
Por cima da fronteira e da diferença. 
E a ardência das pedras, a dura combustão 
Dos corpos percutidos como sílex, 
E as grutas do pavor, onde as sombras 
De peixes irreais entram as portas 
Da última razão, que se esconde 
Sob a névoa confusa do discurso. 
E depois o silêncio, e a gravidade 
Das estátuas jazentes, repousando, 
Não mortas, não geladas, devolvidas 
À vida inesperada, descoberta, 
E depois, verticais, as labaredas 
Ateadas nas frontes como espadas, 
E os corpos levantados, as mãos presas, 
E o instante dos olhos que se fundem 
Na lágrima comum. Assim o caos 
Devagar se ordenou entre as estrelas. 

Eram estas as grandezas que dizia 
Ou diria o meu espanto, se dizê-las 
Já não fosse este canto. 


(in PROVAVELMENTE ALEGRIA, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1985, 3ª Edição)

http://www.jornaldepoesia.jor.br/1saramago1.html#camoes

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